Um fato digno de nota nesse carnaval de 1958 foi o fracasso das músicas de todos – todos mesmo – os grandes ídolos populares, nenhum deles conseguindo emplacar um sucesso digno de nota, ou deixar sua marca na história dos carnavais brasileiros. A
ssunto é que não faltou. Muitas críticas nas letras. Falou-se de tudo, de Brasília, da gripe asiática, de amores e desamores, da lambreta, do Sputnik, de mortes, de pobreza, do velho Rio de Janeiro e da destruição dos patrimônios da cidade por causa do “progresso”. Claro que também não faltaram as músicas de duplo sentido e nostálgicas, ou seja, a temática foi vasta e variegada. Enfim, muita música de péssima qualidade, pouquíssimos destaques dignos de nota. Não foi à toa que a música de Ataulfo Alves Vai, Mas Vai Mesmo, gravada no meio do ano de 1957, se tornou o grande sucesso desse carnaval na interpretação do próprio compositor, acompanhado por suas pastoras.


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“Madureira chorouMadureira chorou de dorQuando a voz do destinoObedecendo o divinoA sua estrela chamou..Gente modestaGente boa do subúrbioQue só comete distúrbioSe alguém lhe menospreza..Aquela genteQue mora na zona norteAté hoje chora a morteDa estrela do lugar.”
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Outro veterano cantor, Orlando Silva, também participou desse carnaval com o samba Se eu Morresse Amanhã, da dupla Raul Sampaio e Ivo Santos.
A essa altura, uma pálida lembrança do cantor que encantava os corações dos brasileiros, Orlando Silva (1915 – 1978), o “Cantor das Multidões”, intérprete de inesquecíveis sucessos como Rosa (Pixinguinha), Lábios Que eu Beijei (J. Cascata/Leonel Azevedo), Carinhoso (Pixinguinha/João de Barro), A
Tetê Espíndola interpretando Sertaneja.
Orlando Silva interpretando Rosa.
Maria Rita e Marcelo Camelo interpretando Carinhoso.
Ouça Orlando Silva interpretando Cidade Brinquedo.
Odete Lara interpretando Nada Além no filme A Estrela Sobe.
Orlando Silva interpretando Lero-Lero.
Brigando com a direção da RCA Victor, em 1942, Orlando Silva entra para o cast da Odeon, lançando, nesse ano, a marcha Alvorada (Frazão/Dunga) e o samba Inimigo do Samba (Ataulf
o Alves/Jorge de Castro). Nenhuma das duas obteve repercussão, o mesmo acontecendo com praticamente todas que lançou a partir dessa data, mesmo gravando composições da nata dos compositores brasileiros, como Será Verdade (Claudionor Cruz/Pedro Caetano, em 1943), Brasa (Lupicínio Rodrigues/Felisberto Martins, em 1945, ano que teve rescindido seu contrato com a Rádio Nacional, fato que muito prejudicou sua carreira), Tudo é Possível (Cícero Nunes/Aldo Cabral, também em 1945), Dissimulada (Laurindo de Almeida/Bororó, em 1946), Saudade (Dorival Caymmi/Fernando Lobo, em 1947), Teu Amor e o Meu (José Maria de Abreu, em 1948), Voltaste (Newton Teixeira, também de 1948) e inúmeras outras sem a mínima repercussão.
Na década de 50, em que imperava o baião, o samba-canção, o bolero e, mais no final, o rock and roll, seu sucesso diminuiu mais ainda. Nessa época, trocou inúmeras vezes de gravadora, teve que amargar o dissabor de gravar compositores desconhecidos e do segundo escalão, além de regra
var sucessos antigos de outros cantores. São desse tempo Senhor, me Ajude (1951), dos desconhecidos Luiz Soberano e Valdemar Silva, Não me Importa Que a Tábua Rache (1951), de Liz Monteiro e J. Piedade, Tem Dó (1952), de Manezinho Araújo, a regravação da valsa Glória (1952), de Bonfíglio de Oliveira e Branca M. Coelho, a regravação de Adeus (1952), de autoria de Silvino Neto, grande sucesso de Francisco Alves em outros tempos, Meu Lampião (1953), samba-canção de Alcyr Pires Vermelho e Alberto Ribeiro, regravando, também, em 1953, várias músicas de Ary Barroso, Risque, sucesso de Linda Batista, Terra Seca, Inquietação e Faceira, gravações antigas de Sílvio Caldas.
Paulo Capuano interpretando Adeus (Cinco Letras que Choram).Faceira.

Na década de 50, em que imperava o baião, o samba-canção, o bolero e, mais no final, o rock and roll, seu sucesso diminuiu mais ainda. Nessa época, trocou inúmeras vezes de gravadora, teve que amargar o dissabor de gravar compositores desconhecidos e do segundo escalão, além de regra
Paulo Capuano interpretando Adeus (Cinco Letras que Choram).Faceira.
E as coisas continuaram dessa forma: muitas gravações, poucos resultados em termos de sucesso; em 1955, ele grava as marchas Dona Light, de Pereira Matos, Hélio Malta e Bola Sete e Marcha das Flores, de Haroldo Lobo, Rômulo Paes e Henrique de Almeida, e os sambas Herança, de Newton Teixeira e Brasinha e Jogado Fora, de
Emílio Santiago interpretando Mulher.
Cláudia Moreno e Noite Ilustrada interpretando
Uma surpresa aguardaria os fãs do cantor no ano de 1956: o compositor Júlio Nagib, nesse ano, fez uma versão de um dos grandes sucessos norte-americanos do ano anterior, o rock-balada Only You, de Ande Rand e Buck Ram, gravada pelo conjunto The Platters, dando-lhe o nome de Só Você. Orlando Silva a grava, na esteira do estouro do rock and roll, mas, a música soou risível na voz do cantor romântico, sendo solenemente desprezada pelos brasile

Somente em 1957 Orlando Silva lançaria seu primeiro Long Playing; a Odeon coloca no mercado o vinil Serenata com Orlando Silva, trazendo oito composições de Freire Júnior, compositor e empresário de teatro de revista recentemente falecido: Olhos Japoneses, Malandrinha, Revendo o Passado, Santa, Deusa e Pálida Morena, além de mais duas composições, À Beira Mar e Luar de Paquetá, essas compostas por Freire Júnior em parceria com Hermes Fontes. Trazer para o presente um compositor totalmente fora de moda nada acrescentou à carreira de Orlando Silva, que continuou seu calvário rumo ao ostracismo.
Documentário em homenagem a Orlando Silva:
Parte 1.
Parte 2.
Eu Chorarei Amanhã, pelo baixo nível da maioria das composições, fez razoável sucesso, um dos três destaques desse carnaval de 1958:
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"Eu chorarei amanhã
Hoje eu não posso chorar.
Um dia pra gente sofrer
O outro pra desabafar
Eu chorarei amanhãHoje o que eu quero é sambar.”
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O Rio de Janeiro continuava a perder inúmeras construções antigas para dar lugar a prédios de escritórios e de moradia, num rápido processo de descaracterização de suas belezas originais. Na década de 50, existia um lindo prédio na Avenida Rio Branco, o Hotel Avenida (220 quartos), de propriedade da Companhia Ferr
o-Carril do Jardim Botânico - CFCJB, com 3.200 metros de área total, 60 metros de frente, 22,85 metros de altura geral sobre o solo e 34,30 metros de altura máxima. Em seu interior, em uma galeria, funcionou a talvez mais conhecida das estações de bondes da Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico. Era a famosa Galeria Cruzeiro, assim chamada devido à existência de duas passagens em cruz. Essa estação oferecia embarque coberto e confortável e acesso a diversos bares e restaurantes que
também funcionavam no térreo do Hotel Avenida. Para os carnavalescos, Galeria Cruzeiro tinha um significado especial: foi um dos principais cenários do carnaval carioca, concentrando os foliões que chegavam nos bondes lotados e ruidosos, muitos saindo diretamente dos bondes para as mesas de mármore dos bares. O Hotel Avenida foi demolido em 1957 para dar lugar ao Edifício Avenida Central. Carvalhinho e Paulo Gracindo registraram, para a posteridade, esse momento histórico; fizeram uma homenagem à Galeria Cruzeiro e à sua importância para os carnavalescos de todos os tempos, lançando, para esse carnaval, o samba Derrubaram a Galeria, que, na voz de Carlos Nobre, foi um dos destaques do ano:
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“Derrubaram a galeria, meu irmão
Onde é que eu vou sambar
Cada martelada na parede
Era um lamento
De um boêmio que se ouvia
Ai!, senhor prefeito
Por que deixou
Derrubar a galeria?
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Embaixo do relógio eu esperava
O meu amor que demorava e não chegava
Enquanto isso, um bate-papo animado
Com a espuma de um chope bem gelado.”
Muitos cariocas não se conformavam com a construção de Brasília, já que o Rio de Jane
iro sofreria um processo de esvaziamento e seu status de capital do país. Billy Blanco, um dos precursores da bossa nova, autor de Mocinho Bonito, Estatutos de Gafieira, Teresa da Praia (em parceria com Tom Jobim) e de outros grandes êxitos, estava entre esses inconformados. Lança, então, Não Vou Pra Brasília, considerada subversiva pelo governo JK, que não permitia sua veiculação pelas emissoras oficiais, a Rádio Nacional, a emissora líder em audiência, bem entendido. Lançado pelo conjunto Os Cariocas, o samba, na realidade, gravado bem antes do carnaval, foi também bem recebido pelos foliões, principalmente pelos antimudancistas:

“Eu não sou índio nem nada
Não tenho orelha furadaNem uso argola
dependurada no nariz
Não uso tanga de pena
E a minha pele é morena
Do sol da praia onde nasci
E me criei feliz.
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Não vou, não vou pra Brasília
Nem eu, nem minha família
Mesmo que seja pra ficar cheio de grana
A vida não se compara
Mesmo difícil e tão cara
Quero ser pobre
Sem deixar Copacabana.”
João Dias, cantor que tinha uma voz parecida com a de Francisco Alves,

.“Engole ele
Engole ele, paletó
Engole ele, paletó
Que o dono dele era maior.
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Paletó de gente pobre
Não tem tamanho nem cor
No verão é guarda-chuva
No inverno é cobertor.
Gente rica quando morre
Papai do céu quem levou
Gente pobre quando morreFoi bebida quem matou.”
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Com relação às marchinhas, a indigência foi mesmo geral; salvou-se muito pouca música, permitindo que o grande sucesso do ano fosse a marcha Fanzoca do Rádio, de Miguel Gustavo, interpretada pelo palhaço Carequinha. A letra da música fa
zia uma severa crítica às garotas que freqüentavam os auditórios das rádios, o da Rádio Nacional basicamente, àquela altura sofrendo feroz perseguição por parte da crítica “bem pensante” que as chamava de “ridículas” e considerava insuportável sua histeria perante seus ídolos, basicamente Emilinha Borba, Marlene e Caubi Peixoto. Nessa época, a própria Rádio Nacional estava preocupada com a imagem de seu auditório. Primeiramente, aumentou bastante o preço do ingresso para esses programas; depois, separou com uma plataforma de vidro os ídolos mais importantes do público, para que os gritos e apupos dos fãs não chegassem até os delicados ouvidos do público ouvinte. O crítico Nestor de Hollanda foi o criador da expressão racista “Macacas de Auditório”, referindo-se a elas, por serem, na maioria, negras. Miguel Gustavo, nessa marchinha, reforça o preconceito, o que não a impediu que fosse a mais cantada e executada em todo o país:

.“Ela é fã da EmilinhaNão sai do César de AlencarGrita o nome do CaubiE depois de desmaiar
Pega a Revista do Rádio
E começa a se abanar.
.É uma faixa aqui, outra faixa aliO dia inteirinho ela não faz nadaEnquanto isso na minha casaNinguém arranja uma empregada.”
Carequinha interpretando Fanzoca do Rádio.
Por falar nisso, Emilinha Borba, que ganhara o carnaval do ano anterior, foi brindada, nesse mês do carnaval, com a capa e com uma grande report

“A célebre Emilinha Borba reina, quase absoluta, em popularidade, entre tantas majestades e soberanas glamorosas, no encantado ‘império do samba’ e da marcha do rádio brasileiro (...) Emilinha é, no entanto, um ídolo discutido. Quem gosta de ‘Emilinha-É-A-Maior’ gosta. Quem não gosta, desgosta (...)”.
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Nesse carnaval, a cantora fez um sucesso apenas razoável com a marchinha de João de Barro Corre, Corre, Lambretinha, que, mais tarde, no carnaval baiano de 2002, foi resgatada com êxito pelo grupo Timbalada:
.“O vovô ia a cavaloPara visitar vovó
O papai de bicicletaPra ver mamãe, ora vejam só!.Hoje tudo está mudadoMudou tudo, sim senhorE eu tenho uma lambretaPara ver o meu amor.Corre, corre, lambretinha
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Pela estrada além
Corre, corre, lambretinha
Que eu vou ver meu bem.”
Carlinhos Brown interpretando Corre, Corre, Lambretinha.

“Está na hora Emília
É agora Emília
Deixa o Rio
Vem comigo pra Brasília.
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A idéia não é má
Nasceu de JK
Então vamos pra lá
Que vai ser um chuá.”
Outra composição muito cantada pelos foliões e bastante executada pelas rádios em todo o país, feita com duplo sentido, própria para ser deturpada na ho
ra de ser cantada pelos foliões, Mamãe eu Levei Bomba, de autoria de Jota Júnior e Oldemar Magalhães, lançada por Dircinha Batista, fez relativo sucesso exatamente por isso:

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“Mamãe eu levei bomba
Mamãe eu levei bomba
Pela primeira vez
Filhinha, filhinha
Filhinha querida
Foi francês?
Foi português?
Não sei, mamãe, não sei
A prova foi tão dura, mamãe
Que eu naufraguei!
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Agora, não adianta chorar
O remédio é estudar.”

“Quanta gente se arrumou com a minha gripeUm conto de réis por um limãoE com o preço dos remédios nessa alturaEu fiquei bom, mas quase morri da cura..Deixei de espirrar, a gripe teve fimMas meu bolso passou a espirrar por mim.”

“Fala, fala, fala, fofoqueira.
Fala, fala, faladeira
Venha conhecer minha maloca
Deixa de fofoca.
Intriga é contra a moralFofoca eu sou tão legalA minha orelha quer se refrescarMe dá uma colher de chá."

difícil, muito antiquada mesmo, não muito apropriada para ser decorada pelos foliões. Parecia música composta nos anos trinta. A gravação ficou a cargo dos Rouxinóis de Paquetá:
.“Os rouxinóisEntre as floresProcuram amores...É lindo o cântico das avesAs melodias se renovam tão suaves.Salve os rouxinóis...Surgem orquestraisNos arrebóisSustenidosSão feridosE se ouve à meia vozOs bemóisPorque os rouxinóisForam buscar amor-perfeitoE no canteiro já desfeito da amizadeSó encontraram saudade.
Sem sonhos os rouxinóisSe vêem a sós, tristonhosE se consolam com sutis cigarrasCigarras sutis, cada qual mais feliz..Pois cantaram, cantaram, cantaramDepois se desencantaramCantar até morrerÉ o seu infinito prazer.
Então nos arrebóisOs rouxinóisSilentes, descrentesDe seus amoresPelas lindas flores...
Nesta canção, pensando bemO amor dos rouxinóisÉ o nosso amor também.”
5 comentários:
Em 1957, eu ainda pré-adolescente, ouvia e via nos salões do Rio de Janeiro, carnavalesco cantando repetidas vezes a música Fanzoca do Rádio, de Miguel Gustavo, interpretada pelo palácio Carequinha. Foi um sucesso.
Homero Guião fbarao@nitnet.com.br biógrafo oficial do Palhaço Carequinha. "O Circo do Carequinha".//*
Cheguei no seu blog agora, encaminhado pelo Google. Aqui encontrei a música que minha avó cantarolou por toda esta tarde.
@andersonmoura
"Embaixo do relógio eu esperava
O meu amor que demorava e não chegava
Enquanto isso, um bate-papo animado
Com a espuma de um chope bem gelado"
Incrível, fantástico e extraordinário trabalho de pesquisa.
Um pequeno reparo no seu ótimo texto:o samba na voz de Orlando se intitula Eu Chorarei Amanhã, e não Se eu Morresse Amanhã.
Amigo Francisco, obrigado pelo reparo e espero que, caso você ache mais alguma inconsistência, favor me avisar novamente.
Zé Fialho.
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