6.9.06

O CRIME DO PADRE HOSANÁ

Aquilo nunca tinha acontecido no Brasil, pelo menos, ninguém tinha conhecimento de coisa tão assombrosa, tão fora de propósito; por isso, foi com espanto e estupefação que, no dia dois de julho de 1957, os brasileiros tiveram as primeiras notícias sobre o assassinato do bispo da cidade de Garanhuns, Dom Francisco Expedito Lopes (1914 - 1957), notícias essas que, com o correr dos dias, se tornaram um escândalo nacional e internacional devido ao inusitado do fato. Mais estupefactos todos ficaram quando a identidade do assassino logo foi divulgada: tratava-se de um padre; seu nome, Hosaná de Siqueira e Silva, pároco da cidade de Quipapá, pertencente à diocese daquela cidade.


Depois se soube que a rixa entre o prelado e o sacerdote já vinha de algum tempo. Tudo relacionado a um suposto romance proibido mantido por padre Hosaná com uma sua prima (ou sobrinha, conforme alguns relatos), Maria José Martins, que, inclusive, morava na casa paroquial. Todos em Quipapá sabiam do relacionamento dos dois, mas, como sempre acontecia em cidades do interior do país, a união era vista quase como normal, apesar de tudo ser comentado à boca pequena, já que o padre era conhecido por seu temperamento forte e desabrido. Padre Hosaná também era mal visto pela população devido ao fato de que, além de sua “vida pecaminosa”, tornara-se relapso com relação aos seus deveres eclesiásticos, deixando de rezar as missas na igreja de sua paróquia e nas capelas dos distritos vizinhos e preocupando-se mais com uma fazenda que possuía em um município próximo que com seu rebanho. Isso estava se tornando insuportável para os católicos da cidade, ou seja, praticamente toda a população.


Obviamente, quando o romance ficou mais escancarado, o bispo logo foi avisado. Chamado às falas, padre Hosaná negou o romance com a prima, dizendo-se vítima de "boatos de pessoas que querem me afastar da paróquia". Inflexível, o bispo exigiu o afastamento da moça, então já grávida, segundo os paroquianos da cidade, ameaçando suspender o sacerdote de suas funções religiosas. Acossado, Hosaná teve que se curvar á disposição de seu superior e transferiu a prima para outra localidade, não obstante continuar a negar a veracidade do fato.


Acontece que não demorou muito e a cidade foi invadida por novos boatos: o padre teria instalado uma substituta na casa paroquial – uma garota de nome Quitéria –, mais jovem e mais bonita do que a suposta prima anterior; a notícia se espalhou como um rastilho de pólvora, não demorando a chegar aos ouvidos de Dom Francisco, que, imediatamente, convocou seu subordinado para uma conversa franca e definitiva.


O bispo foi curto e grosso: disse ao padre que seu comportamento pecaminoso que escandalizava a cidade estava comprometendo o nome da igreja, não lhe deixando outra alternativa; além do mais, deu-lhe o prazo de quinze dias para que ele afastasse da casa paroquial a mulher que lá vivia, a tal de Quitéria. O padre não obedeceu. E no dia primeiro de julho de 57, em que seria publicado o ato episcopal suspendendo suas ordens sacerdotais, Hosaná, armado com um revólver Taurus, calibre 32, primeiramente se dirige à Rádio Difusora de Garanhuns, onde pretendia se defender das acusações do bispo que ele considera injustas. Entretanto, o pessoal da emissora, barra suas pretensões e se negam a lhe conceder seu direito de defesa. De caráter violento, sai transtornado do local e se dirige ao palácio Episcopal em Garanhuns para, mais uma vez, discutir com o bispo o que ele chamava de “perseguição” contra ele, alimentada, segundo ele e alguns amigos, pelas intrigas do sacristão Luís Gonzaga de Oliveira, carola de carteirinha.


A porta do palácio foi aberta pelo próprio bispo Dom Francisco Expedito Lopes. Aqui as versões se confundem; segundo alguns, assim que abre a porta, Dom Francisco Expedito foi fulminado pelos disparos, não esboçando nenhuma reação. Outros relatos dizem que, aberta a porta, os dois sacerdotes iniciaram uma discussão em altos brados. Quando o bate-boca estava no auge, o padre nem pestaneja, dispara três tiros à queima-roupa no bispo, foge do local e se entrega aos religiosos do Mosteiro de São Bento. O fato é que, tão logo foi baleado, Dom Expedito é levado às pressas para o hospital, mas não resiste aos ferimentos, morrendo na madrugada do dia seguinte. O caso, como não poderia deixar de ser abala Pernambuco, ganha manchetes de jornais em todo o Brasil, com repercussão até no exterior. Afinal de contas, depois se soube, esse tipo de assassinato nunca havia acontecido no país, havendo somente dois precedentes no mundo inteiro em dois séculos, um em Paris, em 1857, quando um padre de nome Louis Verge matou a punhaladas, na igreja de Santa Madalena o arcebispo Dom August Sibour, e um segundo acontecido na capital da Espanha, Madrid, em 1886, quando o abade Galleote Costela assassina a tiros o bispo de Madrid, Dom Martinez Izquierdo.


O padre assassino logo foi capturado pela Polícia e transferido para a casa de detenção de Recife. Não demorou e padre Hosaná recebeu a penalidade máxima de sua igreja: foi excomungado pela alta cúpula do catolicismo.


Enquanto isso, a história do assassinato do bispo ganhava a boca do povo e virava tema de reportagens, livros e até de folhetos de cordel. O primeiro cordel sobre o assunto, de autoria de um certo José Soares, com o título A Morte do Bispo de Garanhuns, foi publicado já aos cinco de julho do mesmo ano, no jornal Diário da Noite de Recife, ganhando após as ruas e as feiras, sendo vendido então, a preço de capa, por quatro cruzeiros. Merece ser transcrito pelo que representa do espírito da época. A transcrição é literal:


“Garanhuns está de luto:

numa bisonha manhã

foi morto dom Expedito,

um bispo de alma sã,

pelo revólver dum padre

partidário de Satã.


Um padre matar um bispo

quase não tem fundamento;

maculou com sua fúria

dos dez, este mandamento:

‘Não Matarás’, disse Deus

no sagrado sacramento.


Quantas vezes esse padre

lá no púlpito a pregar

repetiu nos seus sermões

que Deus não manda matar,

quando ele próprio faz

su’alma se condenar.


É lamentável leit
ores

mas tudo se comprovou

e desse drama de ontem

que a todo o mundo abalou

vou contar em poucas linhas

como tudo se passou.


O padre Hozana Siqueira,

vigário de Quipapá

não cumpria pela regra

a lei de Deus Geová,

ligando pouco os deveres

de ministro de Alá.


Porque ele, sendo padre

estava no seu critério

defender e pugnar

pelo santo presbitério,

combater e condenar

qualquer ato deletério.


Mas o padre assim não fez

e fugindo da rotina

seguindo outro endereço

fora da casa divina

desrespeitando sem medo

a lei da santa doutrina.


Seus atos precipitados

lhe tiram toda razão

prova que ele abraçara

os atos do Deus pagão

repudiando sem asco

a cristã religião.


Se ele não tinha fibra

pra ser ministro de Cristo,

renunciasse à igreja;

hoje estava fora disso:

talvez não fosse assassino,

odiado e mal visto.


Pois bem, esse dito padre

coração de caifaz

achou que tudo fazia

e depois saísse em paz,

dando uma vela a Deus

e outra pra Satanaz.


Foi quando dom Expedito,

o bispo de Garanhuns,

sabendo daqueles fatos

por rumores e zunzuns

resolveu tirar o padre

dos seus atos incumuns.


Fez ciente ao padre Hozana

que este fazia jus

à condenação de Deus

por ser um padre sem luz

ficando o mesmo suspenso

da igreja de Jesus.


O bispo fez o ofício

confiado em Geová

e mandou ao padre Hozana,

vigário de Quipapá,

pra esse ficar suspenso

de fazer sermões por lá.


O padre Hozana ficou

bastante contrariado;

consigo mesmo dizia

‘o bispo está enganado;

eu sou padre na igreja

mas fora sou um danado’.


De rato este padre Hozana

tinha vida dezabrida;

de púlpito da matriz,

a sua doce guarida,

ele espancava a pessoa

que falasse de sua vida.


Descompunha os infelizes

que iam lá na matriz;

espancava até menores

com sua fúria infeliz;

dentro lá de Quipapá

sempre fez o que bem quis.


Então esse dito padre,

ao par da intimação,

disse que dom Expedito

iria pedir perdão

a ele, por ordenar

logo sua suspensão.


Com o revólver na cinta

e no coração o mal,

o padre Hozana seguiu

pra difusora local

tentando manchar o bispo,

nessa hora seu rival.


Chegando na difusora

lá não foi bem recebido;

pra usar o microfone

ele não foi atendido;

então saiu furioso

já bastante decidido.


Chegando na diocese,

quando a porta se abriu,

o bispo Expedito Lopes

na sua frente surgiu;

o padre como um demônio

contra a vítima investiu.


Sacando de seu revólver

nessa triste ocasião,

três estampidos soaram

foi tremenda a explosão,

e logo dom Expedito

ferido tombou no chão.


O primeiro que ouviu

dos estampidos a zuada,

soldado José Cordeiro,

que, não sabendo de nada,

foi entrando no palácio:

ali cismou da parada.


Pois, o padre vinha louco

correndo desembalado,

entrando logo num jeep

ali estacionado,

saindo em velocidade

com destino ignorado.


O soldado então entrou

no palácio episcopal;

seus olhos se depararam

com um quadro sepulcral:

dom Expedito jazia

em sangue ali no local.


Dom Expedito gemia

se contorcendo de dores;

ele, sendo tão pacato,

nunca pensou em horrores;

estava em leito de espinhos

quem tanto cuidou de flores.


Foi levado ao hospital

dali a dado momento

pois a notícia espalhou-se

do triste acontecimento,

e no Hospital Dom Moura

parou o seu sofrimento.


Pois, não suportando as dores

sua vida foi passada

às duas horas e quinze

de uma triste madrugada,

deixando o povo tão triste

e a cidade enlutada.


O mundo é um vale de lágrimas

a morte temos por certo;

nossa vida é por enquanto,

nosso túmulo vive aberto;

contente o bispo vivia

porque ainda não sabia

que a morte estava tão perto.


Terminarei, caros leitores,

nada mais tenho a dizer;

o triste acontecimento

estou disposto a vender;

de um jornal escrevi

porque lá não assisti:

melhor não pude fazer.”


O julgamento, acontecido dois anos depois (20.02.1959), como
não poderia deixar de ser, tornou-se um espetáculo, com repórteres de todo o país e até do exterior. Padre Hosaná nunca confirmou os boatos da ligação com a prima, continuando a defender sua tese de perseguição por parte do bispado. Segundo ele,


“o fato histórico em si eu aceito. A maneira como é contada é inverídica e caluniosa à minha pessoa. Inteiramente falsa”.


A igreja católica, no entanto, utilizou-se de toda a sua força para que padre Hosaná fosse castigado com toda a rigidez da lei. Falava-se na mais
alta pena permitida pela justiça. E qual não foi a surpresa geral quando saiu a sentença: contrariamente do que propagava a imprensa, sob aplausos, padre Hosaná foi condenado a apenas dois anos e seis meses de prisão, e mais dois anos numa clínica psiquiátrica.


A revista O Cruzeiro, em reportagem sobre o julgamento (14.03.1959), sob o título “Prevaleceu a tese da legítima defesa”, assim concluiu sua matéria:


“Depois de ouvida a sentença, o Padre Hosanná, sorrindo, fez acenos para os que tinham aplaudido a decisão do Tribunal. Foi a ocasião de ser cercado por uma equipe de fotógrafos e radialistas. Depois, então, veio a parte familiar. Estavam presentes na sala do júri quatro dos oito irmãos de Hosanná (...) Por um instante, apenas eles deixaram o recinto durante as 13 horas do julgamento. Acompanharam todos os lances da acusação e da defesa com o maior interesse. Após abraços seu irmão, o Sr. Edu Siqueira foi cumprimentar o criminalista (da acusação), Dr. Antônio de Brito Alves, pelo seu brilhante trabalho na tribuna. Estava o Sr. Edu satisfeito com o resultado do ‘affaire’. Enquanto isso, a acusação vai solicitar novo julgamento.


Mais tarde, daria o Padre Hosanná de Siqueira, na Casa de Detenção, uma entrevista das mais curiosas. Estava ele entre detentos que se regozijavam pela sua vitória (parcial) perante a justiça dos homens. Mostrando um sorriso amável, disse Hosanná: Esta batina não me sairá do corpo. Por ele lutarei com todas as minhas forças. Partirei agora para conseguir a minha reintegração dentro da igreja. Adiantou que vai lançar um livro que recebe neste momento os últimos retoques.

Não guardo rancores de ninguém – decla
rou –, não olhei para ninguém com cinismo, como declarou a acusação. Procurava ver apenas os meus acusadores. Se ri, algumas vezes, foi do tamanho da mentira, tanta calúnia contra mim.

Terminando sua entrevista, acentua o Padre Hosanná de Siqueira:


Olhando o Cristo que se acha entronizado no Palácio da Justiça, coloquei a seus pés meu coração agradecido.”


A maior derrotada no julgamento foi, certamente, a igreja católic
a, que se sentiu injuriada com pena tão suave. Na mesma hora, os advogados de acusação e a promotoria recorreram da sentença, fazendo com que o julgamento fosse anulado. O segundo julgamento foi ainda mais confuso, fazendo com que, também, fosse anulado. Finalmente, no terceiro, acontecido em cinco de setembro de 1963, padre Hosana é finalmente condenado a uma pena considerada justa pela igreja e pela sociedade: 19 anos de cadeia. Cumpriu a pena até 05 de setembro de 1968, quando ganhou liberdade condicional.


O epílogo dessa história foi, como sói, exemplar: recolhido em sua fazenda, a 09 km da cidade de Correntes, onde nasceu, o padre Hosana passou a viver da agricultura. Ali, no dia 07/11/1997, aos 84 anos, ele foi assassinado a golpes de madeira na cabeça. O caso de seu assassinato logo se transformou em um quebra-cabeça misterioso para a polícia. Após as primeiras investigações, foram indiciados como autores do crime Cícero Barbosa da Silva e Evalda Maria Peixoto da Silva, um casal de humildes agricultores, residentes nas proximidades da fazenda do ex-padre Hosaná. Entretanto, desde o início das investigações, a promotora de Correntes, Ana Jaqueline Barbosa Lopes, desconfiou de que o casal não fosse realmente os assassinos. E tudo voltou à estaca zero.


Passados os anos, até hoje não se sabe quem matou padre Hosaná. E o bispo Expedito? Após um processo canônico de anos, noticiou-se, em 2005, que ele estaria na iminência de virar santo da igreja católica, muitos dizendo que ele seria o primeiro brasileiro a alcançar tal honraria. Mas, assim como veio, a notícia desapareceu dos noticiários.