12.9.06

JUVENTUDE TRANSVIADA: O CASO AÍDA CURI

A verdade, incontestável, definitiva e sem tergiversações, nunca foi realmente esclarecida; o fato em si chocou o Brasil inteiro, tornou-se um caso célebre e colocou em evidência dois termos que nunca mais saíram do imaginário coletivo dos brasileiros: “Curra” e Juventude Transviada”, este último querendo significar gangs formadas por jovens de classe média, um fenômeno recente na cidade do Rio de Janeiro, e título de um filme que imortalizou o ator James Dean – morto em um acidente com um Porche pouco tempo antes (setembro de 1955) –, filme esse que, junto com mais dois títulos – O Selvagem (direção de Lázló Benedek, 1953), protagonizado por outro rebelde, Marlon Brando, e Sementes de Violência, (direção de Richard Brooks, 1955), com Glenn Ford e um iniciante negro que se tornaria, mais tarde, um superstar ganhador de um Oscar como Melhor Ator, Sidney Poitier, famoso filme por conter em sua trilha sonora o clássico Rock Around the Clock, com Bill Halley and the Comets –, foi o pontapé inicial para uma mudança radical no comportamento da juventude em todo o mundo.

Cena de O Selvagem (em inglês).



Trailer de Juventude Transviada (em inglês).



Cena do fime Sementes de Violência (em inglês).




Noite de 14 de julho de 1958. Cidade do Rio de Janeiro. Bairro de Copacabana. Avenida Atlântica n.º 3.888, Edifício Nobre. Esses os dados factuais que ficariam na história. Aída Curi, uma jovem de 18 anos (ou 23 anos), tão logo termina seu curso de inglês na Cultura Inglesa (também disseram que, na realidade ela era estudante de datilografia), andando a pé pela rua Miguel Lemos, acompanhada de uma amiga, Ione Arruda Gomes, começa a ser paquerada por dois rapazes de boa aparência, “boa pinta” como então se dizia (ou somente por um, segundo outras informações). Um dos rapazes se chamava Ronaldo Guilherme de Souza Castro, natural do Espírito Santo, ora estudando no Rio de Janeiro, de 19 anos, com pinta de galã de cinema francês, que usava um irresistível par de óculos escuros, dando-lhe um ar de playboy que seduzia diversas garotas no aprazível bairro de Copacabana. O suposto acompanhante do conquistador era Cássio Murilo Ferreira, que depois se saberia menor de idade (17 anos). Os rapazes então convidam a ingênua mocinha (recém saída de um colégio de freiras) para (aqui as versões divergem, aliás, como quase tudo a respeito desse assassinato) aprender algumas palavras em inglês, ouvindo um Long Playing com sucessos americanos da época, ou só para ouvir músicas em um apartamento de um amigo, pertinho dali, na avenida Atlântica. Também se disse que, na realidade, ela fora convidada para ver a praia do terraço do prédio. Nunca ficou exatamente claro como uma garota que estudava à noite, esclarecida, mesmo que ingênua, tenha aceitado o convite de estranhos para acompanhá-los a um apartamento ou mesmo ir até o terraço de um edifício assim, sem mais nem menos. O que se especulou é que ela, obviamente impressionada com a educação do rapaz e com sua aparência de bom moço, aceitou o convite, dirigindo-se para o edifício acima mencionado.

Acontece que o amigo mencionado pelos rapazes não es encontrava em seu apartamento. Cássio Murilo então teria sugerido que ambos fossem para o terraço do prédio apreciar o panorama noturno da cidade. Cássio tinha a chave (depois se disse que a mesma lhe fora dada pelo porteiro, que, mais tarde informou à polícia que o “de menor” tinha o costume de arrombar a porta de acesso ao terraço) que permitia o acesso ao espaço por ser sobrinho (ou enteado) do síndico, um coronel do DOPS, o coronel Adauto. A partir desse momento, a maioria dos relatos está envolta em meias verdades, dissimulações, mentiras e falsidades.

O certo é que os dois jovens subiram com Aída Curi para o terraço, com o porteiro também subindo e se escondendo por cima da caixa d’água – um triste voyer – e começaram a importunar a garota. Atônita, ela começou a resistir ao assédio, procurando fugir. Após pouco tempo, um corpo estava estendido no chão da Avenida Atlântica. A jovem fora jogada ou se jogara do edifício para escapar à curra dos “transviados”.

Poucos dias depois do início das investigações, a polícia, com o delegado do 12º Distrito Policial à frente das investigações, chegou aos dois jovens. Também se disse que eles se entregaram após confessar a tragédia (a garota teria pulado do terraço) ao padrasto de Cássio, o coronel Adauto, que os levou à delegacia. Especulou-se então que, após a morte da garota, eles chamaram o coronel (amigo do chefe da polícia, general Amaury Kruel, segundo se apurou) e, para esconder o crime, a solução foi jogá-la terraço abaixo. A imprensa, no início, considerou o crime como mais um trágico acontecimento, quase rotineiro, que, de vez em quando, abalava o popular bairro de Copacabana. No entanto, quando se soube que dois jovens de classe média eram os suspeitos do crime, as redações são tomadas de assalto e um ritmo frenético toma conta dos repórteres policiais. Inicia-se então um busca vertiginosa sobre os antecedentes da vítima e de seus supostos assassinos. Reportagens espetaculares com detalhes do crime e dos criminosos são publicadas nas revistas semanais, principalmente no O Cruzeiro, primeiro pelo repórter Arlindo Silva, seguido, mais tarde, pelo virulento David Nasser, que assumiu, quase como uma missão sagrada, a defesa da mocinha e a demonização dos jovens supostos assassinos.

Os leitores então começaram a conhecer os personagens da tragédia e a realidade que os cercava. Aída Curi foi apresentada como um doce garota, muito religiosa (antiga aluna de um colégio de freiras), ótima aluna, nota dez em quase todas as matérias e em todos os anos, vários prêmios na escola, caseira, que gostava de tocar piano, estando, nos últimos tempos, estudando para um concurso para o IPASE (Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores do Estado), uma autarquia criada em 1938 encarregada de gerir os recursos oriundos das contribuições dos servidores e da União, destinadas ao custeio de diversos benefícios: pensão vitalícia para o cônjuge sobrevivente; pensão para os filhos até a idade de 22 anos; pecúlio; seguro de renda e seguro de morte. Um bom emprego e um futuro promissor para uma jovem bonita, inteligente e estudiosa.

Cássio Murilo foi apontado como o protótipo do bad boy. Era um desocupado, já tinha sido expulso do Ginásio do Alferes por comportamento indigno (não ficou claro que comportamento era esse). Também fora expulso de outro colégio por tentar levantar as saias das garotas e já teria arrombado a porta de um prédio vizinho ao que morava para roubar uma motoneta. Muitos o comparavam com o ator norte-americano Sal Mineo, jovem astro em ascensão, e um dos protagonistas exatamente do filme Juventude Transviada (direção de Nicholas Ray, 1955), que lançara o rebelde James Dean definitivamente ao estrelato. Sal Mineo foi assim descrito por um repórter da revista Manchete:


“Com um rosto de garoto mau, cabeleira preta, pastosa e desarrumada e trajes displicentes, Sal Mineo personificou a caráter o tipo transviado... Depois de cada filme de Sal Mineo, os transviados saem do cinema andando e agindo como se fossem ele e ficam, depois, diante do espelho, estudando o meio de mais se parecerem com ele”.

Sal Mineo interpretando Seven Steps To Love.



Entretanto, não era somente Sal Mineo o único acusado pelo fenômeno alienígeno da juventude transviada: também, como vimos, eram mencionados Elvis Presley, Marlon Brando, Bill Haley, Little Richards (cujo recente sucesso, Tutty Frutty, incendiava as festinhas da moçada), James Dean e o próprio rock and roll. Todos eram vistos com desconfiança pela população em virtude do uso de blusões de couro (quando podiam, já que o produto era relativamente caro), pelas camisas vermelhas, pelos “blue Jeans” (calças de brim que estavam virando febre no meio da juventude), por mascar chicletes e pela dança escandalosa do rock. Todos também queriam usar as possantes motocicletas mostradas nos filmes norte-americanos, mas, pelo baixo poder aquisitivo dos jovens tupiniquins, a maioria se contentava com as lambretas, outro item obrigatória na persona “transviada”.

Little Richards interpretando Tutty Frutty.




De Ronaldo, se disse tudo sobre sua vida pregressa; não obstante pertencer a uma boa e tradicional família, também não era flor que se cheirasse: fora expulso de colégios, acusado de diversas agressões e de ter participado do roubo de um carro pertencente à Secretaria de Agricultura. Também fora preso por indisciplina quando servira no Exército e coisas semelhantes. Viera do Espírito Santo para estudar no Rio de Janeiro e se extraviara do bom caminho. Do porteiro Antônio João de Sousa, pouco se levantou, obviamente por ser pobre e sua vida ser desinteressante para a mídia, apesar de ser acusado com a mesma virulência.

Acuadas pela imprensa, e após a decretação da prisão preventiva dos três acusados pelo juiz Astério Aprígio Machado de Melo, as forças policiais iniciaram uma violenta caçada a todos os jovens da cidade identificados com a juventude transviada; o simples fato de andar de lambreta, ou possuí-las, já identificava os jovens cariocas como maus elementos e sujeitos a serem presos para averiguação. Todos os pontos de encontro da juventude começaram a ser vítimas de “blitzes” pela polícia, que, numa cruzada moralista, cercava ruas e praças e invadia as boates e inferninhos que pululavam por toda Copacabana.

Em uma blitz no Snack Bar, um ponto então na moda, foram presos 66 jovens dos dois sexos, todos levados à delegacia; aliás, o Snack Bar era vítima constante das batidas; na Galeria Alaska, que já possuía péssima fama como ponto de encontro de jovens “transviados” e “maconheiros” (sim, a maconha já estava presente nos círculos freqüentados pelos jovens de classe média do Rio de Janeiro), a polícia prendeu 40 pessoas, muitos menores de idade, que foram enviados para a Delegacia de Menores. Na também boate Katacombe, reduto de jornalistas, boêmios e socialites, onde foi flagrada uma menor, os donos protestaram contra a batida, terminando por serem presos por desacato e arrastados aos solavancos para o camburão. E assim, praticamente todas as casas noturnas da cidade ficaram à mercê das batidas policiais, não escapando nem os inferninhos, nem as mais requintadas como a Balalaika, o Baccará (onde cantavam Dolores Duran e Helena de Lima), a Magriffe, o Little Club, o Ciro’s, o Clube 36, o Texas Bar, o Farolito, a famosa casa noturna Drink, do homem da noite Djalma Ferreira (que lançou ao estrelato o cantor Miltinho), a Arpège e muitas outras.

A princípio, população de maior poder aquisitivo, principalmente a classe média alta apoiava integralmente as operações, considerando-as um meio de “limpar” a cidade contra os “maus elementos”. Porém, a partir de determinado momento, com a conseqüente prisão de diversos integrantes de seu meio social, entre eles vários universitários, e de inocentes nessas batidas, setores da classe média começaram a criticar a atuação e a arrogância da polícia, denunciando maus tratos e prisões sem a devida atenção às normas jurídicas. Pressionada, não demorou e a polícia foi obrigada a paralisar suas operações.

A imprensa também levantou as gírias inventadas pela garotada: “vou lhe dar um banho de lojas”, significava fazer com que a garota se vestisse melhor; “abotoar o paletó” queria dizer matar alguém; “vou limpar minha sola” era pisar o cuspo para dizer que xingou a mãe de um desafeto. “Me dá uma lourinha”, gíria que permanece até hoje, era pedir uma cerveja; “trocar biquinhos” queria dizer beijar e assim por diante. Os jovens eram acusados de usarem uma linguagem cifrada para não serem entendidos pelos mais velhos e pela polícia, o que até hoje é um fato verdadeiro.

Em virtude da implacável perseguição policial, os jovens iniciaram uma verdadeira peregrinação pelos mais diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro; geralmente, antes do início das batidas policiais, o ponto de encontro favorito dos jovens era a Praça do Lido, em Copacabana, no Posto 2; após as perseguições iniciais, muitos mudaram para as imediações do Snack Bar, no Posto 6, também ponto de encontro de jornalistas e intelectuais. Com as batidas e as prisões de menores, os mais corajosos começaram a freqüentar a Barra da Tijuca, então um longínquo e ermo local do Rio de Janeiro, imortalizado no ano anterior pela marcha carnavalesca, que se tornou premonitória, Vai com Jeito, de Braguinha, gravada por Emilinha Borba e a grande vencedora do carnaval do ano anterior (“Se alguém te convidar/Pra tomar banho em Paquetá/ Pra piquenique na Barra da Tijuca/Ou pra fazer um programa no Joá/Menina vai/Com jeito vai/ Senão um dia/A casa cai.”)

Em agosto, saiu o laudo pericial que indicava que a jovem teria sofrido torturas antes de ser subjugada. Segundo esse laudo, havia


“escoriações e equimoses provocadas por unhadas e socos. No peito, no lado esquerdo, aparecem sinais de profundas unhadas. Arranhões nas coxas, ventre, pescoço e equimoses no abdômen. Houve ruptura interna do lábio superior devido a um soco. Tentativas de estrangulamento. Sinais de bofetão no queixo. Marcas nos braços, antebraços, punhos e dorso das mãos (significando ‘ferimentos de defesa’). Algumas marcas no tórax que podiam ser conseqüência de mordida”.


O médico legista, Mário Martins, disse à imprensa acreditar que, após lutar com seus agressores, a vítima deve ter perdido as energias e desfalecido. Tinha a convicção de que ela estava viva quando caiu devido a infiltrações de sangue pelos tecidos do lado direito do corpo, fato que não ocorreria se o coração estivesse sem ação. Ele também, após conferenciar com o promotor e o delegado encarregados do caso, disse à imprensa que “Aída, desfalecida, foi atirada, e parte das escoriações foram produzidas por atrito do corpo nas arestas e bordas do parapeito do terraço”. Disse ainda que todos suspeitavam de que ambos os acusados teriam participado do ato de atirar a jovem do alto do terraço.


Nesse meio tempo, a “canonização” de Aída continuava a pleno vapor pela imprensa, ao lado de uma cruzada pela moralização dos costumes e para a repressão dos ambientes propícios à “perdição” da juventude carioca. Dom Helder Câmara, arcebispo auxiliar do Rio de Janeiro, chegou a comparar a morte da jovem com a da santa da igreja católica, Maria Goretti. Diria também dom Helder:

“Mais uma vez se comprova que os transviados são conseqüência tanto da miséria extrema como do superconforto. Não é por acaso que eles aparecem de preferência entre filhos de favelados e de família da alta sociedade. São vítimas de um clima que ajudamos a criar ou que não ajudamos a modificar, realmente. Todas as marcas no corpo de Aída (da mártir, podemos dizer) revelam o que dão a saturação e a supersaturação sexual em que se movimentam a infância e a adolescência das grandes cidades. Se o doloroso aviso da morte de Aída servir para abrir os olhos de todos nós, responsáveis, abençoado o holocausto da jovem mártir."

Na reconstituição do crime, feito sob severa proteção da polícia já que a multidão queria linchar os acusados, o que se viu foi um festival de acusações, cada um querendo livrar sua cara. Em determinado momento, Ronaldo disse ao suposto cúmplice: “Você, Cássio, não sente o crime que cometeu aqui mesmo neste local, porque você não é humano e não pode ter remorso”. Todos, porém, tiveram a mesma convicção: Ronaldo Guilherme era um exibicionista e bastante cínico. O jovem Cássio Murilo impressionava pela frieza diante dos fatos a que era exposto. Os jovens e o porteiro foram denunciados por homicídio doloso, tentativa de estupro e atentado violento ao pudor.


Só que, em fevereiro de 1959, numa atitude considerada surpreendente, Ronaldo Guilherme foi impronunciado pela justiça, ou seja, considerado inocente de todas as acusações. Em entrevista à Rádio Continental, o juiz Sousa Neto se pronunciou sobre o acontecimento:

“Está provado no processo que Ronaldo foi com Aída ao terraço do Edifício Nobre para um ligeiro romance com pleno conhecimento de Aída. Lá no terraço houve uma divergência entre os dois, porque Aída não queria ir até o fim do romance, desejava, como já disse na sentença de impronúncia, limitar-se aos prefácios do amor, enquanto Ronaldo desejava ter com ela uma plena conjunção carnal. Ronaldo se aborreceu, ficou decepcionado e deu um ligeiro tapa em Aída (...)

Ainda segundo o juiz, Ronaldo teria se afastado do prédio às 08h15min horas, conforme “prova incontroversa”, não podendo ter participado do triste acontecimento.

Aparece então em cena, com mais virulência e entusiasmo, o jornalista da revista O Cruzeiro, David Nasser. Inicia ele uma campanha feroz contra a decisão de Sousa Neto, mobilizando a opinião pública contra a decisão da justiça, no que foi acompanhado por outros órgãos da imprensa. Em poucos dias, pressionado, o Conselho de Justiça anulou o impronunciamento de Ronaldo, que teve de voltar às grades, apresentado ao delegado de Vigilância por seu advogado, Wilson Lopes dos Santos. Um fato, no entanto, unia defesa, acusação: o inquérito fora deverasmente mal instruído durante a fase policial, dirigida pelo delegado Waldir de Matos Dias. A própria promotoria que havia recorrido da decisão do juiz, concordou que havia grandes falhas no processo, que, segundo ela, deixara escapar vários nomes imprescindíveis ao trabalho da acusação.

Presidido pelo juiz Otávio Pinto, no mesmo mês de fevereiro, finalmente iniciou-se o julgamento dos três acusados. A defesa de Ronaldo sustentava a tese de negativa de autoria, argumentando que Aída pulara do terraço. Após 32 horas daquele que foi considerado pela imprensa como “um dos mais dramáticos da história do Tribunal do Júri”, saiu a sentença: 37 anos para Ronaldo e 30 anos para o porteiro João. Cássio, considerado até pelo juiz do caso como o verdadeiro assassino, não pôde ser julgado por ser menor de idade.


O resultado causou verdadeira comoção no público presente à sala de julgamento e na multidão que esperava o veredicto nas imediações do fórum. O delírio foi quase que unânime, Ronaldo saindo do recinto aos gritos de “assassino!...assassino!”. Possesso, ele se dirigia ao corpo de jurados, xingando-o de covarde e vendido. Na realidade, devido à campanha da imprensa, o fim não poderia ser outro. O réu já estava condenado de antemão.

Poucos dias após o veredicto, a imprensa fica de novo assanhada: aparece uma testemunha já mencionada por Ronaldo Guilherme, a famosa “testemunha de preto”, que, segundo o acusado, poderia livrá-lo das acusações e que nunca aparecera. Seu nome era dona Lecy Gomes Lopes e se dizia arrependida por ter se mantido calada durante todo o episódio. Segundo dona Lecy, ela tinha o hábito de passear à noite, entre as 19h00min e 21h00min horas; como de costume, após andar um pouco, acompanhada da filha e da empregada, ela se sentou em um banco na orla da praia, onde se encontrava um casal em situação amorosa. Lembrava-se de ter achado o rapaz bem apessoado e, pelo teor da conversa entre o casal, também bastante educado. Repentinamente, todos vêem um ajuntamento nas imediações do edifício Nobre. Ronaldo teria se levantado e se dirigido para o local, voltando pouco depois relatando o acontecimento.

Entretanto, para sua surpresa, ela viu nos jornais, poucos dias depois, para sua surpresa e de sua filha, a foto de Ronaldo e descobriu que ele estava sendo acusado do crime. Entretanto, por medo de ser envolvida, já que era viúva e com filhos, resolveu ficar calada e acompanhar os acontecimentos. Segundo ela, o remorso a acompanhava, mas a apreensão era mais forte e ela aguardaria o resultado do julgamento para decidir o que faria.

Quando saiu o resultado, entrou em depressão, o remorso ficando mais forte. Começou a ser pressionada pelos filhos e parentes para contar o que sabia, o que realmente fez para alívio de sua consciência. Essa era a verdade, e ela estava pronta para depor a favor de Ronaldo Guilherme no novo julgamento que aconteceria dentro de poucos dias, porquanto a defesa do réu recorrera da sentença de 37 anos.

O novo julgamento, acontecido no mês de março de 1959, já demonstrava uma alteração nas expectativas da população. Em virtude do depoimento de dona Lecy e de diversas reportagens na imprensa que colocavam em dúvidas certezas antes estabelecidas, o comportamento da massa já não era tão agressivo. Aliás, o depoimento da nova testemunha causou espécie no corpo de jurados, já que havia contradição entre o que ela colocara e o depoimento de Ronaldo. Dona Lecy dissera que Ronaldo se encontrava no banco da praia quando ela chegou ao local. Já em seu depoimento, Ronaldo dissera que, um pouco antes do corpo cair do edifício, ele se assentara no banco onde a testemunha já estava presente. O fato de os depoimentos serem contraditórios, foi explorado por ambas as partes. A acusação o usava para dizer que isso demonstrava que tudo era mentira. Já a defesa argumentava que a contradição era a prova cabal que não houvera prévio entendimento entre o acusado e a testemunha.

O depoimento da perícia, também, ajudou Ronaldo Guilherme. Pressionado pelo advogado de defesa, o perito teve que admitir que a marca no rosto de Aída – uma peça importante da acusação –, poderia ter sido provocada por esmagamento do corpo contra a parede do prédio. Ele ainda afirmou que não pôde ser comprovada marcas de dentes nos seios da jovem, como anteriormente fora dito pela imprensa. E um fato que causou grande impacto perante os jurados – as roupas ensangüentadas e rasgadas de Aída apresentadas pelo promotor, além de um lenço também manchado de sangue – por seu turno, foi considerado de pouca importância pelo perito, que esclarecera que as peças foram anteriormente cortadas a bisturi pelos médicos que precisavam enviar pedaços de tecidos para o laboratório para análise. Além do mais, Ronaldo já havia dito que a saia de Aída Curi fora rasgada quando, no terraço, ele tinha batido nas mãos de Cássio para que ele a largasse. Devido à pressão, a saia se rasgara. Essa era a explicação.


Em completa contradição com o que acontecera poucos dias antes, Ronaldo Guilherme, dessa feita, foi absolvido por seis votos contra somente um, ouvindo a sentença, proferida pelo juiz Talavera Bruce, de cabeça baixa, mas sem deixar de demonstrar um meio sorriso de satisfação. Saiu da sala de julgamento sob aplausos do público, a maioria moças e rapazes na casa dos vinte anos. Saiu como herói. Antônio João de Sousa, o porteiro, também foi absolvido.

Após o resultado, a imprensa iniciou as especulações dos motivos da absolvição; o brilhantismo da defesa, a cargo de Romeiro Neto, foi considerado fator essencial do resultado favorável a Ronaldo. Dona Lecy dissera à imprensa que, no seu entendimento, dessa feita houve boa vontade dos jurados em virtude das revelações dos novos fatos, como as especulações de parte da imprensa que agora dizia que Ronaldo não poderia ter matado a jovem por ter sido visto em um bar pelo jornalista Luís Mendes mais ou menos na hora do crime.

O jornal Correio da Manhã, no dia seguinte ao julgamento, estampou editorial em que estranhava a absolvição de Ronaldo, mostrando sua perplexidade frente aos resultados opostos das duas decisões do corpo de jurados:

“O caso dos dois julgamentos de Ronaldo de Souza Castro, no Tribunal do Júri, dá que pensar. Dá que pensar na instituição do Júri no Brasil. É estranhável essa instituição que, funcionando duas vezes, uma quase em seguida à outra, conclui da primeira que um réu merece por crime de homicídio 25 anos de prisão, e da segunda que deve ser absolvido. Ronaldo que fora condenado a 37 e meio anos de prisão (os restantes por atentado violento ao pudor e tentativa de estupro) fica apenas com as penas por crime sexual agora. É verdade que o promotor vai apelar para novo julgamento, agora para o Tribunal de Justiça, e conforme forem as coisas, Ronaldo poderá voltar ainda ao Júri que sabe Deus o que fará.

Este jornal, examinando o horrendo assassínio de Aída Curi, desde o início do caso, firmou sua opinião de que o desfecho, o homicídio propriamente dito, era culpa de Cácio Murilo, que no primeiro Júri foi acusar Ronaldo, embora não possa ser julgado por ser menor... Exculpar Ronaldo (e o porteiro Antônio João) de colaboradores de Cácio mesmo no homicídio, parece-nos, porém, falsear o papel da Justiça. A Justiça é cega a influências estranhas, a suborno, a impactos emocionais injustificáveis. Não é cega à conformação geral de um crime.


Ronaldo, que agrediu Aída, tentou violentá-la e a abandonou lívida de pavor à sanha do seu sinistro cupincha Cácio, é também culpado de homicídio. Não no mesmo grau daquele que, ao que tudo indica, empurrou a vítima do alto do edifício, mas como cúmplice. Se virmos alguém afiar uma faca e passá-la a outro para que cometa um assassínio, não vamos concluir que exerceu um simples papel de amolador de facas. Tirar Ronaldo, por completo, do quadro do homicídio de Aída Curi parece-nos um insulto ao senso de humanidade de nós todos - e ao próprio bom senso.

Mas que dizer do Júri, que parece funcionar no Brasil ao sabor de todos os ventos? Que houvesse diminuído a pena de Ronaldo compreenderíamos. Mas apagá-la por inteiro? Passar de 25 anos, um quarto de século, a zero, em pouco mais de um mês?

A idéia do Júri é a de submeter um acusado ao juízo de seus, concidadãos, chamados a opinar sobre os fatos do caso, e apenas sobre os fatos, mas de um ponto de vista mais geral do que o da Justiça togada. Será que, no Brasil, os males de uma meia educação da qual estamos ainda longe de nos livrar é que se reflete no Júri de forma tão desapontadora? Num país como o nosso onde felizmente não existe pena de morte não se justifica a brandura, quase a moleza com que o Júri absolve criminosos medonhos. Por isso mesmo existe entre nós, uma grande e responsável corrente de pessoas contra o Júri: temem que essa moleza nos leve, por uma reação, à pena capital.

O segundo julgamento desse Ronaldo coloca mais uma vez o Júri em situação estranha. Assim como o caso, mais terrível ainda, do seu cúmplice e agora inimigo Cácio (como no cinema os “gangsters” quando apanhados, sempre se acusam mutuamente) coloca em xeque nossa concepção penal do menor. A Justiça no Brasil precisa de uma remodelação. No passo em que vamos, estamos abrindo caminho para os que desejam o pior: a pena de morte, para que no Brasil a vida não continue a ser um objeto tratado com tanto desdém pelos Cácios e Ronaldos.

Por seu lado, a revista O Cruzeiro, nunca se conformou com o veredicto. Continuou investigando o caso e publicando reportagens contra Ronaldo ao longo dos meses seguintes. Em 2 de abril de 1960, por exemplo, podia-se ler na prestigiosa revista a seguinte reportagem:

Aída Curi morreu duas vezes. A primeira foi há 20 meses, quando os monstros curradores a atiraram do alto do edifício Nobre à calçada. A segunda foi agora, quando o júri espezinhou a sua memória, absolvendo um criminoso da laia de Ronaldo Guilherme de Souza Castro. O júri salvou o tarado currador, mas, ao mesmo tempo, morreu no conceito público como instituição de justiça. A absolvição desse asqueroso Ronaldo veio demonstrar que justiça nesta terra parece que ainda tem de ser feita com as próprias mãos. Graças a Deus que as palmas batidas na hora em que o Juiz pronunciou a sentença absolutória partiram de blocos de rapazes e moças transviados, que agora têm em Ronaldo o seu ídolo e o seu patrono.

Em São Paulo, durante um baile em que se dançava “rock'n'roll”, meninas e molecotes gritaram “Ronaldo! Ronaldo!”, no instante em que lá chegou a notícia de que o matador de Aída conseguira escapar às garras curtas da Justiça. Mas, em compensação, no seio das famílias brasileiras, em todos os rincões deste País, mães e pais, avôs e avós, filhos e filhas de alma pura e boa formação, quedaram-se estupefatos e baixaram os olhos desolados, porque acabava de ser oficializada a curra no Brasil.

De agora em diante, as mães de família devem ensinar a suas filhas a arte de manusear revólveres, porque só assim poderão fazer justiça aos Ronaldos que andam soltos por aí - e que, de agora em diante, hão de proliferar como erva daninha. Agora, a ninguém é lícito esperar justiça de um júri como esse, que desprezou as provas do processo para absolver um monstro cínico como Ronaldo.

Disse o Promotor Maurílio Bruno que correu um mar de lama por baixo do processo Aída Curi. E, nele, muita gente mergulhou para soltar “testemunhas-bomba” e perturbador o curso normal da Justiça. Doravante, só os criminosos vulgares, os assassinos das favelas, os “Carnes-Secas” e os “Cabeleiras” continuarão temendo a Justiça. Os Ronaldos continuarão seguros da impunidade. A verdade é dolorosa, mas deve ser dita: condenar criminoso rico, por mais que se trabalhe no sentido de defender a sociedade, é tarefa das mais difíceis.

Em tudo isso, há fatos que nos deixam boquiabertos. Um dos jurados que absolveram Ronaldo é pai de uma jovem que, há pouco tempo, quase foi currada. Para defender a filha, esse jurado agrediu o autor do atentado e foi defendido na Justiça pelo Dr. José Valadão, advogado da família de Aída Curi. Pois esse jurado foi dos que mais batalharam pela absolvição do monstro de óculo escuros! Por aí se pode imaginar que tramas teriam sido urdidas nos bastidores do julgamento desse verme humano que se chama Ronaldo. Provas existem de sobra, no processo, para condenar Ronaldo, Cácio (sic) Murilo e o porteiro. Mas, em vez de ouvir a leitura dessas provas, vários jurados dormiram e roncaram durante a sessão. Se não fosse proibido fazer fotografias em plenário, poder-se-ia ter documentado, fartamente, jurados comunicando-se entre si e até mesmo um deles trocando palavras com o Dr. Romeiro Neto, advogado de defesa. Uma só dessas fotografias seria suficiente para anular o julgamento.e

Como desfecho do caso Aída Curi, houve ainda um terceiro julgamento, cujo resultado pode ser entendido como um meio termo entre os dois anteriores: Ronaldo foi julgado por homicídio simples e tentativa de estupro e pegou uma pena de seis anos. Após recorrer da sentença, o promotor Pedro Henrique Miranda conseguiu que a pena fosse aumentada para oito anos e nove meses. Depois, depois, após ser solto, Ronaldo se tornaria empresário em seu Estado, o Espírito Santo.

Cássio Murilo, por ser menor e inimputável, foi encaminhado ao Sistema de Assistência ao Menor (SAM), de onde saiu direto para prestar o serviço militar. Alguns anos depois, ele seria acusado de ter matado um vigia de automóveis, fugindo para o exterior até que a pena pelo assassinato fosse prescrita.

O porteiro Antônio João de Sousa, após ser absolvido no segundo julgamento, não participou do terceiro julgamento; nunca mais foi visto, desaparecendo para sempre, um mistério que perdura até hoje. E o caso Aída Curi permanece até hoje no imaginário popular brasileiro como um dos mais célebres crimes da história do Brasil.