20.8.06

"CANÇÃO DE AMOR": ELISETE PEDE PASSAGEM

"Saudade
Torrente de paixão
Emoção diferente
Que aniquila
A vida da gente
Numa dor
Que não sei de onde vem.

Deixaste
Meu coração vazio
Deixaste a saudade
Ao desprezares
Aquela amizade
Que nasceu
Ao chamar-te meu bem.

Das cinzas de meu sonho
Um hino, então, componho
Sofrendo a desilusão
Que me invade
Canção de amor
Saudade..."


Elisete Cardoso interpretando Canção de Amor.







Quando, no início de 51, os rádio-ouvintes escutaram, pela primeira vez, esta música, as reações eram de dúvidas: quem seria a cantora com voz tão maravilhosa? De quem seria esta música cantada de forma tão emocionante, bastante diferente dos boleros, baiões, sambas, tangos e marchas que dominavam a cena musical?

A voz era de Elisete Cardoso (1920 - 1990), cantora razoavelmente veterana, mas, praticamente desconhecida do grande público, e a música se chamava Canção de Amor, de Chocolate e Elano de Paula, que, paulatinamente, começa a agradar o grande público comprador de discos, até alcançar o topo da parada da Revista do Rádio (nº 83), colocando a cantora na boca do povo.

Depois cognominada “A Divina”, A Magnífica”, “A Enluarada”, ninguém, naquele momento, poderia supor que aquela jovem mulata chegasse a ser considerada, por muitos críticos, como a maior cantora brasileira de todos os tempos, somente comparada a Ângela Maria, Dalva de Oliveira e, mais tarde, Elis Regina.

Elisete Cardoso nasceu no Rio de Janeiro, em São Francisco Xavier, aos 16 de julho de 1920, filha da baiana Dona Moreninha, que gostava de uma cantoria, e de Jaime Cardoso, mulato, boêmio, fiscal da prefeitura por profissão, que, tocando violão, gostava de farras, de serestas e de mulheres. Caçula de quatro irmãs e um irmão, já aos cinco anos de idade, Elisete estreava como cantora na famosa casa de danças Kananga do Japão, aliás, Sociedade Familiar Dançante Kananga do Japão, situada à Rua Senador Eusébio, 44, bastante freqüentada por grandes nomes do samba como Sinhô, Pixinguinha, J. Bulhões, João de Barro e outros bambas da época. Muito desinibida, a garotinha, após ganhar um concurso de danças (dançou o "charleston", ritmo norte-americano, muito em voga naquele momento), perguntou ao pianista Tojeiro se também poderia cantar. Recebendo resposta afirmativa, e inquirida sobre qual musica cantaria, aquela menina ousada prontamente respondeu: Zizinha.

Zizinha, de José Francisco de Freitas, Carlos Bittencourt e Cardoso de Meneses, uma das marchinhas de maior sucesso do carnaval daquele ano, tinha uma letra maliciosa e cheia de segundas intenções, muito comum por ter sido lançada em uma revista teatral (Se a Moda Pega, de 1926)), no teatro João Caetano, cantada por Otília Amorim, a grande estrela do teatro de revistas das décadas de 20 e 30. Mas, a garota Elisete nem sabia o significado da palavra malícia, sequer entendendo o que a letra dizia:

"Por ser deveras conhecida
Palavra, eu ando aborrecida
Em qualquer lugar
Quando a passear
Sou muito perseguida
O meu tormento não tem fim
Nunca pensei sofrer assim
Velhos e mocinhos
Pedem-me beijinhos
Dizendo, enfim, pra mim:

Zizinha, Zizinha
Zizinha, Zizinha
Ó, vem comigo, vem
Minha santinha
Também quero tirar
Uma casquinha.
Noutro dia num bondinho
Um coronel, já bem velhinho
Deu-me um beliscão
Pegou-me na mão
Tais coisas fez enfim
Que quando olhei admirada
Até parecia caçoada
Ainda suspirou
Os olhos revirou
Dizendo
assim pra mim:
Zizinha, Zizinha.

(...)"

Pouco depois, a família se muda para longe da Kananga, indo morar em Jacarepaguá, lugar distante e idílico, tomado por sítios e grandes quintais abarrotados de frutas. Nesse então paradisíaco lugar, Elisete tem outra chance de brilhar como estrela-mirim, agora no picadeiro do Circo Infantil do Largo do Tanque. É uma época alegre e feliz, mas que pouco dura. Logo também teriam que mudar de Jacarepaguá, a família passando por dificuldades financeiras devido às inconstâncias do velho Cardoso; Elisete, para ajudar a família, abandona a escola para trabalhar como babá na Lapa e, pouco depois, como balconista em uma charutaria na Rua São José, no centro do Rio de Janeiro.

Após essas primeiras experiências, e à medida que crescia, os trabalhos se tornam constantes para a garota. Trabalha em uma bombonière, numa oficina de peleteria, como telefonista, numa fábrica de sapóleos, num salão de beleza, esticando cabelos, e como manicure. Os tempos eram mesmos difíceis.

Em 1936, acontece sua famosa festa de aniversário; morando na Rua do Resende, 87, e já apreciada como cantora em um círculo fechado de parentes e amigos de seu tio Pedro, que, orgulhosamente, gostava de exibir seus dotes vocais, Elisete, quase sempre, acompanhava o tio em festas nas quais geralmente estavam presentes músicos, compositores e artistas do rádio. Pixinguinha é um deles. Assim, quando da festa de seus dezesseis anos, a casa de Elisete está tomada por vários músicos, entre eles Jacó do Bandolim.

Jacó (1918 - 1969), àquela altura, com cerca de 18 anos, já é um nome com certo prestígio nos meios artísticos, apesar da pouca idade. Em 1934, ganha, com um grupo musical, um concurso na Rádio Guanabara (Programa dos Novos), obtendo a nota máxima de um júri composto por Orestes Barbosa, Benedito Lacerda, Frazão, Francisco Alves e Cristóvão de Alencar. Logo após, é contratado para acompanhar cantores da rádio, seu grupo agora denominado "Jacó e sua Gente".

Tio Pedro, para exibir a sobrinha mais uma vez, pede a Jacó e seu grupo que a acompanhe em um número musical. Elisete, que sabe quase todas as músicas da época, escolhe Duas Lágrimas ("Duas lágrimas derramei/Sofri tanto/Que sem querer chorei..."), de Benedito Lacerda e Herivelto Martins, música que praticamente ninguém conhecia, por ter sido lançada por Nestor Amaral poucos meses atrás. Canta, também, Do Amor ao Ódio ("Queres saber a razão/Do ódio que guardo de ti/Causa do meu dissabor..."), de Heitor Catumbi e Luís Bittencourt, integrante do conjunto de Jacó, e que fazia parte do repertório de Moreira da Silva, o Morengueira.

Entusiasmado com voz tão espetacular, Jacó logo comenta com todos que irá levar a mocinha Elisete para cantar na Rádio Guanabara, onde ainda estava atuando. Obviamente, devido à má fama que então acompanhava os artistas de rádio, o pai de Elisete logo se manifesta contra. Em vão. Seria impossível separá-la da vida artística.

Indo para a Rádio Guanabara, em agosto/36, Elisete começa a cantar no Programa Suburbano, às terças-feiras, tendo como companheiros de profissão estrelas do porte de Vicente Celestino, Marília Batista, Aracy de Almeida e Noel Rosa, que, inclusive, lhe ensina a música de sua autoria Quem Ri Melhor para fazer parte de seu (dela) repertório. Ainda imatura, ganhando cachê de 15 mil réis, Elisete imita diversas cantoras que então fazem sucesso, tais como Aracy de Almeida, Odete Amaral e a própria Marília Batista.

Sem contrato, porém, assim que termina sua temporada na Rádio Guanabara, Elisete vai para a Rádio Educadora, onde se apresenta no programa Samba e Outras Coisas, apresentado pelos irmãos Henrique e Marília Batista. Ali também fica por pouco tempo, transferindo-se, pouco depois, para a Rádio Transmissora, atuando no programa Rádio Novidades, onde canta, pela primeira vez, com uma orquestra, orquestra essa regida pelo maestro Fon-Fon. Logo, logo, já está em outra, indo para a Rádio Mayrink Veiga, atuando junto a Ciro Monteiro e a um jovem cantor e compositor baiano, Dorival Caymmi.

Apesar de todos esses trabalhos, sua carreira não deslancha; decide, então, acompanhar uma companhia teatral de Pedro Gonçalves e De Chocolat para atuar em Belo Horizonte, conhecendo, durante a viagem, o instrumentista e comediante Ari Valdez, o Tatuzinho, o rei do cavaquinho, com quem logo começa a namorar. Não demora muito e, pouco depois, estava de novo viajando com o grupo, agora para Belém do Pará, onde, aos 19 anos se casa com o companheiro de trabalho. Como este era um tanto quanto pirado, o casamento não poderia dar certo. Elisete, separada, grávida, arrimo de família e, depois da excursão, sem contrato algum, entra em um período de penosas dificuldades financeiras; começa, então, mesmo grávida, a trabalhar como dançarina no dancing Avenida, lugar bastante bem frequentado, e onde o respeito era absoluto. E não demora a ser contratada como cantora, após um teste em que interpreta a recém-gravada Leva Meu Samba ("Leva meu samba/Meu mensageiro/Esse recado/ Para o meu amor primeiro..."), de Ataulfo Alves. Isso, em 1941.

Atulfo Alves interpretando Leva Meu Samba.















Por essa época, as coisas começam a melhorar; torna-se atração do dancing, cantando, quase sempre, Wilson Batista, Ataulfo Alves e Dorival Caymmi. Logo consegue um contrato para atuar na noite em São Paulo, no dancing Salão Verde, onde permanece por cerca de 1 ano, após o que retorna para o Avenida, como "Lady-Crooner" da orquestra do Dedé, com quem tinha um caso amoroso desde sua temporada em São Paulo. Também por pouco tempo; logo sai do Avenida, indo atuar em diversas outras casas noturnas, o Brasil, o Eldorado, o Belas-Artes, o Samba Danças, além de voltar a ser crooner da orquestra de Guilherme Pereira, autor de um relativo sucesso de Orlando Silva, Última Canção.

E assim foram indo as coisas, até que raia o ano de 1948. Elisete, apesar de já ser quase uma veterana, elogiada por todo o mundo que a ouvia cantar e possuir um porte de rainha, não consegue construir uma carreira sólida. Até que, por intermédio de Ataulfo Alves e Grande Otelo, submete-se a mais um teste, agora para cantar novamente na Rádio Guanabara, sendo, obviamente, aprovada. Imediatamente, assina com a rádio, ganhando Cr$ 1.500,00 por mês, quantia razoável para quem passava por tantas dificuldades. Era o início de uma longa caminhada.

Em 1950, mais uma vez, Ataulfo Alves ajuda na carreira de Elisete. Por seu intermédio, a cantora consegue gravar seu primeiro disco na pequena gravadora Star, criada em 1947 para concorrer com as poderosas Odeon, RCA Victor e Continental, ambas multinacionais.

Para tentar abocanhar ao menos uma fatia modesta desse mercado em expansão, a Star precisaria montar um elenco, no mínimo, razoável, misturando velhos artistas com as últimas revelações do meio artístico. E assim foi feito. De seu elenco, faziam parte novatos como Marlene, Jorge Goulart, Elza Laranjeiras, uma cantora paulista de ótimos dotes vocais, Agostinho dos Santos, além de veteranos e semi-veteranos: Onésimo Gomes, Odete Amaral, Ataulfo Alves, Alcides Gerardi, Moreira da Silva, Carmem Costa, a mocinha da Atlândida, Adelaide Chiozzo, Orlando Silva, Valdir Calmon e seu Conjunto e outros mais. Apesar de sua breve existência (5 anos), a Star lançou uma infinidade de clássicos da música popular brasileira, Sanfoneiro Joaquim (Zé da Zilda e Zilda do Zé), Você Diz Que é Baiana (Roberto Martins), Violão (Onésimo Gomes), Vida de Minha Vida (Ataulfo Alves), Juracy (Roberto Martins), Candonga (Marlene), Silencioso (Albertinho Fortuna) e, aproveitando a onda fulminante do bolero, lança Juan Daniel, pai do futuro todo-poderoso, Daniel Filho, cantando Pecadora, o grande sucesso de quase todos os cantores latinos.

Roberto Silva interpretando Juracy.
















Pedro Vargas e Perez Prado interpretando Pecadora.




Para sua estréia (1950), Elisete escolhe o samba Braços Vazios (Acir Alves/Edgar Alves), de um lado, e, do outro, Mensageiro da Saudade (Ataulfo Alves). No entanto, a sorte parecia conspirar mesmo contra ela. Tão logo distribuídos, os discos tiveram que ser recolhidos, por apresentarem defeitos irremediáveis. De qualquer maneira, as portas das gravadoras foram abertas. Era só uma questão de espera. E Elisete não teve que esperar muito.


Elisete Cardoso interpretando Mensageiro da Saudade.





Erasmo Silva, compositor de renome, ouvindo-a cantar no dancing Avenida, onde Elisete ainda atuava, percebe o imenso potencial da cantora. Imediatamente, convida o compositor Antônio Almeida, um dos diretores de uma gravadora - a Todamérica - prestes a se lançar no mercado, para irem ao dancing ouvi-la cantar. Elisete canta nessa ocasião a música Canção de Amor, de Chocolate e Elano de Paula, irmão de um promissor Chico Anísio.

Antônio Almeida fica deslumbrado com Elisete. E, em 25 de julho de 1950, todos ainda arrasados com a derrota do Brasil para o Uruguai, acontecida nove dias atrás, a cantora entra em estúdio para gravar o seu verdadeiro primeiro disco. As músicas escolhidas foram Complexo, de Wilson Batista, no lado A, geralmente a que teria sua divulgação garantida nas rádios; e, do outro lado, exatamente Canção de Amor.

Como curiosidade, um fato que mudaria a estrutura musical de Canção de Amor: Os músicos (12 dos 18 instrumentistas de cordas) que participariam das gravações, quase todos da Rádio Nacional, tiveram problemas com a gravação de Complexo, que demorara mais do que o previsto, devido ao arranjo do maestro Pachequinho. Como ainda teriam que trabalhar na rádio, a maioria foi embora, deixando apenas aqueles seis, que não poderiam, sozinhos, gravar a outra música, também bastante complexa. O certo seria deixar a gravação para outro dia, o que foi prontamente recusado por um dos compositores, Elano de Paula. Num estalo, pede aos músicos e ao maestro que o esperassem por um tempo e corre para a Rádio Tupi, onde trabalhava um saxofonista de primeiríssima qualidade, Zé Bodega, levando-o, imediatamente para a gravadora, ensinando-lhe a música durante a viagem até o estúdio. Como resultado, aquele solo maravilhoso do início e do fim da música foi executado por Zé Bodega, tornando a música simplesmente irresistível. Era o início do estrelato de Elisete Cardoso, “A Enluarada”, “A Divina”, “A Magnífica".

2 comentários:

sercar disse...

O Blog é sensacional, hoje ouvi elizeth Cardoso, Cartola, Simone. Vi Sergio Bitencourt, Pixinguinha, tive notícias do Dancing Avenida e muito mais coisas, é muito gostoso rememorar coisas vividas e coisas sonhadas. Meus parabéns

milton brito disse...

Hoje tive a felicidade de encontrar um blog como este que trata de assunto tão importante como é a MPB, essencia e retrato de nossa cultura esquecida por uma midia descomprometida com as coisas de nosso país. Procurava notícias do Dancing Avenida onde cantei pela primeira vez no Rio de Janeiro levado pelas mãos de Jamelão, figura inesquecível, antes de gravar na RCA VICTOR. Deparei com Carmem Silva e depois com a Divina que durante alguns anos tive o prazer de avistar muitas vezes, ali no Flamengo, onde morei.Elizete é insuperável.