16.8.06

"CAIÇARA"; A VERA CRUZ É UMA REALIDADE

Antes de voltar à Europa para organizar suas coisas, procurar técnicos capacitados e dispostos a vir para os trópicos, vender suas propriedades e se preocupar somente com a produção cinematográfica da Vera Cruz, Alberto Cavalcanti solicitou três providências à diretoria da empresa: primeiro, que os responsáveis pelo argumento/roteiro do primeiro filme escolhido para ser rodado – Caiçara - trabalhassem mais arduamente nele, porquanto o achava recheado de problemas. Segundo, a direção da empresa deveria procurar as distribuidoras Columbia e Universal (preferencialmente a primeira, por ter-lhe oferecido adiantamento financeiro sobre as rendas dos filmes distribuídos por ela), para fecharem um contrato de distribuição dos filmes a serem realizados pela companhia, fundamental para qualquer empresa se dar bem no vigoroso mercado cinematográfico. E, por último, iniciar negociações visando à compra, nos Estados Unidos da América, de todo o aparelhamento sonoro para os estúdios, mais precisamente da Western Electric, o melhor do mundo, segundo ele.

A primeira decepção pegou Cavalcanti ainda na Europa. Ao invés de aparelhos novos e modernos, informaram-lhe que o pessoal encarregado já havia adquirido, de segunda mão, parte dos aparelhos, ainda por cima da marca RCA. A segunda decepção o aguardaria no Brasil; assim que volta da Europa, em janeiro de 1950, foi informado de que Adolfo Celi, escolhido para dirigir o filme, sequer tocara no roteiro, ocupado que estava na direção de Entre Quatro Paredes, de Sartre, peça escolhida para abrir a temporada teatral do TBC de 1950. E para completar, o contrato de distribuição fora firmado com a Universal, aliás, em péssimas condições, segundo Cavalcanti. Com tudo isso, o famoso cineasta pressentiu que sua passagem pela Vera Cruz seria bastante espinhosa, para dizer o mínimo.


A máquina de propaganda montada pelo estúdio, assim que recebe o sinal verde, começa a funcionar: anuncia pelos jornais que a produção precisa de artistas para completar o elenco do filme e inunda as redações com releases sobre a companhia, seus diretores, seu elenco de astros e estrelas e a iminente produção de Caiçara. Também, e paralelamente, são iniciados os trabalhos de infra-estrutura para os estúdios; técnicos de todas as espécies são contratados, o setor de roteiros é instalado e assim por diante. Não demora e a equipe técnica, além dos principais atores, estava escolhida para o início das locações externas: na produção geral, Alberto Cavalcanti. Na direção, Adolfo Celi, assistido pelo futuro cineasta Trigueirinho Neto (Bahia de Todos os Santos) e por Ruggero Jacobbi, que seria o diretor do segundo filme a ser produzido pela companhia, Terra É Sempre Terra.
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Os dois nomes escolhidos para dirigir os dois primeiros filmes da Vera Cruz não agradam Cavalcanti, que os considerava inadequados e inexperientes para trabalho de tal envergadura. Primeiramente, não gostara do argumento escolhido por Celi para ser o cartão de visitas da nova companhia cinematográfica. Por outro lado, não queria ser apontado como um ditador, aceitando ambos – diretor e argumento – com a máxima boa vontade, mesmo considerando que Celi não possuía nenhuma bagagem cinematográfica, tendo participado do cinema italiano somente como coadjuvante (Proibito Robare, de Luigi Comencini, Natali al Campo, de Pietro Francisci, Emigrantes, de Aldo Fabrizi etc.), sem traquejo, portanto. O mesmo poderia ser dito com relação a Ruggero Jacobbi, um homem sem nenhuma experiência mais arrojada no cinema e que, por isso, necessitaria de apoio firme e constante.


O gerente de produção e diretor da segunda equipe seria John Waterhouse, assistido pelo futuro diretor Tom Payne. O grande Chick Fowle (e Joe Jago) seria o encarregado pela fotografia, ficando para Adalberto Kenemy, Jacques Deheinzelin e Bob Hencke os serviços de cameramen. Afonso Schmidt e Gustavo Nonnenberg criaram os diálogos, e a sonografia ficaria a cargo de Érico Rasmusen, com assistência de Howard Randall. Aldo Calvo ficou encarregado da cenografia e Carla Civelli, pela montagem do filme.


Para encabeçar o elenco de Caiçara, dois desconhecidos: Eliane Lage, lindíssima e enigmática mulher, e o futuro galã dos estúdios, Mário Sérgio. Assim que os dois são escolhidos, a máquina de publicidade volta à cena com toda a carga. E logo o Brasil inteiro fica sabendo que a atriz principal pertencia a uma das mais tradicionais famílias cariocas, que estudara no Colégio Sion, sendo educadíssima e falando fluentemente francês e Inglês. Estava morando por uns tempos na Europa e, voltando ao Brasil, fora imediatamente contratada para ser a atriz principal de Caiçara.

Documentário sobre Eliane Lage, de Ana Carolina Maciel.





Seu galã no filme, Mário Sérgio (1929 -1981), natural da cidade de Santos, segundo a publicidade (na maioria das vezes enganosa e fictícia) era um desportista, preparando-se para a universidade quando fora descoberto e chamado para o filme, em parte, graças ao seu “belo porte” e seu “sorriso atraente”. Tornar-se-ia um dos principais galãs da nova companhia, apesar de sua carreira ter durado menos de 10 anos.

Com a equipe completa e o elenco confirmado, todos rumam para Ilhabela, escolhida para servir de locação para as filmagens.

Cavalcanti chegou a declarar, algum tempo depois, que a produção dos exteriores correra normalmente, com as dificuldades habituais desse gênero de trabalho. Mas, na verdade, algo de errado estava acontecendo, já que o início das filmagens, programado para primeiro de janeiro, somente aconteceria em fins de março, quase três meses de atraso. O mesmo Cavalcanti, no entanto, em entrevista a O Estado de São Paulo, se queixa de dificuldades burocráticas para a chegada dos equipamentos adquiridos no exterior, como também da falta de filmes virgens, que, segundo ele, somente eram encontrados no mercado negro e a preços exorbitantes.


Na realidade, diversos contratempos realmente aconteceram durante o período de filmagem. Primeiro, a produção foi prejudicada pelo mau tempo, o que atrasou o início das filmagens por vários dias; depois, Rasmusen adoeceu, sendo substituído por Randall, contratado por Zampari, e que se mostrou incapaz de lidar com a aparelhagem de som, nova e sofisticada. Incapazes também se mostraram Carla Civelli, tendo que ser substituída prontamente por Hafenrichter, e Carlos Zampari, que não entendia bulhufas do assunto, e era outro peso morto, sendo objeto de comentários maldosos e deboche por parte da equipe técnica, por sua total inabilidade. Outro problema era Aldo Calvo, cenógrafo do TBC. O artista era considerado um irresponsável que não cumpria seus compromissos nos prazos determinados, fazendo com que Cavalcanti trabalhasse dobrado.
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Para piorar as coisas, a convivência entre os técnicos brasileiros e estrangeiros era a pior possível. Os brasileiros se queixavam de que eram discriminados pelos estrangeiros que, além dos salários muito mais altos, eram tratados a pão-de-ló, com chás e simpatias a toda hora, ao contrário dos nativos que recebiam tratamento de segunda classe. Adolfo Celi, como temido por Cavalcanti, se torna uma cruz em sua vida. Além de se julgar superior, não se mostrava familiarizado com as técnicas cinematográficas, além de ser lento e hesitante, dirigindo os atores com mãos pesadas. Tudo isso provocava intensas brigas entre os dois. Cavalcanti, mesmo assim, trazia as filmagens sob estreita vigilância.
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Após seis meses, a equipe volta para São Bernardo para as filmagens dos interiores. Mais contrariedade e trabalho para Cavalcanti, uma vez que Aldo Calvo, mais uma vez, não dera conta da montagem dos cenários, obrigando o cineasta a fazer serão para completar os serviços de cenografia. Aborrecido com o técnico, Cavalcanti pediu sua cabeça, no que foi prontamente recusado pela Vera Cruz.

Caiçara, um melodrama, tem um enredo simples. Marina, a heroína da história é filha de leprosos e foi criada em um asilo. Zé Amaro, um ilhéu quarentão, a vê na rua e se apaixona por ela. Como o orfanato representa para ela uma prisão, nossa heroína só vê seu relacionamento com Zé como saída para sua infelicidade. Os dois se casam e vão morar em Ilha Verde, terra de Zé Amaro. Depois da chegada do casal à ilha, os conflitos de delineiam. Zé Amaro vive bêbado. Manuel, seu sócio em um estaleiro, se apaixona por Marina de forma absoluta, enquanto o relacionamento do casal se deteriora. O único conforto da heroína é o menino Chico, cuja avó, mãe da anterior esposa de Zé Amaro, a quem acusa de ter assassinado a primeira mulher, é adepta da macumba, ritual com presença forte ao longo do filme. Também Alberto, um marinheiro que conhecera Zé Amaro, chega à ilha com o retrato do casal, terminando por trabalhar no estaleiro e se apaixonando pela patroa.Toda a história tem como pano de fundo o acompanhamento dos relacionamentos por parte dos caiçaras. Eles são como a plateia de um filme: sabem de tudo o que acontece, comentam os acontecimentos, mas não participam da trama. Só esperam o desfecho das relações conflituosas. Assim, Manuel persegue Marina que o repele, mas não evita o conflito entre os dois sócios. Marina, entretanto, se apaixona por Alberto e mais um conflito se configura perante os caiçaras. Através da macumba e das mãos assassinas de Manuel, Marina consegue se livrar do marido, livrando-se, logo após, de Manuel que morre após assassinar um garoto da ilha, e, assim, consegue viver seu amor.
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O filme – que participou do festival de Cannes em 1951 – entrou oficialmente em cartaz a 1.° de novembro de 1950, em dobradinha com um documentário - Painel - sobre a famosa tela de Cândido Portinari Tiradentes, dirigido pelo futuro laureado Lima Barreto, recebendo críticas contraditórias, algumas odiando o filme, como Walter George Durst, (“um piquenique de grã-finos em Ilhabela”) e Nelson Pereira dos Santos ("...uma incursão de grã-finos das famílias Lage, Vergueiro, Matarazzo etc. na arte cinematográfica"), outros tecendo elogios, caso de Almeida Salles, tendo seu custo final alcançado a razoável cifra de Cr$ 6.800.000,00. Segundo a Vera Cruz, o filme foi um enorme sucesso tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.



A crítica de Nelson, aliás, é um primor de realismo socialista, então no auge. Publicada na revista Fundamentos, ligada à intelectualidade comunista paulista, a crítica ataca não só o filme propriamente dito, mas também a própria Vera Cruz. Nela, Nelson critica o "cosmopolitismo desmoralizante que quer aprofundar entre nós a confusão, a perversão e o espírito da derrota", chamando Adolfo Celi de "um postiço no ambiente", responsabilizando-o pelos estrutura caricatural dos personagens do filme, por desprezar "as relações de classes do litoral paulista", ao mesmo tempo em que o diretor "focaliza somente os aspectos 'malditos' do pescador e do litorâneo em geral". É Nelson quem escreve:

"O filme que a Companhia Vera Cruz lançou nas telas de São Paulo não é o cinema brasileiro que a sua propaganda procura fazer crer. Cinema brasileiro na verdade será aquele que reproduzir na tela a vida, as histórias, as lutas, as aspirações de nossa gente, do litoral ou do interior, no árduo esforço de marchar para o progresso, em meio a todo atraso e a toda exploração, impostos pelas forças da reação.

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e Caiçara procurou seguir a escola italiana no que diz respeito às lições de realização propriamente dita, não aproveitou a mais positiva contribuição dessa escola: o conteúdo humano de suas figuras e das respectivas ações... O verdadeiro realismo não se acha somente na forma: está, antes de tudo, no assunto e no seu tratamento".
A verdade é que a exibição do filme no Rio se deparou com dificuldades, devido a problemas ocorridos com o "Círculo de Estudos Cinematográficos". Prevista uma apresentação especial para o pessoal do círculo, a Vera Cruz cancelou o compromisso, lançando o filme sem ao menos convidar o pessoal, entre eles, influentes críticos cinematográficos. Após esse acontecimento, cresceu entre os críticos cariocas certa animosidade contra a nova companhia, criticando-se, sobremaneira, a ostentação de riqueza da empresa paulista. Assim, as relações entre a crítica carioca e os filmes dos estúdios paulistas esfriam, enquanto o entusiasmo dos jornais cariocas baixa de tom. A Vera Cruz ganhara, a troco de nada, um inimigo poderoso.

Para Caiçara, um filme bem feito (apesar de mal interpretado), esteticamente muito parecido com os filmes italianos do mesmo período (vide Arroz Amargo, de Giuseppe de Santis) mas que envelheceu com o tempo, fica o mérito de ter sido a primeira produção da Vera Cruz, além de possuir qualidades técnicas razoáveis, o que permitiu ao filme participar do Festival de Punta Del Leste com relativo sucesso.

Quanto a Cavalcanti, mal sabia ele o que o esperava.

3 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto!

Anônimo disse...

Ola amigo onde encontro esse filme para baixar, meu pai teve uma participação e gostariamos de ve-lo no filme se puder envie um email para roney-peixoto@hotmail.com Obrigado

Década de 50 disse...

Vá na página do google, entre no youtube, e coloque "Caiçara". O filme está lá prontinho pra você abaixá-lo. Zé Fialho.