20.8.06

MARISTELA: A PRIMA POBRE DA VERA CRUZ

São Paulo estava mesmo disposto a desbancar o Rio de Janeiro como o maior polo cinematográfico do Brasil. O surgimento da Vera Cruz fora o primeiro passo, e o mais importante impulso para tal; mas, agora, em 1951, os jornais paulistas falam em uma nova companhia cinematográfica que, como a futura concorrente, "(...) atira-se à produção planificada, contratando técnicos de renome internacional que aqui transmitirão seus conhecimentos, sua experiência, sua arte, aos valores nacionais.”
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Os jornais estavam falando da Cinematográfica Maristela, que, quase concomitantemente ao anúncio de sua fundação, já espalham aos quatro ventos o início de sua primeira produção, Presença de Anita, filme que, sendo o espectador um pouco mais atento, poderia tranquilamente ser confundido com qualquer produção da Vera Cruz, tal a maneira como foi filmado, com os cacoetes, mais do que evidentes, das produções vera-cruzianas. 
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Produzido por Mário Civelli, dirigido por Ruggero Jacobbi e com vários técnicos com sobrenomes estranhos envolvidos na produção (Giorgi, Lesgards, Pagés, Altschuler, Tkazensko, Laurelli etc.), Presença de Anita contava ainda com um elenco discreto, pouco conhecido do grande público em geral, onde se salientavam Orlando Villar, Antonieta Morineau, Armando Couto, Henriette Morineau, Vera Nunes, Guido Lazzarini e presenças de alguns atores que, mais tarde, seriam bastante conhecidos, destacando-se Elísio de Albuquerque e Jaime Barcelos.
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Drama intimista com algum toque de sobrenatural, o filme narra a história de Eduardo (Orlando Villar, um dos galãs da época), projetista atormentado pelo suicídio da amante (Antonietta Morineau). Procurando refazer sua vida após ser absolvido pela Justiça, ele acabará se envolvendo com a cunhada sem, no entanto, conseguir esquecer o passado e a mulher amada. O filme acompanha o conflito de Eduardo até seu trágico desfecho.



A sétima arte em São Paulo.














A Maristela, na verdade, havia sido fundada em 1950 (11 de agosto) por Audrá Júnior (1924 - 2006), cuja família estava podre de rica, graças ao fato de ser íntimo do poder, inclusive com Getúlio Vargas, com negócios que incluíam fazendas, fábricas e outras empresas distribuídas pelo Brasil inteiro. Além de Presença de Anita, sairiam ainda dos fornos dos novos estúdios mais dois filmes em 1951: Suzana e o Presidente (com o mesmo par romântico do filme anterior, Orlando Villar e Vera Nunes, roteiro de Jacobbi, que conta a história de uma garota que chega à São Paulo vinda do interior e se apaixona por um jogador de futebol sem imaginar que ele, na realidade, é o proprietário da empresa onde trabalha) e O Comprador de Fazendas, com o superastro Procópio Ferreira, o futuro galã Hélio Souto, Madame Henriette Morineau, e, em pequeno papel, o futuro astro teatral Sérgio Brito.

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A história de como a criação da Maristela saiu dos sonhos para se tornar realidade é bastante curiosa: Marinho Audrá, depois de alguns anos na Europa, mais precisamente, na Itália, volta para São Paulo, encontrando a velha metrópole em profunda efervescência cultural, entusiasmando-o, sobremaneira, o TBC, cujas produções começam a despertar-lhe profundo interesse. Aproxima-se, então, do italiano Ruggero Jacobbi, o jovem e temperamental diretor de teatro, de quem termina por ficar amigo. Audrá desenvolve então um sonho, o de montar uma companhia cinematográfica para produzir filmes nos moldes do neo-realismo italiano, que conhecia bem, por, praticamente, ter presenciado seu surgimento; ou seja, produzir filmes "puros", com poucas cenas de estúdios e muitas locações externas. Queria realizar filmes bons e baratos, aproveitando, principalmente, o fato de que os filmes italianos do pós-guerra começavam a ser exibidos em São Paulo, e com bastante sucesso popular. Para tal, via em Jacobbi um diretor de cinema em potencial, começando a fazer-lhe a cabeça para acompanhá-lo nesta aventura. Jacobbi, que, a esta altura, já andava às turras com várias pessoas do TBC, fica seduzido pelo canto da sereia e, juntamente com Madalena Nicol, abandona sua antiga companhia, iniciando seus planos já amarrados com Audrá: primeiramente, montariam um teatro, após o que se preparariam para entrar no ramo da cinematografia. E assim foi feito. A 11 de agosto de 1950, o contrato social da Cinematográfica Maristela Ltda. foi oficialmente registrado na Junta Comercial de São Paulo. Começava, assim, uma nova aventura cinematográfica no Brasil.

Vídeo sobre o Néo-realismo italia.

















Logo, porém, Jacobbi teria que abandonar o grupo teatral para se dedicar exclusivamente ao empreendimento cinematográfico, o que foi danoso para o novo grupo jogado à própria sorte, constituindo-se, não o principal, mas um dos motivos que ocasionou o fechamento do teatro ainda em fins de 50.
Presença de Anita, o primeiro filme produzido pela Maristela foi, a princípio, uma história bem escolhida; baseado em um dos livros mais comentados do momento – considerado inclusive escandaloso por muita gente – o "best-seller" homônimo de João Donato, seu argumento – a paixão incontrolável de um pintor já na idade do lobo por uma adolescente tão bela quanto irresistível – era propício a que se impusesse uma produção nos moldes do neo-realismo italiano conforme queriam seus realizadores, ou seja, equipamentos alugados, muitas cenas exteriores e acabamento (do que fosse indispensável) também em estúdios alugados, mais precisamente, da divulgação Cinematográfica Bandeirantes. Para os papéis principais, foram escolhidos Tônia Carrero, mulher de beleza estonteante, e Orlando Villar, que acabavam de sair de um pequeno sucesso, Quando a Noite Acaba (1950), filme de Fernando Barros para a Artistas Associados, do Rio de Janeiro.

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Quando as coisas pareciam entrar nos eixos, os problemas começam a aparecer; a Cinematográfica Bandeirantes era um blefe, sem condições razoáveis de funcionamento. O grupo teria que encontrar, e rápido, um local para se adaptar um estúdio de cinema. Além do mais, chegado do Rio de Janeiro, onde fora acertar os ponteiros com a Bonfanti (Companhia Industrial Cinematográfica), encarregada das revelações dos filmes e do som, devido à indisponibilidade do Laboratório Rex (totalmente ocupado com a Vera Cruz), Audrá Júnior é surpreendido por novas orientações tomadas à sua revelia.
Mário Civelli, cunhado de Ruggero Jacobbi, e sócio minoritário da Maristela, para muitos foi o cérebro por detrás da fundação da nova companhia; bastante parecido com o cineasta americano Orson Welles, seu passado era obscuro. Tinha a fama de ter sido assistente de Rosselini no famoso filme Roma, Cidade Aberta, realizado em 1945, o que foi desmentido quando seu nome não aparece nos créditos ao passar nos cinemas da pauliceia. Pois, teria sido exatamente ele, demonstrando uma rara habilidade, que convence os outros sócios, quase todos parentes de Marinho e neófitos em questões de indústria cinematográfica, a montar estúdio próprio, mais exatamente em uma velha fábrica de adubos localizada no Jaçanã ("Se eu perder esse trem/Que sai agora às 11 horas/Só amanhã de manhã"), subúrbio de São Paulo. O local era imenso (18.000 metros quadrados), com 3.000 metros quadrados de área construída, além de seus proprietários oferecerem excelentes condições de pagamento.
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A princípio, Audrá Júnior ficara temeroso; observa aos sócios e parentes que seria necessário muito dinheiro para transformar a velha construção em um estúdio digno desse nome, comprar o maquinário, além de separar um montante razoável para ser gasto com a produção dos filmes. Entretanto, o entusiasmo total acaba também por contagiá-lo, e assim o negócio é fechado. Logo, a Maristela, de Ltda. passa a Sociedade Anônima, o capital integralizado em família, com pequena parte subscrita por alguns amigos mais chegados. Em outras palavras, de um capital inicial de um milhão e meio de cruzeiros, chega-se, em poucos meses, a dez milhões de cruzeiros, o que era um paradoxo, levando-se em conta a proposta original de criação da companhia. Tudo isso significava que, de prima pobre da Vera Cruz, a Maristela tentaria erigir-se como concorrente da poderosa rival.
Para tal, começa a organizar-se; ainda em princípios de 51, cria seu departamento de cenários; encomenda enredos e argumentos a escritores e jornalistas (Millôr Fernandes foi um deles), contrata pessoas influentes como funcionários, (Alex Viany, Carlos Ortiz, José Ortiz Monteiro, Pola Vartuck (mulher de Civelli), Guilherme Figueiredo, Miroel Silveira etc.), além de inúmeros técnicos estrangeiros, Mário Pagés, fotógrafo; Aldo Tonti, iluminador; os cameramen argentinos, Juan Carlos Landini, David Altshuler e Adolfo Gonzalez; Jacques Lesgards, engenheiro de som, e o montador Pepe Cañizares.
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Quando a produção de Presença de Anita começa a deslanchar, problemas inesperados, mais uma vez, colocam em risco o ambicionado projeto: Tônia Carrero deixa o elenco, contratada que fora em bases muito mais vantajosas pela Vera Cruz. Sua substituta, Antonieta Morineau, também linda, muito mais ideal para o papel por ter a idade mais aproximada da personagem , mas com pouca experiência (17 anos), se mostra, infelizmente, inadequada para o papel; Ruggero Jacobbi, demora na preparação do roteiro, sendo substituído pelo próprio Civelli, resultando em um produto deveras mal acabado. Como Antonieta Morineau fora escalada anteriormente para o segundo papel, com sua escolha para a protagonista, para seu lugar, foi contratada, às pressas, a atriz Vera Nunes. Nuvens carregadas começavam a pairar sobre a Maristela.
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O pior, entretanto, estava por vir; pela total incapacidade de Marinho Audrá, Mário Civelli, com seu poder de persuasão, vai, aos poucos, assumindo o controle efetivo da companhia, contratando mais técnicos especializados, atores, operários, além de iniciar, concomitantemente, outras produções (Suzana e o Presidente e A Carne, esta em co-produção), e preparar as próximas, que seriam O Comprador de Fazendas, baseada em um conto de Monteiro Lobato, estrelando Procópio Ferreira, além da co-produção de Meu Destino é Pecar, de Nelson Rodrigues (sob o pseudônimo de Susana Flag). As coisas estavam de tal modo complicadas que Suzana e o Presidente ficou pronto antes mesmo do lançamento de Presença de Anita.
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Tudo isso faz com que, já em meados de 1951, a situação financeira da Maristela se mostrasse combalida. A esperança de que Presença de Anita e Suzana e o Presidente arrasassem nas bilheterias se mostra vã. O primeiro, apesar das críticas favoráveis de Carlos Ortiz, Leon Eliachar e mesmo de Almeida Salles, não se paga, o mesmo acontecendo com Suzana e o Presidente. Em situações drásticas, medidas drásticas teriam que ser tomadas. E o são. Tanto Civelli quanto Marinho Audrá são afastados, substituídos que foram por Benjamim Finemberg, com relações com poderosos distribuidores como Luís Severiano Ribeiro e os executivos da Serrador, a distribuidora paulista. Além do mais, tudo ainda em meados de 51, a Maristela demite cerca de cem funcionários, fazendo com que a Associação Paulista de Cinema – UPC – protestasse contra demissões de técnicos e diretores a ela associados. Logo várias denúncias começam a aparecer. Segundo elas, a Maristela não respeitava a legislação trabalhista, mantendo as equipes trabalhando em péssimas condições de trabalho, além de, quase sempre, ultrapassarem o tempo de trabalho permitido em lei, sem o pagamento das devidas horas extras. 
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Porém, apesar das dispensas, a companhia ainda consegue terminar e lançar, ainda em 1951, O Comprador de Fazendas, que, apesar de ter feito sucesso, aliás, o maior do estúdio até então, não permite que a companhia saísse de sua crise.
Para a realização desse último filme, a Maristela impõe um cronograma apertado, escala para a equipe técnica somente gente experiente, o elenco contando com algumas feras, com muitas horas de estrada. A direção foi entregue a Alberto Pieralise, vindo do cinema carioca e já tarimbado em várias funções, produtor, diretor e roteirista, sendo assistido pelo futuro astro do teatro Sérgio Brito. A confecção do roteiro foi complicada. Muita gente trabalha nele, Guilherme Figueiredo, Miroel Silveira, Gino de Santis, ficando os diálogos do filme a cargo de Guilherme Figueiredo. Aldo Tonti fica encarregado da fotografia, Jacques Lesgards, da sonografia, e o ótimo José Cãnizares, da montagem. No elenco afiado, liderado por Procópio Ferreira, despontam Henriette Morineau, Jaime Barcelos, Hélio Souto, o galã do filme, Jackson de Souza, Margot Bittencourt, Elísio de Albuquerque, Carlos Ortiz, Marilu Vasconcelos, Sérgio Brito, dentre outros. O filme terminou no prazo previsto, cerca de 35 dias.

Luiz Gonzaga interpretando Tô Sobrando, música cantada no filme O Comprador de Fazendas.















Com os estúdios em franca confusão depois das dispensas dos técnicos e da substituição de Mário Civelli e Marinho Audrá, ninguém sabendo direito o que estava de fato acontecendo com a companhia, o que era verdade e o que era mentira, tudo fazia crer que o sonho da Maristela estava com seus dias contados.

Um comentário:

GISA disse...

GOSTARIA QUE A TV BRASILEIRA TROUXESSE DEVOLTA O GLAMOUR DAS PRODUÇÕES ANTIGAS PARA OS NOSSOS DIAS DE HOJE,POIS PARECE QUE OS FILMES, SERIES E NOVELAS ANTIGOS ERAM MUITO MAIS CAPRIXADOS QUE HOJE.
ATÉ NA SIMPLICIDADE DA VIDA DO CAIPIRA MAIS CONHECIDO DO CINEMA SE VIA MUITO MAIS QUALIDADE DO QUE NUMA SUPER PRODUÇÃO ATUAL. BJS OBRIGADO