Trecho da peça A Alma Boa de Setsuan.
Trecho da peça A Alma Boa de Setsuan.
1958 também será lembrado como o ano em que Fernanda Montenegro, que depois se transformaria na melhor atriz brasileira de todos os tempos, obteve sua consagração definitiva, atuando em dois êxitos da temporada, Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller, peça em que Leonardo Vilar foi premiado com o Saci de Melhor ator (apesar de uma azeda crítica de Paulo Francis), e em Vestir os Nus, de Pirandello, que, montada no TBC, em São Paulo, lhe proporcionou seu primeiro Saci como Melhor Atriz do ano. O crítico teatral Clóvis Garcia, de O Cruzeiro (10.05.1958), assim viu o desempenho de Fernanda:
“(...) Com seu talento, Fernanda Montenegro dominou o espetáculo, que quase se tornou apenas numa demonstração de sua força dramática. Poucas atrizes poderiam sustentar a cena final no ritmo com que foi conduzido (...)”
“A estréia de hoje no Museu de Arte Moderna reveste-se de especial importância, porque introduz no nosso teatro profissional uma nova técnicade apresentação, em que os atores são colocados no centro da sala de exibição, como nos circos, ficando circundados pelos espectadores. A crítica, depois de observar que ‘o teatro paulista, ultimamente, talvez por influência do TBC e da EAD, tem timbrado em só estrear uma peça em condições perfeitas de preparo’, afirmou que a estréia do Arena foi exemplar. ‘A qualidade da encenação de José Renato avulta sobretudo ao encararmos dois pontos: a segurança com que estrearam os atores – trabalho, trabalho, trabalho – e a excelente escolha que soube fazer desses mesmos atores”.
Augusto Boal, mesmo com a pobreza da companhia, consegue montar Ratos e Homens, de John Steinbeck (1902 - 1968), em outubro de 1956, que, surpreendentemente, se constituiu em grande sucesso popular. E como para confirmar os novos ares, logo se junta ao grupo Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho, jovens teatrólogos, politizados (ambos filiados ao Partido Comunista e integrantes do Teatro Paulista do Estudante) e com idéias revolucionárias de alterar o panorama do teatro brasileiro. Vianninha, chegou a dizer mais tarde, em depoimento ao jornal Opinião, que ele e seus novos companheiros representavam, para o Arena
“a juventude que chegou ao teatro marcada pelas lutas nacionalistas e pela percepção da política como atividade que todos praticavam, conscientes (ou não) (...)”.
Decidido a acabar com a companhia, José Renato resolve então montar, como despedida, Eles Não Usam Black-Tie, uma peça de Gianfrancesco Guarnieri, de temática marxista, que trata de conflitos familiares durante uma greve. Ambientada em uma favela carioca, a peça coloca em cena, pela primeira vez, a luta de classes em um palco brasileiro, ao confrontar os ideais de um pai, a favor da participação coletiva de todos na referida greve para o bem comum, em confronto com os do filho, alienado, com ideais pequenos burgueses (fora criado fora da favela), que enfrenta a família e seus companheiros, por entender que greve não resolve nada, só trazendo desgraças, não melhoria nas condições de vida.
Trazendo no elenco figuras que se tornariam exponenciais no teatro brasileiro, Miriam Mehler (Maria, a noiva grávida do filho despolitizado), Gianfranceso Guarnieri (Tião, o filho), Eugênio Kusnet (Otávio, o pai), Lélia Abramo (Romana, a mãe, em atuação magnífica), Chico de Assis (Jesuíno, o mau caráter traidor da classe), Flávio Migliaccio (Chiquinho, irmão menor de Tião), Celeste Lima (Terezinha, irmã menor de Tião), Milton Gonçalves (Bráulio, trabalhador politizado), e Riva Nimitz (Dalva), a peça, cuja estréia se deu no dia 22 de fevereiro de 1958, além de ter se tornado um marco na história do teatro brasileiro, para surpresa de todos, se tornou um imenso e inesperado sucesso de público e de crítica, ficando em torno de um ano em cartaz, fato até então inédito nos palcos brasileiros.
Toda a crítica teatral saudou com entusiasmo a montagem de Eles Não Usam Black-Tie, entre eles Paulo Francis, que, na revista Senhor de janeiro de 1960, escreveria uma elogiosa crítica à montagem:
.“Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, a partir da insofisticação de títulos que pode ser como Look back in anger (Recordar com Rancor, tradução aproximada), de John Osborne, serve à juventude britânica, à juventude que se conscientiza, que participa intelectualmente de seu destino, que procura saber aonde vai. Ambas as peças são exigências de esclarecimento, revelam uma ânsia de libertação do caos e frustrações que constituem a essência da vida social de hoje, na Inglaterra e no Brasil.
Em Osborne, deparamos com o filho de uma cultura saturada, cuja raiva é filtrada por impotência. O Império Britânico se desmorona. Já ninguém acredita nele, em literatura, como entidade ética, desde Kipling. O socialismo-trabalhista se intrometeu. O indivíduo melhorou. Mas o artista intelectual, que é o protagonista de Osborne, permanece insatisfeito. Ter o que comer, o que vestir, onde morar, ainda que modestamente, são necessidades primárias que o governo supre com o atraso de séculos - em relação à visão humanista, em vigor desde a Renascença - e o faz ainda com imperfeições e concessões ao passado. O indivíduo precisa mais; sentir-se inteiro e independente como os homens de Shakespeare, e não ser reduzido a peça de uma engrenagem mecanicista, coletivamente estandardizada, sem face, sem espírito. A possibilidade do extermínio tecnológico contribui para o ressurgimento do individualismo em termos modernos.
Esses problemas nos parecem remotos, senão no fato de constituírem a outra extremidade do drama escrito por Guarnieri. Seu ‘Tião’ é um operário que trai a classe numa greve. Não o faz por covardia ou interesse. Apenas não crê no sucesso de uma greve. Os patrões concederiam o aumento e aumentariam o preço dos gêneros de consumo, num ciclo de cinismo, que é a constante do meio social em que o rapaz se criou. E ‘Tião’ vai casar-se. A subsistência é o que lhe importa. Falta-lhe a convicção ideológica necessária à resistência e à revolta por meio do sacrifício individual. Nunca lhe ensinaram diferente, nunca viu diferente no país em que vive. A falência ideológica da personagem de Osborne decorre das experiências das gerações precedentes. A de Guarnieri, da indiferença.
Um dramaturgo jovem como este – tinha 22 anos quando escreveu ‘Black Tie’ – que passou fome em princípio de carreira, que supre com talento o que lhe falta em experiência cultural, escolheria, naturalmente, a si próprio e a seus próximos para dramatizar em seu próprio esforço. Não quero dizer que ele tenha retratado especificamente fulano e beltrano; ao que me consta, isso não aconteceu. Mas às suas pretensões ideológicas, que busca expressar através da condição de operários favelados – viveu nas proximidades de uma favela no Rio, durante algum tempo – juntou por certo sua experiência afetiva do teatro brasileiro, o ambiente em que está amadurecendo como homem e artista. E o teatro, arte menor que entre nós destacou-se das demais em penetração popular, é um microcosmo da situação de suas irmãs, como da situação geral do País.
Na vida pública do País, trabalha-se pelo casulo do nacionalismo, cujo rompimento não seria o strip-tease político a que estamos habituados. Aos artistas cabe expressar esse estágio, desde que desejem expressar-se em acordo com a época em que vivem.Ressaltei Guarnieri como expoente da consciência da arte a que estou mais ligado. Ele é um dramaturgo que transmite a urgência dessa tomada de posição, que a justapõe às acomodações de ordem individual, pedindo ao público que escolha entre as duas atitudes. E o faz carregando consigo a metrópole para o palco, indo ao centro do conflito. Marca o despertar da geração de hoje."
.
“Eles não usam black-tie, estreada em 1958, no Teatro de Arena de São Paulo, trouxe para o nosso palco os problemas sociais provocados pela industrialização, com o conhecimento das lutas reivindicatórias de melhores salários. O título, de claro propósito panfletário, pareceria ingênuo ou de mau gosto, não fosse também a letra do samba que serve de fundo aos três atos. Embora o ambiente seja a favela carioca, o cenário existe apenas como romantização de possível vida comunitária, já que a cidade simboliza o bracejar do indivíduo só. Nem por isso, o tema deixa de ser profundamente urbano, se o considerarmos produto da formação dos grandes centros, e nesse sentido a peça de Gianfrancesco Guarnieri se definia como a mais atual do repertório brasileiro, aquela que penetrava a realidade do tempo com maior agudeza.
Que a tese implícita do texto seja marxista, não se pode duvidar. Mas o Autor não deformou os caracteres em função de um objetivo político, desenvolvendo antes as situações para que a platéia concluísse a seu gosto. A dignidade artística do trabalho isenta-o de sectarismo, e a peça se beneficia de uma convicção sincera que enforma o entrecho com evidente consciência.
Gianfrancesco Guarnieri opõe duas mentalidades que a rigor se sintetizarão numa só, porque acredita fundamentalmente no homem, e ele, depois de descaminhos, encontra o rumo certo. O tradicional conflito de gerações se coloca de maneira diversa: o pai sempre fiel ao meio de origem não titubeia quando deve enfrentar o problema; e o filho, entregue aos padrinhos e tendo servido como pajem, isto é, sendo um alienado da vida autêntica do morro, toma a decisão que a comunidade condena. Sugere o dramaturgo que as circunstâncias moldam o indivíduo, e o próprio pai se responsabiliza pela defecção do filho, por não querer considerá-lo congenitamente mau. Depois da prova definitiva, o filho poderá integrar-se de novo no meio. A peça patenteia outra tese, segundo a qual o indivíduo que procura salvar-se sozinho, desconhecendo o interesse coletivo, se volta à solidão irremediável e ao desprezo dos demais. À vida difícil e sem comunicação da cidade, o texto opõe o trabalho árduo, mas com apoio nos semelhantes, simbolizado na solidariedade vigente no morro.
O esquema de duas mentalidades antagônicas que buscam a síntese se repete no binômio que rege a vida humana: o amor e o trabalho. Os sois se acham intimamente entrelaçados na figura de Tião, fixando-se no decorrer da peça em intrigas paralelas. O amor por Maria leva o jovem a querer melhorar de nível financeiro, a fim de usufruir a existência perfeita. Quando, pelo desprezo dos colegas, é obrigado a procurar novo emprego, e pela reprovação paterna é coagido a deixar a casa, o amor também não tem possibilidade de completar-se, ao menos momentaneamente. Maria o receberá de volta, se ele se reintegrar na favela. Mas não o acompanha na peregrinação à cidade e se encarregará de cuidar sozinha da criança que vai nascer, e que, na linha de fidelidade ao ambiente, receberá o nome do avô.
(...)
Romana, sob esse aspecto, é a criação mais feliz, uma autêntica mãe, como as generosas figuras do teatro de Brecht. A aspereza do trabalho não lhe tira o encanto essencial de viver, que se entende à função de companheira do marido e à de protetora da prole. A cena em que a noiva do filho vai confiar-lhe a gravidez demonstra na naturalidade e no contentamento com que aceita a revelação, sua íntegra natureza humana. E assim existirem as outras personagens, cujas reações são sempre verídicas, nada elaboradas. Sucedem-se no painel a poesia e a firmeza da noiva, o universo ainda infantil de Chiquinho e Terezinha), e o tipo contrastante de Jesuíno, o malandro venal. Nesse mundo não há também lugar para preconceitos raciais. E o compositor que passa todo o tempo ao violão e, no fim, se entristece porque ouviu seu samba, no rádio, com a suposta autoria de outrem, marca o espírito de criação do morro, roubado pela cidade.
A linguagem acompanha fielmente a descrição natural da favela. As cenas de maior gravidade se alternam com os diálogos de saboroso coloquialismo que mantém a peça em permanente vibração. Registre-se, como pintura admirável de costumes, o pedido de casamento em que falam o noivo e o irmão da noiva. A excessiva liberdade no conduzir as falas talvez tenha dispersado, às vezes, o diálogo, que se insinua em certos momentos por inúteis temas laterais.
O texto, embora trabalhado num sentido de dramatização dos efeitos, conserva também fluência na estrutura. A circunstância de não se perceber nunca o processo de elaboração do autor aumenta-lhe o interesse. A matéria não está, entretanto, bem distribuída, para que a tensão cresça de ato para ato. Depois da apresentação bem feita do primeiro que acaba em festa, o segundo tem feitio intimista, em que as personagens procuram definir-se para si mesmas antes do desfecho. Se se justifica psicologicamente essa tomada de consciência, do ponto de vista dramático, o segundo ato perde em intensidade e em vigor, para só no terceiro verificar-se de novo a inteira adesão da platéia. Ainda assim, a estrutura tem a virtude de não filiar-se a fórmulas estabelecidas por escolas antigas ou contemporâneas, parecendo ditada pelas necessidades interiores do entrecho. Não cabe investigar influências ou semelhanças em seu processo literário.”
Em reconhecimento à grandeza do espetáculo, Gianfrancesco Guarnieri ganhou o Saci de teatro como o Melhor Autor Nacional, Lélia Abramo também ganhando o seu como a Melhor Atriz Coadjuvante do ano. Era a ressurreição do Arena que, a partir daí, marcaria, de forma indelével, sua história no teatro brasileiro.
Entrevista com Lélia Abramo:
Acontece que o nacionalismo estava em efervescência no Brasil, confirmado pelo estrondoso êxito de Eles Não Usam Black-Tie, e pelo fato de que, poucos anos antes (1953), fora criada uma lei de proteção aos autores brasileiros, que obrigava as novas companhias a iniciarem suas temporadas com autores nacionais. Além do mais, Jornada era uma peça muito difícil, o que dava mais argumento aos que defendiam, no grupo, a montagem de uma comédia de autor brasileiro. Por outro lado, também era necessário desvincular a nova companhia do TBC e seu teatro “europeuzado”. Dessa forma o TCB encomendou a um jovem teatrólogo pernambucano, Ariano Suasssuna, que já tivera uma peça montada por Sérgio Cardoso – O Casamento Suspeitoso – no ano findo e que ganhara a Medalha de Ouro (e fama) da mesma forma, em 1957, pela sua O Auto da Compadecida, levada à cena no Festival de Teatros Amadores do Brasil, uma nova peça que marcaria a estréia da temporada carioca: O Santo e a Porca. Ambas as peças foram ensaiadas simultaneamente.
O Santo e a Porca, que conta a história de Eurico, um velho avarento devoto de Santo Antônio, que esconde em sua casa uma porca cheia de dinheiro, acumulado durante anos, dinheiro esse que, devido a uma mudança na moeda do país, perde todo o seu valor, é uma comédia em três atos, que trata de sentimentos como o amor e a cobiça, envolvendo personagens de uma família simples do interior. Estreando no Teatro Dulcina em cinco de março de 1958, a peça fez bonito papel nessa temporada, tendo até que ser prolongada por mais duas semanas.
"A trivialidade sem pretensões é a constante de O santo e a Porca de Ariano Suassuna (...) isto até o desfecho da peça, quando temos uma novidade: subliteratura com pretensões, lugares comuns pomposamente redigidos (...)”
Após decretar a trivialidade da peça e também afirmar que “Suassuna está, no mínimo, trezentos anos atrasado, literariamente”, o mordaz crítico carioca concluiu:
“Por quanto tempo teremos de suportar coisas assim, o escritor anticultural posando como artista ‘simples’, quando na verdade é apenas simplório, irremediavelmente terra-a-terra? Esse tipo de gente é mais perigosa que o comerciante de dramaturgia, devido à sua hipocrisia, consciente ou inconsciente. Os Sauvajons, os Abílios, por exemplo, não usam máscaras estéticas; são sanguessugas descaradas do teatro. Ninguém espera deles que sejam Shakespeare.”
É de se imaginar o ego ferido e o desespero de Francis, ao longo dos anos, com a consagração de Ariano Suassuna e de sua dramaturgia, que só aumenta com o passar dos anos.
"Os ensaios duraram quatro meses. Queríamos dar o melhor de nós. (Gianni) Ratto fez os cenários, Ziembinski quase morreu de tanto ensaiar. Cacilda, às voltas com a morfina e suas reações nos viciados, a consultar médicos para colher informações; Freddy a lutar com as cenas de bebedeira e eu, cheio de dificuldades, porque estava fazendo um personagem que era o próprio autor.
(...)E chegou o dia da estréia. Fizemos no saguão do teatro uma exposição das obras de Eugene O’Neill, pregamos nas vitrines internas do teatro os desenhos que Enrico Bianco fez para nós dos personagens, nos maquiamos e vestimos e abrimos o pano para a première... Estávamos com os corações apertados.
(...)”
A ação da peça, transcorrida em 1912, foca um único dia na vida de uma dilacerada família (supostamente a do autor), formada pelo pai covarde (um ator talentoso, mas incapaz de vôos altos na carreira), uma mãe dependente de morfina e dois filhos, um consumido pela tuberculose e outro pelo alcoolismo. Os acontecimentos desse dia acabam projetando, ao longo da noite, o inferno em que a família está mergulhada, todos os seus elementos incapazes de alterar seu destino.
Ao longo da peça, pai, mãe e dois filhos adultos vão da alegria à tristeza, da euforia ao pessimismo e em que os confrontos são constantes, todos acusando uns e outros por suas culpas e frustrações. O pai, por exemplo, ator com carreira longa, ficou estigmatizado pela peça O Conde de Monte Cristo, que representou mais de 6 mil vezes. É um ser constantemente preocupado com o dinheiro e, ao mesmo tempo, cruel com a família. A mãe, que trocou uma vida confortável por casamento com um ator, acompanhando-o através dos anos pelo país afora, é uma mulher amarga e ressentida, que, doente, recebe um tratamento médico inadequado, acabando por se viciar em heroína.
Melhor sorte não tiveram os filhos do casal. O mais velho, também ator, é fracassado profissionalmente além de alcoólatra. O mais novo, pretenso poeta, descobre-se tuberculoso. As desgraças da família parece não ter fim, saindo do dia e adentrando a noite. Não há como transpor esses dias de sofrimento.
As críticas à montagem de Longa Jornada Noite Adentro, conforme compiladas por Luís André do Prado, biógrafo de Cacilda Becker, foram contraditórias. O desempenho da atriz não foi colocado em dúvida em nenhum momento, alguns se atendo a criticar aspectos da montagem ou sua caracterização. Dessa forma, Henrique Oscar (ferrenho opositor do teatro de Nelson Rodrigues), escreveria no Diário de Notícias:
“O espetáculo se colocou num ponto alto, como uma grande realização, de muita seriedade, um esforço enorme que precisa ser compreendido e elogiado. Certamente há falhas, que poderiam ser evitadas num empreendimento de tal categoria. Assim, por exemplo, como a cabeleira de Cacilda Becker, que é péssima como cabeleireira, e branca demais também.”
Paulo Francis, com algumas ressalvas, elogiou o espetáculo e a atuação de Cacilda:
"O espetáculo do TCB está em alto nível profissional para o nosso meio. É imperfeito em partes, numa delas imperdoavelmente: na linha de conduta que Ziembinski deu à personagem de Kleber Macedo (a empregada) (...) Cacilda compõe a figura da morfinômana com toda a ruína e descontrole de movimentos dos viciados. E consegue projetar o infantilismo de Mary, seus silêncios de mágoa e semifúria, que são inevitáveis nos narcotizados. Há um movimento seu de cabeça, numa conversa com a empregada, em que realiza uma cadência de alegria patológica que vale mais do que meia hora de conversa de O’Neill. E sua aparição no desfecho da peça, sugerindo uma figura de santa em decomposição, é uma festa de necrofilia, perfeitamente ajustada nos propósitos do dramaturgo.”
Já a azeda crítica do Jornal do Brasil, Bárbara Heliodora, criticou os cenários, também a maquiagem de Cacilda e a má tradução da peça. Considerou também equivocada a direção de mestre Zimba:
“(...) A linha dada pela direção ao papel de Mary Tyrone, interpretado por Cacilda Becker, entra em enorme conflito com o que encontrara, que não lhe assenta nada e por uma maquiagem branca que, logo de início, esbarra com o aspecto saudável que realmente tem no início da peça, antes de começar a mostrar os efeitos da morfina.”
Apesar de a temporada não ter sido um sucesso retumbante, entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Após a temporada carioca, a troupe inicia nova temporada no sul do país. Aí, sim. Foi a consagração da Companhia Cacilda Becker.
***
O fato que agitou mesmo a cena teatral, porém, não foi nenhuma montagem, nenhum desempenho espetacular, nenhum problema acontecido durante qualquer espetáculo. O que causou mesmo sensação no mundo das artes cênicas foi um violentíssimo ataque pessoal do crítico Paulo Francis à atriz Tônia Carrero, perpetrado no Diário Carioca de 17 de outubro de 1958, em um artigo que recebeu o título “Tônia Sem Peruca”.
Espeical Paulo Francis - Parte 1.
Vamos por partes, como também diria Francis; em determinado dia, os leitores da coluna teatral do crítico se depararam com uma misteriosa e agressiva nota sobre uma atriz não nomeada. A nota assim dizia:
"Tivemos, não faz muito tempo, uma entrevista a ‘O Cruzeiro’, de uma atriz de renome, obviamente escrita pelo seu diretor. A moça, cuja ocupação na vida, até hoje, tem sido a de mostrar-se atraente em cena e pouco mais, emitia conceitos sobre o sentido social do teatro muito acima das possibilidades de seu repertório de cabelos".
Especial Paulo Francis - Parte 2.
Quem acompanhava a cena teatral e era leitor da mencionada revista, logo adivinhou a quem o crítico se referia: a Tônia Carrero e a Adolfo Celi, então seu marido e um dos diretores de teatro mais prestigiados do país.
Não muito depois, em um debate na TV Tupi, que versava exatamente sobre o teatro, respondendo sobre a crítica teatral no geral e sobre Paulo Francis em particular, Tônia comentou que o crítico, na realidade, não gostava de teatro e, de forma elogiosa, disse que ele, apesar de "sofrer do fígado", era uma figura "sexy".
Especial Paulo Francis - Parte 3.
Para colocar mais lenha na fogueira, o colunista do jornal O Globo, Antônio Maria, em uma nota, deu a entender que a menção do termo "sexy", significava, na verdade, um questionamento à sexualidade do famoso crítico (Paulo Francis daria outra versão; segundo ele, foi exatamente a Antônio Maria que Tônia teria dito que ele era ‘sexy’).
Paulo Francis foi tomado de imensa ira que o deixou cego de rancor. E não demorou, seus leitores do Diário Carioca, a princípio, e depois da repercussão, todo o Rio de Janeiro, foram surpreendidos com o mencionado artigo, um dos mais virulentos e perversos artigos contra um artista jamais escritos no Brasil até hoje, quase 50 anos depois. Ele merece ser transcrito na íntegra para se ter a idéia de até que ponto pode ir a ignomínia de um articulista poderoso, que se acha acima do bem e do mal:
“Tônia Carrero é uma mulher de teatro a quem cumprimento na rua, pois já fomos apresentados. No mais, nossas relações são de crítico para profissional do palco. Apesar disso, ela se julgou no direito de propor dúvidas quanto à minha integridade, primeiro, como jornalista, segundo, como homem.
Vamos por etapas. Tônia foi à televisão e declarou que ‘sofro de fígado, que não gosto de teatro’. Fui notificado, naturalmente. Não dei importância ao fato, pois se fosse ligar a toda mostra de ressentimento de histriões criticados aqui, ficaria sem tempo para nada. Comparemos, entretanto, sua conduta com a minha. O máximo que fiz, até hoje, foi sugerir que Tônia Carrero é uma atrizinha como existem por aí às dúzias, um fantoche manejado por Adolfo Celi. Estou dentro dos meus direitos profissionais de crítico. Não entrei no terreno pessoal. Poderia ter acrescentado que o prestígio de Tônia Carrero se deve à publicidade que se faz em torno de sua beleza que, atualmente, vive às custas da galvanização de salões de senhoras, pois o tempo passa e com ele, qualquer mulher bonita. Limitei-me, todavia, ao aspecto estritamente teatral do seu caso.
E ela? Se ‘não gosto de teatro’ e faço crítica, sou, logicamente, desonesto para com os leitores, os profissionais e os proprietários deste jornal. Ela poderia ter dito que sou mau crítico, que nada entendo do assunto, etc., mas preferiu assacar contra a minha honestidade. Quanto à história de fígado, Celi ou qualquer outro da infinidade de intelectuais que lhe pespegaram um pouco de brilho, deveriam informá-la que os doentes, de um modo geral, são muito mais receptivos ao entretenimento de segunda categoria do que os sãos, pois necessitam mais do que os últimos divertir-se. Assim, se não me satisfaço com o histrionismo primário de Tônia Carrero, apesar de minha enfermidade, é porque ela é ruim mesmo.
Segundo ato: Tônia vai a um desses cavalheiros [Antônio Maria, quis ele dizer] cuja profissão é escrever notas bajulando celebridades, ou descrever o que comeu no dia anterior, como se sua alimentação fosse do interesse de todos, como se fosse um bebê com elefantíase a quem todos se preocupam em alimentar bem, ao menos para minorar-lhe a anomalia. Diz, então, que sou muito ‘sexy’. Ora, este termo, quando empregado para homens nos botequins de luxo do Rio, é sinônimo de homossexual. Não sei onde Tônia colheu essa informação a meu respeito. Nunca dormimos juntos, a que eu me lembre, para que ela possa manifestar-se sobre a minha virilidade. É Possível que a vedeta esteja me confundindo com alguns de seus colegas de palco. Todos nós temos a tendência de generalizar sobre pessoas e coisas, baseando-nos nas circunstâncias que nos cercam, ou em gente de nossa intimidade, pois ambos esses elemento são um reflexo de nossas personalidades.
Em todo caso, trata-se de um mexerico. E mexerico por mexerico, o ‘dossier’ de Tônia Carrero comporta muito mais do que o meu. O que sei sobre sua vida privada caberia num romance do tamanho de As Mulheres Fatais, de Cláudio de Sousa, ou qualquer outro romance barato, com pretensões a respeitabilidade. Nunca usei esse material aqui, pois não me agrada esse tipo de literatura. Tônia talvez se interesse em saber que já me foram oferecidas cópias das fotos para que ela posou em trajes menores e posições provocantes, fotos que foram publicadas numa revista pornográfica americana, Nugget. Recusei a oferta, pelo motivo já alegado. E há muito mais: temos a história do imposto de transmissão que ela teria pago para ingressar na Cia. Cinematográfica Vera Cruz, uma história possivelmente mal contada, mas que é do conhecimento de qualquer aspirante a vaga-lume de teatro. E quanto à maneira como ascendeu ao estrelato no TBC, os fatos já são do domínio público. E vamos parar por aqui.
Há também a possibilidade que Tônia tenha empregado o termo ‘sexy’ no seu sentido exato. O Boswell da vedeta, em redigindo a nota em questão, disse que ‘não entendeu’ o que ela queria dizer: os diretores de seu jornal devem vigiar mais atentamente a sua coluna, pois nela saem publicada coisas que o colunista transcreve, sem compreender o sentido. Mas voltando ao ‘sexy’, supondo que Tônia tenha usado a palavra na sua significação correta, sinto-me quase tentado a propor-lhe que venha experimentar o que prescreveu. Se não o faço, é por dois motivos: primeiro, porque, com um pouco de boa vontade hindu, Tônia Carrero poderia ser minha mamãe; e segundo, porque, embora eu tenha sofrido, no meu pensamento e conduta, uma certa influência comunizante, há um limite para tudo.”
Especial Paulo Francis - Parte 4.
Obviamente, pode-se especular sobre a reação de tão indigno artigo sobre Tônia e sobre seus amigos, já que a atriz tinha uma corte de admiradores entre a intelectualidade carioca. Mas, a reação imediata foi de Adolfo Celi, o protótipo do machão italiano. Sabendo da presença do crítico no Teatro Aurimar Rocha, dirige-se para lá e, encontrando-se com ele, o esbofeteia, após tirar-lhe os óculos. Paulo Francis deu outra versão sobre o fato. Segundo ele, na ocasião, “Celi passou a agredir-me, trocamos socos e ninguém sofreu um arranhão”. Paulo Autran, também, não pôde se conter. Ao encontrar-se, pela primeira vez, com o crítico após a publicação do artigo, cospe-lhe no rosto, vira as costas e vai-se embora. Antônio Maria, integrante da corte da atriz, não se contentando em ter alimentado a polêmica, logo, em sua coluna em O Globo, após desancar o crítico, descreve o episódio da bofetada de Celi em detalhes, comentando que Francis, ao ver Celi, foi “tomado de palidez”.
Especial Paulo Francis - Parte 5.
Foi um irado Paulo Francis que respondeu ao artigo de Antônio Maria:
“Considero o Sr. Maria um sanguessuga do prestígio alheio, um reles colunista de mexericos. Não citei seu nome aqui, no artigo sobre Tônia Carrero, a fim de não conspurcar as páginas deste jornal. E se agora faço o contrário, é para dar ao Sr. Maria uma oportunidade de fazer-me engolir essas palavras ‘tomado de palidez’.”
Mais tarde, em seu livro de memórias O Afeto Que se Encerra (1981), Francis faz uma mea-culpa sobre o incidente, ao mesmo tempo em que elogia o artigo, segundo ele “muito bom”, o que, efetivamente, não o é:
“(...) A exceção foi um ataque pessoal a Tônia Carrero, a quem admiro como mulher e atriz. O artigo é muito bom, lamento dizer, do ponto de vista técnico, enrubesci ao relê-lo (...) é sórdido, imperdoável, uma das mais pungentes vergonhas da minha vida, porque pessoal, mesquinho, deliberadamente cruel, sem que houvesse motivo. Na zonzeira em que vivia no Diário aceitei, inexplicavelmente para mim até hoje, uma interpretação suburbana de um colega de uma brincadeira que Tônia Carrero fizera comigo na coluna de Antônio Maria, em O Globo. Ou seja, além de cachorro, me portei como um idiota.”
Especial Paulo Francis - Parte 6.
O episódio, hoje envolto em lendas e versões contraditórias, ainda rende notícias; em recente entrevista à Folha de São Paulo (30.10.2005), um Paulo Autran de língua afiada narra os fatos da seguinte maneira:
“O Paulo Francis era muito amigo de Tônia Carrero, do marido dela, o Adolfo Celi, de mim. De repente, nas críticas começou a escrever: ‘Tônia Carrero, muito sexy’. Noutra: ‘Tônia Carrero continua sexy’. Os críticos elogiavam, ela ganhou prêmios. Para Francis, ela era uma atriz sexy. Certa vez, ela foi entrevistada na TV e lhe perguntaram sua opinião sobre o crítico Paulo Francis. E ela: ‘É o crítico mais sexy do Brasil'. Os atores são vaidosos, mas os críticos são mais. O Francis ficou tão irritado que escreveu um artigo a Tônia, intitulado: ‘Tônia Carrero sem peruca’. Dizia barbaridades. Inclusive: ‘Não dormi com Tônia porque não durmo com mulheres da idade de minha mãe’.
"O Celi mandou avisar que ia quebrar a cara do Francis. Eu fui com ele a um teatro onde o Francis ensaiava uma peça. De repente, o Celi chega com a mão sangrando. ‘O que foi isso?’, perguntei. ‘Eu arranquei os óculos do Francis e quebrei, cortei as mãos’. Então, mandei recado a ele que, quando o encontrasse, iria cuspir na cara dele. Um belo dia, eu fazia uma peça em que entrava só na cena final. Vi o Francis na platéia, ao lado do Ítalo Rossi. Esperei, fiz a minha cena e, quando o púbico saía, cheguei junto do Francis, chamei-o e, quando virou, dei-lhe uma cusparada. Ele estava de óculos, e o cuspe escorria. Cuspi com prazer.”
Especial Paulo Francis - Parte 7 (final).
Quando escreveu seu artigo contra Tônia Carrero, Paulo Francis se considerava politicamente de esquerda, admirador confesso das idéias de Leon Trotski, fundador da Quarta Internacional, de oposição a Stalin, defendendo, por isso, a revolução permanente propugnada pelo líder revolucionário russo. Os leitores podem imaginar de que sua pena foi capaz, quando ele, mais tarde, renegando suas antigas crenças ideológicas, se tornou um articulista ferozmente conservador e porta-voz tonitruante da direita brasileira.
Um comentário:
Oi, parabéns pelo blog. O episódio Tônia versus Francis é insignificante, sobrevive só como curiosidade, mas eu não achei o artigo tão ruim, não, foi um artigo inseguro, adolescente.
Ele defendeu-se de um possível duplo sentido, ativando outros sentidos em seu texto e sobre sua pessoa. Essa pecha de bicha o perseguiu, e Caetano a repetiu nos anos 80, violentamente.
Que saudade dessa classe dos artigos dos anos 50!
Postar um comentário