2.2.07

TRAGÉDIA ANUNCIADA: GETÚLIO SUICIDA-SE

Assim que, ainda em janeiro de 1954, o governo getulista, através do Decreto n.º 34.859, impõe restrições ao capital transnacional como corolário ao seu ataque, no apagar das luzes de 1953, à exagerada remessa de lucros das empresas estrangeiras aqui instaladas, as forças da reação entram em parafuso e escancaram de vez sua intenção golpista: urgia depor Getúlio, colocando em seu lugar um governo que se identificasse mais com o capitalismo internacional, capitaneado, obviamente, pelos norte-americanos.

Jango Goulart, atacado duramente pela grande imprensa retratado como um peronista disfarçado, encarregado de implantar em terras brasileiras uma república sindicalista, além de organizar em surdina uma muito bem azeitonada máquina de pelegos nos sindicatos de trabalhadores, entra novamente na mira de seus adversários, a partir do momento em que propõe, em fevereiro do corrente ano, o aumento em 100% do salário mínimo. Este seria o segundo aumento do salário mínimo do governo trabalhista, contra nenhum do período Dutra.

Os patrões, aparentemente cônscios do delicado momento político por que passava o governo, até que aceitariam o reajuste, desde que tal não ultrapassasse a inflação do período 1951/1953, que, no seu entender, totalizava 42%, o que faria com que os salários mensais passassem de Cr$1.200,00 para CR$1.700,00. Com os 100 % de aumento propostos por Jango, o mínimo subiria para CR$2.400,00, proposta considerada insuportável pelos patrões que ameaçavam transferi-lo para os preços o que ocasionaria considerável aumento na taxa de inflação.

Foi o bastante para que, concomitante ao carnaval armado pela imprensa antigetulista, aos oito de fevereiro, mais de oitenta oficiais do Exército, quase todos, mais tarde, envolvidos no golpe militar que derrubaria da presidência o próprio Jango (Bizarria Mamede, Golberi do Couto e Silva, Amauri Kruel, Sílvio Frota, Antônio Carlos Murici, Sizeno Sarmento entre outros), enviarem ao ministro da Guerra um memorial onde consideravam que a proposta de Jango se constituía em "subversão do todos os valores profissionais", além de atacar, como de costume o movimento comunista e a suposta corrupção do governo.
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Getúlio, diante do alarido, mesmo contra sua vontade, tem que ceder diante dos clamores de seus inimigos, demitindo seu ministro e homem de confiança, Jango Goulart. Entretanto, para manter sua autoridade, também demite o ministro da Guerra, Ciro do Espírito Santo Cardoso, que lhe apresentara o memorial. E para exasperação do empresariado e aliados políticos, mesmo sabendo o que se tramava pelas suas costas, resolve comprar a briga e efetivamente decreta, no dia primeiro de maio, o aumento proposto, além de considerar necessária sua revisão a cada dois anos. Discursando nesse dia, Getúlio contrapõe duas forças antagônicas, a força das armas de seus inimigos e a força do voto dos trabalhadores:
"Há um direito de que ninguém vos pode privar: o direto do voto. E pelo voto podeis não só defender os vossos interesses como influir no próprio destino da nação. Como cidadãos, a vossa vontade pesará nas urnas. Como classe, podeis imprimir ao vosso sufrágio a força decisória do número. Constituis a maioria. Hoje, estais com o governo. Amanhã, sereis governo."

Tais discursos deixam mais enraivecidos os inimigos de Getúlio, trazendo como conseqüência o acirramento tanto da campanha de difamação encetada contra ele pela maioria dos meios de comunicação de massas, encabeçadas pela Tribuna da Imprensa, O Globo e pela TV Tupi do Rio de Janeiro, quanto das pressões internacionais contra o viés nacionalista de seu governo; assim, tornou-se comum, nos jornais e revistas oposicionistas, matérias do tipo "Chegará Vargas ao Fim do Governo?", em que deputados, a maioria da UDN, respondiam o questionamento deixando evidentes suas intenções golpistas. Herbert Levi, udenista e eterno golpista como sua agremiação, por exemplo, assim se manifestou quando perguntado:

"(...)


Ele se tem revelado um homem persistente nos seus propósitos; e que os seus propósitos sejam os de se manter no poder a qualquer custo - e, com que gosto, à custa das instituições democráticas - hoje ninguém contesta. No discurso do 1.º de maio, o sr. Getúlio Vargas desmascara ousadamente as suas inclinações subversivas. Ante a reação das forças de vigilância democrática, manobra, tergiversa. Voltará provavelmente à carga. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento.

(...)


Em determinado momento, o seu afastamento poderá ser um imperativo de tranqüilidade pública e de sobrevivência das liberdades democráticas."


Pelo lado esquerdo, Getúlio também tinha seus problemas com o Partido Comunista, que nesse momento estava em guerra total contra seu governo. No início de 1954, o partido adotara a palavra de ordem "derrubada do governo de Vargas", em mais uma de suas posições que, a posteriori se mostraram equivocadas, porquanto derrubar Getúlio era tudo o que a direita queria. Aliás, nesse momento, todo mundo na oposição estava louco para instalar uma nova CPI contra Getúlio, a fim de derrubá-lo. Somente uma voz solitária no Partido Comunista, a de Fernando de Lacerda, clamava por razão a seus companheiros, mostrando a impossibilidade desses "delírios histéricos" de seus colegas de partido. Com muita percepção, ele deixa claro:

"(...) a realidade brasileira e a correlação de forças de classe existentes nesse começo de 1954 estão longe de tornar viável a derrubada imediata de Vargas por uma revolução verdadeiramente antifeudal e anticapitalista (...) A palavra de ordem é má porque tudo leva a crer que Vargas será substituído em breve, ou pelo voto em 1954 e 1955, ou por um putch de agentes do imperialismo ianque ou por um golpe 'salvador'".
Apesar do clima de intranquilidade que tais atitudes de seus oponentes e da reação causavam à nação, o governo trabalhista tentava seguir em frente. Até que, na madrugada de 05 de agosto, o udenismo e seus aliados foram presenteados com um cadáver, o sangue que nem em seus mais dourados sonhos almejavam, na figura do major Rubens Florentino Vaz.

Vaz, que formava com alguns companheiros da Aeronáutica uma espécie de guarda pretoriana de Carlos Lacerda, o principal opositor do governo, dirigia o automóvel deste último que, junto com o filho, Sérgio Lacerda, vindo de mais uma pregação antigetulista proferida no Externato São José, na Tijuca, voltava para casa. Quando o automóvel chega ao seu destino, à rua Toneleiros, e enquanto se despedia do amigo, Lacerda é emboscado por dois pistoleiros, recebendo um tiro sem gravidade em um dos pés. O pior aconteceria com o major Vaz: leva um tiro no peito de um dos pistoleiros, Alcino, mais tarde acusado de ser um jagunço do temido deputado Tenório Cavalcanti, com quem se atracara, morrendo a caminho do hospital.

Lacerda, por oportunidade e ódio, não perde tempo. No mesmo dia, publica violento artigo contra Getúlio na Tribuna da Imprensa, responsabilizando-o pelo atentado:
"Há neste país quem não saiba que a corrupção do governo Vargas gera o terror de seu bando? Dia após dia, noite após noite, a ronda da violência faz o cerco aos que não cedem à coação do dinheiro.
(...)

A visão de Rubens Vaz na rua, a viagem interminável que fiz com ele até o hospital, vendo-o morrer em meus braços com duas balas à queima-roupa, impedem-me de analisar a frio, neste momento, a hedionda emboscada desta noite. Mas, perante Deus, acuso um só homem como responsável por esse crime. É o protetor dos ladrões, cuja impunidade lhes dá audácia para atos como o desta noite. Este homem se chama Getúlio Vargas."

Logo, porém, no dia 10 de agosto, Climério Eurides de Almeida, membro da guarda presidencial do Catete, identificado como um dos autores do crime, após uma cinematográfica busca, em que não faltaram helicópteros e cães policiais, é preso em um matagal na região de Tinguá, sendo recolhido à base aérea do Galeão, onde ficaria incomunicável para interrogatórios e averiguações. A prisão de seu comparsa, João Alcino do Nascimento, seria só uma questão de tempo.

No ínterim, avisado pelos ministros da Aeronáutica, brigadeiro Nero Moura, e da Justiça, Tancredo Neves, de que um membro de sua guarda pessoal era o principal suspeito do atentado, Getúlio determina a apuração das responsabilidades, designando um promotor de Justiça Militar ligado à oposição para acompanhar as fases do inquérito. E para evitar mais problemas, dissolve também sua guarda, composta por cerca de oitenta membros.
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Aberto o inquérito policial-militar, cujos membros eram na totalidade hostis ao getulismo e dispostos a tudo para incriminar e destruir o presidente, os brasileiros se vêem diante de um circo de horrores; os grandes jornais, cuja hostilidade vinha em um crescendo desde a instalação da CPI que investigara Samuel Wainer e seus jornais, em histéricas manchetes e reportagens, tentam enlamear todo mundo à volta do governo, de Beijo Vargas a Ricardo Jafet, de Vítor Costa a Euvaldo Lodi – no dia 19 de agosto, Maneco Vargas é formalmente acusado pela oposição de corrupção –, tudo isso como cortina de fumaça para as reais intenções da UDN e companhia: derrubar Getúlio.
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Assim é que Afonso Arinos, em discurso proferido na Câmara dos Deputados, em que denuncia o "mar de lama", no qual, na opinião das hostes udenistas, se transformara o governo getulista, além de cobrar pelo sangue recém-derramado, exige a renúncia de Getúio para tentava jogar as Forças Armadas contra o presidente, o mesmo fazendo Aliomar Baleeiro, Eduardo Gomes, Juarez Távora e outros, ou seja, a "Banda de Música" da UDN arrumara um tema para tocar de forma a mais barulhenta possível. Aliado a isso, companheiros seus da Força Aérea vão ao ministro da Guerra, general Zenóbio da Costa, para pressioná-lo a retirar seu apoio ao presidente.
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Com a pressão insuportável da mídia, quase que unanimemente contra seu governo e sua inimiga mortal, poucas vozes em sua defesa eram ouvidas. Mas, Gustavo Capanema saiu em defesa do amigo de longa data, aos 17 de agosto, ela faz um apaixonado discurso em defesa do presidente e de sua família, em que denúncia a instigação ao golpe feita pela UDN, que, não ganhando nas urnas, utilizava-se de um episódio esporádico
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Enquanto isso, o grosso da imprensa continuava seu carnaval, ficando absolutamente assanhada quando um peixe graúdo entrava na lista de suspeitos. E mais assanhada fica quando Gregório Fortunato, depois das denúncias do pistoleiro Climério, o maior suspeito de ser a mão por detrás do crime e ex-chefe da guarda presidencial e presença constante ao lado de Getúlio, é preso e também enviado para a base do Galeão, onde sofre violentos interrogatórios (pra dizer o mínimo) para denunciar o suposto verdadeiro mandante.
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O que se queria, obviamente, era um nome forte o bastante para acabar com Getúlio, sendo o de Beijo Vargas o preferido por questões "práticas". Só que Gregório, de início, resiste e não incrimina ninguém, para desespero das hostes inimigas que rondavam constantemente a "República do Galeão" à espera de um nome poderoso. Só mais tarde, em setembro, após 45 dias de prisão, é que ele aponta aos inquisidores, - integrantes do mesmo grupo que protegia Lacerda - um peso pesado como o autor intelectual do crime, o general Mendes de Moraes (também citados os nomes de Euvaldo Lodi, Danton Coelho, e Benjamim Vargas), nome mais que insuspeito e que causou constrangimento aos inquisidores da oposição pela sua alta patente. Porém, apesar de tudo, apesar dos constrangimentos e pressões, nada conseguem contra o mais novo suspeito que acabou por ser inocentado.


Não aguentando a pressão e não mais conseguindo domar seus comandados, o ministro da Aeronáutica, brigadeiro Nero Moura, renuncia, tornando tudo mais confuso. E enquanto o vice-presidente, Café Filho, pensa ter encontrado uma solução que agradaria a todos, quer seja, sua renúncia e a de Getúlio, permitindo que o presidente da Câmara, Carlos Luz, assumisse, e convocasse novas eleições presidenciais, unidades das Forças Armadas entram em prontidão, ao mesmo tempo em que Mascarenhas de Morais vai ao Catete com a missão de exigir a renúncia presidencial, conforme desejo dos oficiais das três armas. O mesmo faz o Clube da Aeronáutica, no dia 22 de agosto de 54. Getúlio repudia ambas as propostas, argumentando que não cometera crime algum e que só morto deixaria o governo.

Só que a imprensa oposicionista, de direita, queria mesmo é sangue. Em sua edição de 2 de agosto desse ano, o jornal Tribuna da Imprensa publica, em escandalosa manchete: “Somos um povo honrado governado por ladrões.”

Na madrugada de 24 de agosto, as coisas se precipitam e a tragédia anunciada entra em cena.

Getúlio convoca uma reunião ministerial (ausente somente o ministro das Relações Exteriores, Vicente Rao), de que participam ainda vários parentes e o chefe do Estado maior das Forças Armadas, marechal Mascarenhas de Morais. Aparentemente tranqüilo, não dava ele nenhuma demonstração de seu estado interior.
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Pelas circunstâncias e pelo que representava, a reunião foi tensa. Todos emitiam suas opiniões e suas preocupações. Zenóbio da Costa informava que, de seus generais, uns trinta e cinco já apoiavam abertamente os sublevados da Aeronáutica, e que resistir seria possível, só que à custa certamente de muito sangue. Ou seja, nas entrelinhas, demonstrava ser contra a reação legalista. Foi o bastante para que Alzira Vargas, em atitude corajosa, intimasse o ministro a reagir, argumentando, que o total de apoiadores do movimento contra Getúlio no Exército era menor do que se dizia, além de, segunda ela, serem todos eles generais sem tropas e o movimento, de gabinete.
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Os dois outros ministros militares, Renato Guilhobel (Marinha) e Epaminondas Gomes dos Santos (Aeronáutica) foram mais derrotistas ainda, o primeiro informando que suas tropas já teriam manifestado seu apoio aos companheiros da Aeronáutica, enquanto o segundo claramente já se considerava um comandante sem comandados.

Dos ministros civis, as vozes foram díspares: Enquanto Tancredo Neves e Osvaldo Aranha se colocavam claramente no time dos que se alinhavam a favor de uma reação contra os revoltosos, usando o álibi da legalidade, José Américo de Almeida, primeiramente sugerindo que o melhor seria mesmo a renúncia de Getúlio, depois acata uma sugestão de Amaral Peixoto, marido de Alzira, que advogara que uma saída honrosa seria um pedido de licença, uma forma conciliatória que poderia evitar derramamento de muito sangue.
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Às altas horas, Getúlio então encerra a reunião, aceitando a opinião do amigo de longa data, José Américo: pediria mesmo licença do governo, contanto que fosse assegurada a ordem pública e observados os preceitos constitucionais. Deixava claro, porém, que, caso se tentasse efetuar sua deposição do governo, o que encontrariam seria seu cadáver.

Encarregado de levar aos companheiros de armas esta posição, Zenóbio da Costa, na verdade já apoiando os golpistas, volta com a informação de que a licença não seria suficiente. Exigiam o afastamento definitivo do presidente constitucional do Brasil. Era o golpe militar, a quartelada se avizinhando.
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Como uma esfinge, Getúlio nada deixa transparecer; enquanto despachava seu irmão, Benjamim Vargas, para confirmar essa notícia, encaminha-se para seus aposentos a pretexto de descansar de tão longa e tortuosa noite.
Então, por volta das 9 horas, o Brasil é sacudido pelos famosos acordes do Repórter Esso, o mais famoso noticiário da rádio brasileiro, que, em edição extraordinária, informava a uma população atônita a mais inesperada das notícias: o presidente da República, Getúlio Dorneles Vargas, matara-se há pouco com um tiro no coração.


Vídeo do Arquivo Nacional (AN) sobre a morte de Getúlio Vargas.














Ao mesmo tempo, e paralelamente, todo o Brasil também tomava conhecimento, primeiramente através das ondas da Rádio Nacional, depois, de várias outras espalhadas por todo o Brasil, de sua Carta-Testamento, uma bomba cujo teor seus inimigos, nem em seus piores pesadelos, jamais poderiam imaginar, em que identificava seus algozes e os motivos pelos quais chegara a tirar a própria vida:
"Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim.


Não me acusam, insultam, não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender como sempre defendi o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstáculo até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.


Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.


Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate.
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Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abaterammeu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história."


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Assim que o teor da Carta-Testamento é divulgado, a emoção e o sentimento de vingança tomam conta do país. Enquanto a oposição conservadora, amedrontada, dava um jeito de se esconder, e alguns jornais antigetulistas agiam como se nada tivessem com o acontecimento, as massas nas ruas, acusando o governo norte-americano e a UDN como assassinos, atacam o consulado americano e as sedes de várias empresas ianques, dentre as quais a Standard Oil, o National City Bank of New York e a Light, além de queimarem e destruírem a Rádio Farroupilha (de Porto Alegre), ao mesmo tempo apedrejando, tombando e queimando alguns veículos identificados como pertencentes a alguns jornais contrários a Getúlio, sendo O Globo o alvo mais esplendoroso.
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Impressionante mesmo, porém, foi quando o esquife com o corpo de presidente, saindo do Catete rumo ao aeroporto Santos Dumont para ser embarcado para sua terra natal, São Borja, Rio Grande do Sul, chega ao seu destino. Uma compacta multidão, que acompanhava o corpo chorando e rezando, estimada em mais de um milhão de pessoas, ao se defrontar com a guarda da Aeronáutica - logo quem! - que conduziria o caixão até o avião, já sabendo da participação dessa arma na trama que
resultou no suicídio de Getúlio, investe contra os cadetes aos gritos de "assassinos", enquanto as pessoas que carregavam o caixão se negam a lhes entregar o corpo. Instalada a confusão, a guarda, com medo da massa, a enfrenta, atirando para todos os lados, ferindo vários populares; só depois de muita peleja, o corpo finalmente consegue ser embarcado.


A vingança de Getúlio foi maligna. Sua morte, além de ter postergado o golpe militar por dez anos, se constituiu na principal responsável para que a UDN (que, com posse de Café Filho, finalmente chegara ao poder, mesmo que indiretamente) fosse irremediavelmente derrotada nas eleições de outubro, chegando mais enfraquecida ainda para o pleito presidencial que ocorreria no ano seguinte, onde teria que enfrentar uma dobradinha, àquela altura muito forte: a dupla Juscelino Kubitschek e Jango Goulart.
Como despojos de guerra, as forças da reação udenistas e aquelas a eles ligadas que mais concorreram para a ruína do governo constitucional de Getúlio Vargas, foram alçados ao poder tão logo Café Filho toma posse. De seus quadros saem quase todos os ministros militares, Eduardo Gomes (Aeronáutica), Amorim do Vale (Marinha), Canrobert Pereira da Costa (Estado Maior das Forças Armadas), Juarez Távora (Casa Militar), e vários outros importantes ministérios e cargos, Relações Exteriores (Raul Fernandes), Casa Civil (José Monteiro de Castro), Justiça, (Miguel Seabra Fagundes) Fazenda (Eugênio Gudin) e Banco do Brasil (Clemente Mariani).

O novo ministério foi completado por Lucas Lopes, do PSD mineiro (Viação e Obras Públicas), Cândido da Mota Filho, do PR (Educação), José Costa Porto, renegado do PSD (Agricultura), outro renegado, agora do PTB, Napoleão de Castro Guimarães (Trabalho), Aramis Ataíde, do PSP (Saúde) e, completando o time, Teixeira Lott, para o Ministério da Guerra, escolha que se mostraria fatal para Café Filho e seus novos companheiros.
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O primeiro problema para o novo governo de Café Filho foi a questão das eleições. A maioria de seus apoiadores - UDN, PR, PL, mais setores das Forças Armadas e dissidentes de outros partidos - exigem que ele não cumpra sua palavra de respeitar a Constituição, suspendendo as eleições marcadas para o mês de outubro. O argumento era de que, devido às paixões despertadas pelo suicídio de Getúlio Vargas, o PTB seria o grande vencedor do pleito, o que poderia desencadear uma guerra civil no país. E como sempre, as posições mais exacerbadas eram defendidas por Carlos Lacerda, adepto incondicional à implantação de um regime forte - leia-se ditadura - para fazer frente a uma possível máquina getulista. Porém, a dinâmica da história impede tal decisão, as eleições sendo marcadas para a data estipulada, três de outubro de 1953.
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O resultado confirmou os piores prognósticos para a UDN, que perdeu 10 cadeiras na Câmara Federal (de 84 para 74), além de ficar com apenas 13 senadores, abaixo do PTB (16) e do PSD (22). Também confirmou e deixou evidente que uma coligação PTB/PSD seria imbatível nas próximas eleições presidenciais marcadas para 1955, mormente depois que o PSD confirmou a candidatura considerada imbatível de Juscelino Kubitschek, o governador de Minas Gerais.
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Essa confirmação foi o bastante para que as cassandras golpistas iniciassem a conspiração contra o processo eleitoral, agora contando com o suporte do famoso "Grupo Sorbonne", integrados por conspiradores de alto coturno, sobressaindo-se Bizarria Mamede, Golbery do Couto e Silva, Rodrigo Otávio Jordão Ramos, Newton Fontoura de Oliveira Reis, Sizeno Sarmento, Castelo Branco e Adolfo de Paula Couto, ou seja, os golpistas de sempre.

Café Filho, que, na verdade, não contava com uma base parlamentar própria – praticamente todos os partidos agiam de forma independente -, assim que tomou posse da situação, se deparou com os dois fantasmas que sempre perseguiram o país: a inflação, que ameaçava ficar incontrolável e o déficit no balanço de pagamentos. Para tentar equacionar tais descontroles na economia, Eugênio Gudin, que carregava a pecha de ser um mero testa-de-ferro no Brasil da poderosa Bond & Share, advindo da corrente de pensamento econômico liberal, da qual ainda faziam parte Gouveia de Bulhões, Dênio Nogueira e Daniel Carvalho, tenta colocar em prática seu projeto econômico que basicamente consistia em propiciar o crescimento do país via mercado, impondo uma política de contenção de crédito, já escasso, ao mesmo tempo em que executava profundos cortes nos gastos públicos. Para isso, procura adotar todo o receituário econômico propugnado pelas forças conservadoras, do controle cambial à adoção de políticas salariais e fiscais restritivas, passando, obviamente, pela abertura do mercado brasileiro para o capital estrangeiro, tornada realidade pela efetivação da instrução 113 da SUMOC que favorecia semelhante ato. Políticas bem parecidas com aquelas adotadas no país, muito mais tarde, por um governo dito social-democrata, chefiado por famoso intelectual de esquerda.


Só que, sentindo-se prejudicados pela adoção dessas políticas, o empresariado brasileiro, também base de apoio do governo recém-empossado, reage, exigindo proteção e apoio à indústria nacional. São apoiados, por seu turno, pelos sindicatos, que, comandados pela PUA - Pacto de Unidade Sindical, pondo à prova a força da administração Café Filho, decreta uma greve geral em São Paulo, paralisando mais de um milhão de trabalhadores.


Mesmo, porém, cercado de tricas e futricas por todos os lados, o novo presidente tentava a governabilidade do país: aprovou a criação do imposto único sobre energia elétrica (ao mesmo tempo em que era formado o Fundo Federal de Eletrificação), e implantou o desconto na fonte do imposto sobre a renda do trabalho assalariado. Ainda nos primórdios de seu mandato, Café autorizou pesquisas petrolíferas no Rio Grande do Norte, em Alagoas e na bacia sedimentar do Amazonas.
Aliás, a questão do petróleo era ainda o assunto mais quente e espinhoso da economia brasileira. Aproveitando a fragilidade do novo governo, sem base sólida no Congresso Nacional, aumentavam as pressões para acabar com o monopólio do petróleo, basicamente pelos mesmos golpistas de sempre. Café Filho foi então praticamente obrigado a solicitar os general Canrobert Pereira da Costa, então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, que as três armas tomassem uma posição conjunta sobre o assunto. Entretanto, com o acirramento das questões políticas no país, era impossível qualquer tomada de posição acerca desse assunto, fato que foi confirmado em documento emitido pelos Estados-Maiores em novembro do corrente ano, em que era considerada prematura e inconveniente qualquer alteração na questão do petróleo, sendo, então, mantida a legislação vigente.
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Assim, com problemas para colocar em prática sua política de cunho liberal, tendo que enfrentar uma inflação na casa dos 28% e os fantasmas do getulismo agrupados em torno de Juscelino, o governo Café Filho termina o ano de 1954 cercado de incertezas e de conspiração.


Era esperar para ver.



2 comentários:

Unknown disse...

Quero apenas mandar um abraço para o autor deste belo trabalho,cumprimenta-lo pela paixão e generosidade investidas.Valeu!

Joca disse...

Valeu José Henrique por essa bela postagem!Foi muito acrescentador.