24.8.06

VOCÊ PENSA QUE CACHAÇA É ÁGUA?


Certamente esse foi um dos piores carnavais de todos os tempos em termos de qualidade e de criatividade de suas músicas. Apesar das centenas de gravações, quase sempre com cantores sem nenhum prestígio - Alcides Fonseca, Dupla de Ouro, Os Copacabanas, Ernani Filho, Ivan de Alencar, Geraldo Ferreira, Ivete Garcia, Victor Simon, Dolores Barrios -, pouca coisa sobrou do desastre total que terminou por contaminar até os compositores de nome, a maioria não conseguindo se destacar durante o reinado de momo.



Esse foi o carnaval de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti. A dupla, acostumada com seguidos êxitos na maior festa popular do Brasil, conseguiu se safar da mediocridade total e emplacou dois dos maiores sucessos carnavalescos do ano, a marcha Dona Cegonha e o samba Máscara da Face.





Sátira ao controle de natalidade, começando a se tornar realidade no Brasil, ao mesmo tempo em que não deixava de dar sua pitadinha de crítica social, identificando o problema do controle à inflação do período, Dona Cegonha, com versos bem elaborados e estrutura carnavalesca pra ninguém botar defeito, se constituiu em um dos maiores sucessos da carreira de Blecaute:


"Ai! ai! ai! dona cegonha
Saiu risonha
Pra trabalhar
Ficou danada
Encabulada
Com a cegonha
Ninguém quer nada.

Ela trabalhava noite e dia
Não encalhava mercadoria
Mas a carestia está medonha
Ninguém quer nada com a cegonha
Ai! ai! ai!"
Blecaute interpretando Dona Cegonha.


 


Cantada de maneira absoluta pela magnífica Dircinha Batista, Máscara da Face, além de ter participado do mega sucesso da Atlântida,  Carnaval Atlântida,  ultrapassou seu destino. Foi sucesso no carnaval e ficou na história da música popular brasileira, entrando sempre nas antologias dos melhores sambas carnavalescos de todos os tempos:


"Deixou, deixou, deixou
Deixou cair a máscara da face
Mostrou, mostrou, mostrou
Mostrou por fim que nunca teve classe.

No começo dei-lhe a mão
Depois, depois meu coração
Para ela fui um pai
Um amigo e um irmão.
.
Dei-lhe tudo o que pedia
Sem pensar no desenlace
Afinal não merecia
Tirou a máscara da face."

Dircinha Batista interpretando Máscara da Face.














Confiante em seu taco, e candidatíssima ao título de Rainha do Rádio, Emilinha Borba lança nada mais nada menos do que oito músicas para esse carnaval: A Louca Chegou (Adoniran Barbosa/Rômulo Pais/Henrique Almeida), A Semana Inteira (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti), Você Sabe Muito Bem (L. Faissal/Getúlio Macedo/Benê Alexandre), Pelo Amor de Deus (Humberto Teixeira/Felícia Godoy), Bananeira Não Dá Laranja (João de Barro), Catumbi Encheu (Rutinaldo/ Norival Reis), Felipato (Antônio Almeida) e Olha a Corda (João de Barro/Antônio Almeida).


Todas fracassaram, à exceção parcial de Bananeira Não Dá Laranja que, por ter um estilo parecido com Chiquita Bacana e um primeiro verso mais do que interessante, teve mediana repercussão, longe dos sucessos esmagadores de Braguinha e de Emilinha Borba e, como fato histórico, A Louca Chegou, por ser uma música com a assinatura de Adoniran Barbosa:

                      "A louca chegou o ô, a louca chegou
                      Desesperada, procurando seu amor
                      A louca chegou o ô, a louca chegou
                      Desesperada, procurando seu amor



                      Deus me livre eu quero paz
                      Vou tratar de dar no pé (na Glória)
                      Não aturo ela mais
                     Quem conhece essa mulher
                     É que sabe o que ela é."


.
Emilinha Borba interpretando A Louca Chegou. 














.
Se Eu Errei, de Risadinha, Humberto Carvalho e Edu Rocha, apesar dos versos banais e uma melodia nada original, acabou fazendo sucesso e caindo na boca do povo na voz de Risadinha, obviamente em virtude da pobreza geral da maioria dos outros lançamentos carnavalescos:


"Se eu errei
Foi sem querer
Jamais pensei
Jamais pensei
Em te fazer sofrer.

O teu amor
O teu calor
É tudo pra mim
Se eu errei
Se eu pequei
Meu grande amor
Jamais pensei..."

Risadinha interpretando Se Eu Errei










  




Mestre Haroldo Lobo não poderia mesmo faltar. Sua marchinha para esse carnaval, Pescaria, gravada pelos Quatro Ases e Um Coringa, foi outro certeiro sucesso e,certamente, uma das mais cantadas deste carnaval:

"Domingo é dia
De pescaria
Lá vou eu
De caniço e samburá.

Maré tá cheia
Fico na areia
Porque na areia
Dá mais peixe que no mar.

Todo bom pescador ama o sol
Todo bom pescador pesca em pé
Não precisa jogar o anzol
É só com os olhos feito Jacaré, é.”




Quatro Ases e Um Coringa interpretando Pescaria.





















Júlio Louzada tinha na Rádio Nacional um programa denominado "Hora do Ângelus", ou "Hora da Ave-Maria" (irradiado exatamente às dezoito horas durante toda a semana), quase um fenômeno de popularidade, em que ele, além de rezar, dava conselhos para seus ouvintes. Baseado nisso, Paquito e
 Romeu Gentil, uma das duplas de compositores carnavalescos mais afiadas, compuseram Marcha do Conselho, que, gravada por Roberto Paiva e por Bill Farr (que a interpretou no filme Carnaval Atlântida), foi um dos maiores sucessos desse carnaval:



"A mulher do meu maior amigo
Me manda bilhetes todo o dia
Desde que me viu ficou apaixonada
Me aconselha, 'seu' Júlio Louzada.
.
Até no meu trabalho já foi me procurar
Preciso de um conselho para me orientar
O telefone me procura a toda hora
E a qualquer dia a patroa vai embora."

Bill Farr interpretando A Marcha do Conselho.



Inegavelmente, porém, o grande sucesso desse carnaval foi a marcha Cachaça, de Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato (após mais de 20 anos, o jornalista londrinense Marinósio Filho ganhou na justiça o direito de também ser considerado um dos autores da composição); cantada por Carmen Costa (1920 - 2007),a primeira (e única) verdadeira estrela negra do rádio nesse período, e pelo cômico Colé, com versos absolutamente carnavalescos e tratando de um assunto caro à maioria dos foliões, Cachaça, apesar de ter sido considerada um plágio da música Pierrot Apaixonado (Joubert de Carvalho), terminou sendo a grande vencedora do concurso de carnaval da prefeitura do Rio de Janeiro:


"Você pensa que cachaça é água?
Cachaça não é água não
Cachaça nasce do alambique
E água vem do ribeirão.

Pode me faltar tudo na vida
Arroz, feijão e pão
Pode me faltar manteiga
Que tudo mais não faz falta não.

Pode me faltar amor
Isso até acho graça
Só não quero que me falte
A danada da cachaça

 Carmen Costa e Colé interpretando Cachaça.
















Outro caso de sucesso devido à indigência da grande maioria das músicas foi Cossaco, do cômico Carvalhinho, que utilizou o fácil recurso do trocadilho e do duplo sentido para agradar as massas, além de mencionar um assunto candente nos últimos tempos devido ao auge da guerra fria, o termo "cortina de ferro", para identificar a União Soviética. Obviamente agradou na voz de César de Alencar (1917 - 1990):
"Se o cossaco enche o saco
Que buraco!
Que buraco!
Afinal é muito feio
Ver mais um cossaco cheio.

Ai, geme a balalaica
Ai, vem de longe o berro
Pega o abridor de lata
E abre a cortina de ferro."
 César de Alencar interpretando Cossaco. 
















Com outra música de Luiz Antônio, agora em parceria com Brasinha, Marlene, pelo terceiro ano consecutivo, foi a grande sensação do carnaval com o samba Zé Marmita. Tratando novamente de um tema social, fato constante no universo do compositor, o samba, desta vez, enfoca o drama dos trabalhadores que se levantam de madrugada, pegam um trem apinhado de gente e, além de tudo, têm que comer uma comida sobrada da janta passada. Zé Marmita terminou por ser a música mais cantada e executada do ano, sendo o samba que ganhou o concurso do carnaval.





"Quatro horas da manhã
Sai de casa Zé Marmita
Pendurado na porta do trem
Zé Marmita vai e vem.
.
Numa lata, Zé Marmita
Trás a bóia que ainda sobrou do jantar
Meio-dia, Zé Marmita
Faz o fogo para a comida esquentar
E o Zé Marmita, barriga cheia
Esquece a vida num bate-bola de meia."

Marlene interpretando Zé Marmita.


















O mesmo Luiz Antônio (em parceria com o discotecário Oldemar Magalhães), porém, foi o compositor da música mais injustiçada do carnaval deste ano. Barracão, gravada por Heleninha Costa, por motivos que somente os deuses do carnaval podem saber, passou quase despercebida, e assim ficaria até que, em 1968, em gravação antológica realizada ao vivo no Teatro João Caetano, Elisete Cardoso, acompanhada por Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, a recuperaria para entrar definitivamente na história da música popular brasileira como um dos maiores sambas de carnaval de todos os tempos:


“Vai Barracão
Pendurado no morro
E pedindo socorro
À cidade a teus pés.

Vai Barracão
Tua voz eu escuto
Não te esqueço um minuto
Porque sei que tu és.

Barracão de zinco
Tradição do meu país
Barracão de zinco
Pobretão infeliz."
 Elisete Cardoso, Jacob do Bandolin e Época de Ouro e interpretam Barracão.















Nenhum comentário: