Certamente esse foi um dos piores carnavais de todos os tempos em termos de qualidade e de criatividade de suas músicas. Apesar das centenas de gravações, quase sempre com cantores sem nenhum prestígio - Alcides Fonseca, Dupla de Ouro, Os Copacabanas, Ernani Filho, Ivan de Alencar, Geraldo Ferreira, Ivete Garcia, Victor Simon, Dolores Barrios -, pouca coisa sobrou do desastre total que terminou por contaminar até os compositores de nome, a maioria não conseguindo se destacar durante o reinado de momo.
Esse foi o carnaval de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti. A dupla, acostumada com seguidos êxitos na maior festa popular do Brasil, conseguiu se safar da mediocridade total e emplacou dois dos maiores sucessos carnavalescos do ano, a marcha Dona Cegonha e o samba Máscara da Face.
Sátira ao controle de natalidade, começando a se tornar realidade no Brasil, ao mesmo tempo em que não deixava de dar sua pitadinha de crítica social, identificando o problema do controle à inflação do período, Dona Cegonha, com versos bem elaborados e estrutura carnavalesca pra ninguém botar defeito, se constituiu em um dos maiores sucessos da carreira de Blecaute:
Blecaute interpretando Dona Cegonha."Ai! ai! ai! dona cegonhaSaiu risonhaPra trabalharFicou danadaEncabuladaCom a cegonhaNinguém quer nada.
Ela trabalhava noite e diaNão encalhava mercadoriaMas a carestia está medonhaNinguém quer nada com a cegonhaAi! ai! ai!"
Cantada de maneira absoluta pela magnífica Dircinha Batista, Máscara da Face, além de ter participado do mega sucesso da Atlântida, Carnaval Atlântida, ultrapassou seu destino. Foi sucesso no carnaval e ficou na história da música popular brasileira, entrando sempre nas antologias dos melhores sambas carnavalescos de todos os tempos:
"Deixou, deixou, deixouDeixou cair a máscara da faceMostrou, mostrou, mostrouMostrou por fim que nunca teve classe.
No começo dei-lhe a mãoDepois, depois meu coraçãoPara ela fui um paiUm amigo e um irmão..Dei-lhe tudo o que pediaSem pensar no desenlaceAfinal não mereciaTirou a máscara da face."
Dircinha Batista interpretando Máscara da Face.
Confiante em seu taco, e candidatíssima ao título de Rainha do Rádio, Emilinha Borba lança nada mais nada menos do que oito músicas para esse carnaval: A Louca Chegou (Adoniran Barbosa/Rômulo Pais/Henrique Almeida), A Semana Inteira (Klécius Caldas/Armando Cavalcanti), Você Sabe Muito Bem (L. Faissal/Getúlio Macedo/Benê Alexandre), Pelo Amor de Deus (Humberto Teixeira/Felícia Godoy), Bananeira Não Dá Laranja (João de Barro), Catumbi Encheu (Rutinaldo/ Norival Reis), Felipato (Antônio Almeida) e Olha a Corda (João de Barro/Antônio Almeida).
Todas fracassaram, à exceção parcial de Bananeira Não Dá Laranja que, por ter um estilo parecido com Chiquita Bacana e um primeiro verso mais do que interessante, teve mediana repercussão, longe dos sucessos esmagadores de Braguinha e de Emilinha Borba e, como fato histórico, A Louca Chegou, por ser uma música com a assinatura de Adoniran Barbosa:
"A louca chegou o ô, a louca chegou
Desesperada, procurando seu amor
A louca chegou o ô, a louca chegou
Desesperada, procurando seu amor
Deus me livre eu quero paz
Vou tratar de dar no pé (na Glória)
Não aturo ela mais
Quem conhece essa mulher
É que sabe o que ela é."
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"A louca chegou o ô, a louca chegou
Desesperada, procurando seu amor
A louca chegou o ô, a louca chegou
Desesperada, procurando seu amor
Deus me livre eu quero paz
Vou tratar de dar no pé (na Glória)
Não aturo ela mais
Quem conhece essa mulher
É que sabe o que ela é."
.
Emilinha Borba interpretando A Louca Chegou.
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Se Eu Errei, de Risadinha, Humberto Carvalho e Edu Rocha, apesar dos versos banais e uma melodia nada original, acabou fazendo sucesso e caindo na boca do povo na voz de Risadinha, obviamente em virtude da pobreza geral da maioria dos outros lançamentos carnavalescos:
"Se eu erreiFoi sem quererJamais penseiJamais penseiEm te fazer sofrer.
O teu amorO teu calorÉ tudo pra mim
Se eu erreiSe eu pequeiMeu grande amorJamais pensei..."
Risadinha interpretando Se Eu Errei.
Mestre Haroldo Lobo não poderia mesmo faltar. Sua marchinha para esse carnaval, Pescaria, gravada pelos Quatro Ases e Um Coringa, foi outro certeiro sucesso e,certamente, uma das mais cantadas deste carnaval:
"Domingo é diaDe pescariaLá vou euDe caniço e samburá.
Maré tá cheiaFico na areiaPorque na areiaDá mais peixe que no mar.
Todo bom pescador ama o solTodo bom pescador pesca em péNão precisa jogar o anzolÉ só com os olhos feito Jacaré, é.”
Quatro Ases e Um Coringa interpretando Pescaria.
Júlio Louzada tinha na Rádio Nacional um programa denominado "Hora do Ângelus", ou "Hora da Ave-Maria" (irradiado exatamente às dezoito horas durante toda a semana), quase um fenômeno de popularidade, em que ele, além de rezar, dava conselhos para seus ouvintes. Baseado nisso, Paquito e
Romeu Gentil, uma das duplas de compositores carnavalescos mais afiadas, compuseram Marcha do Conselho, que, gravada por Roberto Paiva e por Bill Farr (que a interpretou no filme Carnaval Atlântida), foi um dos maiores sucessos desse carnaval:
"A mulher do meu maior amigoMe manda bilhetes todo o diaDesde que me viu ficou apaixonadaMe aconselha, 'seu' Júlio Louzada..Até no meu trabalho já foi me procurarPreciso de um conselho para me orientarO telefone me procura a toda horaE a qualquer dia a patroa vai embora."
Bill Farr interpretando A Marcha do Conselho.
Inegavelmente, porém, o grande sucesso desse carnaval foi a marcha Cachaça, de Mirabeau Pinheiro, Lúcio de Castro e Héber Lobato (após mais de 20 anos, o jornalista londrinense Marinósio Filho ganhou na justiça o direito de também ser considerado um dos autores da composição); cantada por Carmen Costa (1920 - 2007),a primeira (e única) verdadeira estrela negra do rádio nesse período, e pelo cômico Colé, com versos absolutamente carnavalescos e tratando de um assunto caro à maioria dos foliões, Cachaça, apesar de ter sido considerada um plágio da música Pierrot Apaixonado (Joubert de Carvalho), terminou sendo a grande vencedora do concurso de carnaval da prefeitura do Rio de Janeiro:
"Você pensa que cachaça é água?Cachaça não é água nãoCachaça nasce do alambiqueE água vem do ribeirão.
Pode me faltar tudo na vidaArroz, feijão e pãoPode me faltar manteigaQue tudo mais não faz falta não.Isso até acho graçaSó não quero que me falteA danada da cachaça
Carmen Costa e Colé interpretando Cachaça.
Outro caso de sucesso devido à indigência da grande maioria das músicas foi Cossaco, do cômico Carvalhinho, que utilizou o fácil recurso do trocadilho e do duplo sentido para agradar as massas, além de mencionar um assunto candente nos últimos tempos devido ao auge da guerra fria, o termo "cortina de ferro", para identificar a União Soviética. Obviamente agradou na voz de César de Alencar (1917 - 1990):
César de Alencar interpretando Cossaco."Se o cossaco enche o sacoQue buraco!Que buraco!Afinal é muito feioVer mais um cossaco cheio.Ai, geme a balalaicaAi, vem de longe o berroPega o abridor de lataE abre a cortina de ferro."
Com outra música de Luiz Antônio, agora em parceria com Brasinha, Marlene, pelo terceiro ano consecutivo, foi a grande sensação do carnaval com o samba Zé Marmita. Tratando novamente de um tema social, fato constante no universo do compositor, o samba, desta vez, enfoca o drama dos trabalhadores que se levantam de madrugada, pegam um trem apinhado de gente e, além de tudo, têm que comer uma comida sobrada da janta passada. Zé Marmita terminou por ser a música mais cantada e executada do ano, sendo o samba que ganhou o concurso do carnaval.
"Quatro horas da manhãSai de casa Zé MarmitaPendurado na porta do tremZé Marmita vai e vem..Numa lata, Zé MarmitaTrás a bóia que ainda sobrou do jantarMeio-dia, Zé MarmitaFaz o fogo para a comida esquentarE o Zé Marmita, barriga cheiaEsquece a vida num bate-bola de meia."
Marlene interpretando Zé Marmita.
O mesmo Luiz Antônio (em parceria com o discotecário Oldemar Magalhães), porém, foi o compositor da música mais injustiçada do carnaval deste ano. Barracão, gravada por Heleninha Costa, por motivos que somente os deuses do carnaval podem saber, passou quase despercebida, e assim ficaria até que, em 1968, em gravação antológica realizada ao vivo no Teatro João Caetano, Elisete Cardoso, acompanhada por Jacob do Bandolim e Conjunto Época de Ouro, a recuperaria para entrar definitivamente na história da música popular brasileira como um dos maiores sambas de carnaval de todos os tempos:
Elisete Cardoso, Jacob do Bandolin e Época de Ouro e interpretam Barracão.“Vai BarracãoPendurado no morroE pedindo socorroÀ cidade a teus pés.
Vai BarracãoTua voz eu escutoNão te esqueço um minutoPorque sei que tu és.
Barracão de zincoTradição do meu paísBarracão de zincoPobretão infeliz."
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