1.11.06

"BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ"

Já no início de 1950, os indicativos de que a volta de Getúlio Vargas ao poder era inexorável se faziam sentir por todos os lados. A aliança PSD-UDN, capaz de se contrapor à máquina que seria montada em torno do antigo caudilho, vira pó, quando fica evidente que o presidente Eurico Gaspar Dutra tramava na surdina a volta da antiga aliança PSD-PTB, para desespero dos próceres udenistas. Estes, por seu turno, desconfiam de que Getúlio terá o apoio do PSP de Adhemar de Barros, eleito, ainda em 1947, com maciço apoio das forças getulistas e, em nome dos “interesses nacionais”, dos comunistas. Também, em maio de 1950, outro golpe nas pretensões udenistas: a corrente nacionalista do exército, tendo à frente Estillac Leal e Horta Barbosa, ganha espetacularmente a eleição do Clube Militar.

Essa eleição se revestia de um caráter eminentemente político, uma vez que seu resultado representava, praticamente, uma prévia das eleições presidenciais, seus principais líderes sendo amplamente respeitados como símbolos do exército brasileiro. Assim, confrontam-se nessa peleja duas correntes ideológicas diametralmente opostas: de um lado, os generais Newton Estillac Leal e Horta Barbosa, identificados com a corrente nacionalista, ou seja, favorável a uma maior intervenção do Estado na economia brasileira e, na questão do petróleo – o assunto mais candente do momento devido aos enormes interesses em jogo – propugnando que se intensificassem as pesquisas e a produção com recursos estatais, deixando a refinação, o transporte e a distribuição para os grandes trustes internacionais. Uma posição até que moderada, mas considerada perigosa e comunizante por amplas parcelas das forças armadas, do capitalismo internacional e de seus aliados brasileiros.
Do outro lado, Oswaldo Cordeiro de Farias e Juarez Távora, da corrente dita internacionalista, são defensores de outros interesses, exatamente o contrário do grupo comandado por Horta Barbosa. Nas discussões acontecidas nos salões do Clube Militar, seus argumentos eram os de que o Estado brasileiro não tinha capacidade de alocar recursos na prospecção de petróleo, nem possuía técnicos capazes e eficientes nesse mister, o que tornaria o trabalho lento e difícil. Além do mais consideravam as dificuldades intransponíveis, "(...) dado o baixo nível de compreensão cívica do povo brasileiro e a falta de orientação e escrúpulos de nossa elite.”


A baixaria dominava as discussões, refletindo os enormes interesses em jogo. Os nacionalistas, segundo seus adversários, nada m
ais eram do que comunistas disfarçados, sendo a defesa dos interesses nacionais um mero disfarce para atacar os grandes grupos estrangeiros, o que significava, no contexto da guerra fria, demonstrar simpatias pela Rússia comunista. Já o outro grupo foi alcunhado de "entreguista", pela defesa apaixonada dos interesses dos trustes internacionais, principalmente norte-americanos, em solo brasileiro, e de "golpista", pelo envolvimento da maioria de seus líderes no golpe que depôs Getúlio Vargas em 1945.


Conectada com a irresistível escalada de Getúlio rumo ao poder, a corrente identificada com a defesa dos interesses nacionais vence espetacularmente os adversários por 3.883 a 2.721 votos. Estillac Leal se torna então presidente do Clube Militar.


Em julho, analisando a vitória dos nacionalist
as, a revista n.º 109 do Clube Militar deixava claro a linha ideológica que os militares deveriam seguir após o resultado do pleito:

"(...)

Venceu a decisão inquebrantável que faz da defesa dos interesses e das riquezas nacionais contra a cobiça alheia uma luta sem desfalecimento, uma batalha sem tréguas, da qual há de ressaltar o triunfo patriótico, com a conquista e a consolidação de nossa independência econômica.

Venceu o propósito de manter as Forças Armadas, irmanadas ao povo, em sua sagrada missão de intransigentes defensores dos ideais democráticos, do respeito à vontade popular, contra os golpistas e seus movimentos antipatrióticos dissimulados, ou não, com a máscara de defesa das instituições.

(...)

Por isso mesmo, o que nos cumpre fazer agora é, esquecidos da divisão eventual e passageira, morta no preciso momento em que se depôs o último voto na urna, unirmo-nos em torno dos novos poderes de nosso clube, para exigir e ajudar o cumprimento do programa eleito."

Estillac Leal não estava mesmo disposto a deixar nada pendente, e, em seu discurso, por ocasião da posse da nova diretoria, manda recados para todos os lados:


















"As eleições do Clube Militar, empolgando as Forças Armadas, num movimento cívico sem símile em sua história, deram à Nação uma lição de democracia, que ela deve considerar e meditar, dado que mostraram, com eloquência, subordinar-se a condicionar-se o regime democrático ao respeito mútuo, à educação cívica, à disciplina e, sobretudo, à consciência do dever, tanto dos que estão no poder, como dos que estão fora dele. A democracia, - tal como a compreendemos, medra e prospera onde se afirma o princípio da responsabilidade e onde as divergências de opinião, ao invés de fat"ores de desagregação, o são de vitalidade e coesão, pela fiscalização e crítica construtivas que promovem e de progresso, pela sadia emulação que engendram.

Nesse espetáculo, entretanto, alguns vesgos e hipócritas querem ver, não as cenas alentadoras duma consciência, que se expande e ganha consistência crescente, aberta generosamente às justas reivindicações de nossa classe, mas tão somente os quadros sombrios de traição à pátria e de solapamento de suas instituições. Esta opinião suspeita, como suspeitos são os que a esposam, não invalida a verdade e a significação histórica e social do acontecimento, cuja matriz assaz transcende de sua medíocre influência e estreita compreensão, porque, estagnados num passado morto, não sentem as palpitações e anseios da nova moral que nasce.

De qualquer forma, porém, a luta que travamos, no plano da opinião, dos princípios e das reivindicações impostergáveis de nossa classe, não foi e nem poderia ser mera competição caudilhesca. Afirmar o contrário seria ofender a consciência e o espírito cívico das Forças Armadas. As pessoas, minha e do meu velho e ilustre camarada, general Cordeiro de Farias, serviriam tão somente, pelas tendências que cada um exprime, para personificar as idéias em que se divide sua opinião, os princípios que esposam e os critérios de consideração e tratamento dos assuntos de seu particularíssimo interesse.

(...)

Há poucos dias, atribuiu-se a eminente camarada a assertiva de que, usando eu, em documento público, o termo 'Nação', em lugar de 'Pátria', dava prova da minha condição de comunista, aliás, propalada com medo e, desde há muito, por gratuitos inimigos meus, à sombra, evidente, do anonimato. Ignorava tivesse aquele termo perdido o seu valor semântico e muito menos sabia da influência comunista tão extensa e profunda na estrutura de nossa língua. Confesso o desconhecimento do evento surpreendente, e isto pela razão de que não possuo o dicionário bolchevista da língua portuguesa, nunca deletreado por mim, mas amiudadas vezes, por certo, pelos hermeneutas dos "Planos Cohens", de cujos conhecimentos especializados haverá, doravante, de se socorrer quem se aventura a escrever no idioma pátrio sem incidência no índex dos exegetas totalitários.

(...)”


No dia primeiro de junho de 50, logo após as eleições para o Clube Militar, e parecendo pressentir a vitória de seu inimigo número um, o raivoso jornalista da UDN Carlos Lacerda escreve em seu jornal Tribuna da Imprensa:



“O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar."

Entretanto, o desabamento da tese de união nacional, tecida pela UDN contra Getúlio Vargas, com a confirmação do afastamento do PSD dessa “união”, desanima de vez os udenistas, que via seu tão almejado sonho de ocupar o Catete cada dia mais distante, um sonho quase impossível. E apesar de o general Canrobert Pereira da Costa, ministro da Guerra de Dutra, ter convocado Ernani do Amaral Peixoto, genro de Getúlio e presidente do PSD, para que este comunicasse ao sogro que os militares haviam vetado seu nome ao cargo máximo do país, mais desanimados ficam os udenistas quando o general Góis Monteiro, em claro desafio à direita militar, declara, peremptoriamente, que as Forças Armadas não se oporiam à posse de ninguém, desde que “ os direitos impostergáveis dos militares” fossem respeitados.

A Era Vargas (parte 1).
















A Era Vargas (parte 2).















A Era Vargas (parte 3).
 







A Era Vargas (parte 4).



  












Tudo isso significava na verdade que o apoio a Getúlio provinha de várias fontes: setores ligados ao Estado ou dele dependente; a oligarquia estadual, quase toda oriunda do Estado Novo, agora alojada basicamente no PSD; setores nacionalistas das Forças Armadas e, mais importante, as massas urbanas mais organizadas, habilmente cooptadas pelo apelo getulista. A proeza do caudilho foi costurar uma aliança entre setores tão díspares, com a finalidade de possibilitar a expansão capitalista com base no nacionalismo, em alta no terceiro mundo, ou seja, amarrava um estilo político, o populismo, com a ideologia, o nacionalismo. Sobre o que seria o nacional-populismo getulista, a história diria a última palavra.

Nada impediria, por conseqüência, Getúlio Vargas em sua caminhada de volta ao poder. 15 dias depois do virulento artigo de Lacerda, Adhemar de Barros, em um comício realizado em São Paulo, lança sua (de Getúlio) candidatura à presidência da República, fazendo com que a multidão, onde eram vistas bandeiras de praticamente todos os partidos (exceto as da UDN, logicamente), cantasse em uníssono:


É PTB ! É PSP !
PRESIDENTE GETÚLIO!
ADHEMAR SENADOR!

Com o fechamento do acordo com Adhemar, os petebistas, depois de homologar a candidatura de Getúlio (19.08.50), registram sua candidatura junto ao TSE, tendo como candidato a vice um antigo desafeto getulista e quadro do PSP, Café Filho. Esta escolha, porém, trouxe em seu bojo alguns contratempos; a "Liga Eleitoral Católica", bem estruturada e apoiada pela grande maioria do clero católico, se achava no direito de consultar (quer dizer, interrogar) os candidatos para conhecer suas opiniões a respeito das questões relacionadas com a fé católica, se aceitavam seus pressupostos, dogmas etc. Após a consulta (melhor, interrogatório), a LEC recomendava ou não tal candidato ao eleitorado que seguia sua orientação. A maioria dos candidatos sabatinados teve acolhida favorável. Acusado, todavia, de comunista, por seu duvidoso envolvimento com a "Intentona Comunista" de 1935, que o obrigou a se exilar em Buenos Aires, Café Filho foi dos poucos reprovados pela liga, o que não o impediu de ser efetivamente o escolhido, que lhe asseguraria, mais tarde, uma tranqüila eleição para vice-presidente da República.

Getúlio estava novamente nas paradas.


O quadro então se delineia: A UDN, sem opções, relança a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes. Dutra e Góis Monteiro indicam o fraquíssimo deputado mineiro Cristiano Machado pelo PSD, sabendo, de antemão, que a maioria dos pessedistas votaria em Getúlio.


Mas as coisas não eram tão simples assim; do lado de Getúlio, o apoio de Adhemar teria como contrapartida a reciprocidade, ou seja, "Getúlio-50, Ademar-55". Além do mais, as alianças regionais não eram respeitadas, acontecendo de candidatos pessedistas apoiarem candidatos udenistas e petebistas; candidatos petebistas apoiados por integralistas e pessedistas e assim por diante.

O pior acontecia pelos lados de Eduardo Gomes. O candidato udenista, além de ter que encarar a força unida do (assim chamado pela imprensa burguesa) populismo, faz uma campanha, naquele momento histórico, repleta de contradições. Aceita o apoio das forças integralistas, aparecendo em público com Plínio Salgado, o “Fuhrer” tupiniquim. E para piorar as coisas, ataca a Lei do salário mínimo. Tais atos afastam tanto os trabalhadores, já identificados, em sua grande maioria, com Getúlio, o “Pai dos Pobres”, como também setores da intelectualidade e estudantis. Sua estratégia de ser o porta-voz da classe média, empobrecida pela política econômica implementada pelo governo Dutra, não sensibiliza o eleitorado, e sua campanha milionária, apesar de grandes concentrações eleitorais e do apoiamento de praticamente toda a imprensa falada e escrita, não emplaca.

Getúlio, por seu turno, conhecia muito bem as forças poderosas que temem sua volta e, como se fosse uma resposta aos ataques de Lacerda, em julho/50, antes, portanto, do registro de seu nome pelo TSE, diz profeticamente:




"Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei de lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão agüentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações."


Apesar da idade – 68 anos -, Getúlio empreende uma campanha cansativa e vitoriosa, visitando todos os estados do Brasil. Sua pregação toca fundo no coração dos brasileiros; nacionalismo era essencialmente sua palavra de ordem. Significava a presença do Estado nos setores básicos da economia e a retomada das reformas sociais abandonadas por Dutra, duramente criticado por ele por ter transformado em pó as reservas cambiais acumuladas durante a segunda guerra mundial.




Como jogo de cena, a UDN se dispunha a entrar no jogo democrático, não dispensando, entretanto, nos bastidores, a chicana, recursos que até tinham algum valor legal, mas moralmente discutíveis.


A materialização do jogo sujo já se fazia presente ainda durante o período pré-eleitoral; nesse ínterim, corria pelo Congresso Nacional uma emenda constitucional encampada pelos golpistas que tinha como objetivo a prorrogação do mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra por mais um ano, tentativa sustada pelo próprio presidente Dutra, que, anteriormente, afirmara que não ficaria no poder "nem um dia a mais, nenhum dia a menos" do que o tempo previsto na Constituição ainda vigente.

Em paralelo, José Tomás Nabuco, ilustre membro do Instituto de Advogados, defendia em diversos foros, a tese da inegibilidade de Getúlio Vargas, posição encampada pelo jornal Correio da Manhã, que instava o TSE a impugnar a candidatura do antigo caudilho, sob a alegação de que ele, no período ditatorial, teria se desfeito de duas constituições anteriores, a de 1941 e a de 1934. Outra alegação que utilizavam contra Vargas era a de que este, por ter recusado a assinar a Constituição de 1946, não era digno de governar sob a nova Carta Régia. E muitas coisas mais, inclusive ações populares sob a égide da oposição udenista.

Só que de nada adiantou todo o empenho da oposição em barrar o caminho de Vargas rumo ao Palácio do Catete. Ao analisar o registro da candidatura de Getúlio, o Tribunal desconheceu todas as argumentações de seus adversários, considerando-as ilegítimas até legalmente, já que qualquer impugnação de candidaturas só poderia ser feita por outro candidato ou por delegado de partido político, não cabendo, no caso, ações populares.

E assim, frente a uma oposição frustrada e convicta da derrota, em 19 de agosto, a candidatura de Getúlio Vargas foi registrada.

Desta forma, após as eleições de 3 de outubro de 1950, e abertas as urnas, o resultado não surpreendeu a população brasileira: Getúlio foi eleito com 48,7% dos votos, quase obtendo a maioria absoluta. Eduardo Gomes alcança 29,7% e o candidato pessedista, Cristiano Machado, 21,5%. Como se sabia que a maioria dos quadros do PSD havia abandonado seu candidato, os dicionários brasileiros, daí em diante, ganham novo termo: "cristianização", significando abandono, traição.

No entanto, o golpismo era mesmo o caminho natural da UDN; logo após as eleições, juristas simpatizantes da oposição e com poder de eco nos grandes meios de comunicação (qualquer semelhança com o que está acontecendo contra Lula hoje, é mera coincidência). começaram a defender outra tese, a de que o mandato de cinco anos estabelecido na Constituição de 1946 não poderia ser aplicado para Eurico Gaspar Dutra, já que ele fora eleito pela Constituição de 1937, alterada pela emenda nº 9, que fixava o mandato do Presidente em seis anos e que constava, inclusive, de seu diploma. Então, segundo esses juristas, Dutra teria, mesmo sem querer, que cumprir o que estava disposto na Constituição, ou seja, teria que continuar na presidência até 31 de janeiro de 1952. Se tal idéia fosse encampada pelo presidente, uma crise de proporções inimagináveis certamente levaria o país ao caos, o que era o ardente desejo de diversos próceres udenistas.

E como se instalaria esse crise? Da seguinte forma: como Dutra garantira inúmeras vezes que deixaria o poder em 31 de janeiro de 1951, com sua saída, haveria vacância do cargo, a ser preenchida por seu sucessor legal imediato.

Aí residia o problema: se vencida a tese da vacância, não haveria um sucessor legal que preenchesse os requisitos legais para tal. O vice de Eurico Gaspar Dutra, Nereu Ramos, fora eleito pelo Congresso Constituinte e seu mandato terminaria em 31 de janeiro de 1951, mesma data em que Dutra deixaria o poder.



O mesmo problema ocorreria com o presidente da Câmara Federal (Carlos Cirilo Júnior) e com o presidente do Senado, ficando pois disponível apenas o presidente do Supremo Tribunal Federal (Laudo Ferreira Camargo), que deveria assumir no lugar de todos os antecedentes na escala sucessória.

As vozes da razão, porém, abortaram o expediente; o receio dos clamores roucos das ruas que apoiavam Getúlio Vargas, coroando uma eleição realizada dentro da observância das normas constitucionais, com a participação ativa das mesmas forças que agora apoiavam uma tese tão esdrúxula, foi o motivo maior, porquanto essa quebra do jogo democrático representaria um golpe de difícil assimilação no país e no exterior. A oposição teria mesmo que esperar mais um tempo para destruir o presidente eleito.

O rancor do resultado das urnas pode ser avaliado pelas palavras de Paulo Duarte (outro "intocável", criticá-lo pode significar ser olhado com absoluto desprezo por parcelas importantes de formadores de opinião brasileiros), milionário paulista ligado aos modernistas. Liberal em política, Duarte pregava o afastamento do Estado da economia, a não ser para defender seus interesses de classes, tais como, por exemplo, a manutenção dos preços do café, uma medida que lhe permitiria continuar comprando suas roupas em Paris e investir em um emergente mercado de artes. Com comportamento aristocrata, paparicado por integrantes da esquerda e venerado pelas direitas de todos os quilates, Paulo Duarte, em 1927, escreveu famoso ensaio histórico – Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira – em que expõe uma ideia simples e cara a alguns intelectuais tupiniquins: "Numa terra radiosa vive um povo triste."

E por que os brasileiros são tristes, segundo Paulo Duarte? Porque seus antepassados viviam na luxúria, eram cobiçosos e, por causa, melancólicos; também eram chegados a um concubinato, adorando negras e índias, e, por isso, tornando o Brasil um país mestiço; tudo isso devido aos "germes de desmoralização e depravação dos costumes", já que o Brasil é uma "terra de todos os vícios e de todos os crimes".

Pérolas do pensamento racista são desfiadas ao longo do ensaio: o índio "era um animal lascivo, vivendo sem nenhum constrangimento na satisfação de seus desejos carnais". Os escravos seriam "terríveis elementos de corrupção no seio das famílias", as negras e mulatas "vivendo na prática de todos os vícios". Assim, o negro cativo "perturbou e envenenou a formação da nacionalidade", devido, principalmente, "aos relaxamentos dos costumes e pela dissolução do caráter social". E os mulatos, já numerosos nesse momento? Eram, juntamente com suas crias, "perniciosíssimos", transformando as casas dos conquistadores em "verdadeiros antros de depravação". E como a melhor sociedade era invadida pela "vida dissoluta dos africanos", "desses excessos de vida sexual ficaram traços indeléveis no caráter brasileiro".


Como sempre foi paparicado por quase todo o mundo nas redações, seu livro foi, e continua sendo elogiado pelos resenhistas de plantão, seu relançamento na segunda metade dos anos 90, saudado com vivas e fogos de artifício. Retrato do Brasil, que, segundo Ronaldo Varias (caderno “Mais” da Folha de São Paulo, de 23.06.2002) é um “livro de um pessimismo que não poupava nenhum dos atores da cena colonial, portugueses, negros, índios, vistos como partícipes de uma colonização luxuriosa e depravante (...)” dá uma pequena mostra de uma maneira de pensar, racista e preconceituosa, das elites brasileiras. É o inconformismo, como bem o disse Darcy Ribeiro, de quem tem que suportar uma sociedade capitalista corrompida, sabendo que é parte fundamental dessa mesma sociedade que despreza. A vantagem é que Paris, para os milionários, era logo ali.

Pois, pelo desprezo às massas, Paulo Duarte era um intelectual visceralmente antigetulista, trazendo à cena política a teoria, mais tarde tornada clássica pelo jogador de futebol, Pelé, segundo a qual o povão não sabe votar:


"No dia 3 de outubro, no Rio de Janeiro, era meio milhão de miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos, espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados pelo abandono homens boçais, maus e vingativos, que desceram os morros embalados pela cantiga da demagogia berrada de janelas e automóveis, para votar na única esperança que lhes restava; naquele que se proclamava pai dos pobres, o messias-charlatão…"


Estas palavras representam sobremaneira o modo de pensar de parte da intelectualidade brasileira com relação aos valores das massas. Parafraseando um autor inglês, John Carey, apesar de, normalmente, pretenderem ser progressistas, os intelectuais são, quase sempre, reacionários.

21.10.06

SARTRE, QUEM DIRIA, ACABOU NO CARNAVAL

O carnaval de 1949 foi considerado pela crítica especializada um dos mais fracos dos últimos anos. Da indigência total, salvaram-se algumas poucas músicas: Falam de Mim, de Noel Rosa de Oliveira (1920 - 1988), Aníbal Silva (?) e Éden Silva, o grande Caxiné (morto em 1963); Pedreiro Valdemar, da famosa dupla Roberto Martins (1909 - 1992) e Wilson Batista (1913 - 1968), cantada por Blecaute ; Jacarepaguá (Marino Pinto/Paquito/Romeu Gentil), gravada pelos Vocalistas Tropicais; Que Samba Bom (Geraldo Pereira/Arnaldo Passos), também cantada por Blecaute; Tem Marujo no Samba (Braguinha) e Chiquita Bacana (Braguinha e Alberto Ribeiro), ambas com Emilinha Borba.
.
Pedreiro Valdemar mantém uma tradição do carnaval, a da sátira e crítica social, assim como, no carnaval de 1948, o governo Dutra era satirizado e criticado através do samba Falta Um Zero No Meu Ordenado, da famosa dupla Ary Barroso/Benedito Lacerda, cantada por Chico Alves:

 
“Trabalho como louco
Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo
Sempre atrapalhado.

Fazendo faxina
Comendo no China
Tá faltando um zero
No meu ordenado.

Tá faltando um zero
No meu ordenado
Tá faltando sola
No meu sapato.

Somente o retrato
Da rainha do meu samba
É que me consola
Nesta corda bamba."
.
Não obstante ter feito apenas um sucesso moderado, Falam de Mim, foi um dos sambas mais bonitos e bem elaborados deste carnaval de 1949. Interpretado pelo dupla Zé da Zilda e Zilda do Zé no final de 1948 para o carnaval de 49, foi, posteriormente, resgatado por Nana Caymmi no Long Playing NANA, de 1977 (onde também Nana faz uma gravação antológica de Se Queres Saber,de Peterpan, grande sucesso de Emilinha Borba de 1947) numa gravação mais lenta, ao estilo da grande intérprete da música popular brasileira:

Falam de mim
Mas eu não ligo
 Falam de mim
Que sempre fui amigo
Um rapaz como eu
Não merece essa ingratidão
Falam de mim, falam de mim
Mas quem fala não tem razão.
.
Por ciúme ou por despeito
Falam de mim
Não está direito
Procederem assim
Meu coração
Não merece essa ingratidão
Falam de mim, falam de mim
Mas quem fala não tem razão.

Zé e Zilda interpretando Falam de Mim.



                                                                            

                                                 *                                            










Wilson Batista, autor, em parceria com Roberto Martins, de
Pedreiro Valdemar, nascido em Campos/RJ a 3 de julho de 1913, a essa altura, já é um veterano compositor. Aos 16 anos a então famosa Araci Cortes lança uma música de sua autoria – Na Estrada da Vida - no Teatro Recreio, gravada, em 1933, pela grande revelação de sambista, Luís Barbosa. Entretanto, somente alguns anos depois (nov./32), ele consegue que fosse gravado seu primeiro samba Por Favor,Vá Embora, composto em parceria com Benedito Lacerda e Osvaldo Silva, interpretado por Patrício Teixeira. Logo, sua grandeza era comentada por todos os sambistas do Rio de Janeiro, o que lhe permite entrar em rodas oportunas, logo entrando para a orquestra de Romeu Malagueta, atuando ora como crooner, ora como ritmista, já que era excelente pandeirista. Assim, o boêmio compositor se cerca da nata da malandragem e de compositores famosos, frequentadores de ambientes mais sofisticados, a maioria oriundos da classe média alta, onde se destacavam Orestes Barbosa, Nássara, Ary Barroso, Custódio Mesquita e outros. Logo também, Francisco Alves, já famoso, grava Desacato, de sua autoria, fato que lhe traz alguma notoriedade.

Sua fama viria mesmo com a música Lenço no Pescoço (de 1933, ano em que Almirante também grava seu samba Barulho no Beco), gravada por Sílvio Caldas, um samba que glorifica a malandragem, identificando o sambista com a boêmia. Esta música deu início à famosa polêmica musical (que verdadeiramente não existiu, várias músicas sendo lançadas em épocas diversas ou mesmo não lançadas) com Noel Rosa, o queridinho de todos, o máximo como compositor:
.

"Meu chapéu de lado
Tamanco arrastando
Lenço no pescoço
Navalha no bolso.
.
Eu pass
o gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser tão vadio.
.
Sei que
eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê.
.
Porque tive i
nclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava um samba-canção (comigo não)
Eu quero ver quem tem razão.

Mariana Baltar e Pedro Amorim interpretando Lenço no Pescoço.





Noel Rosa (11.12.1910 - 04.05.1937), o “Poeta da Vila”, um compositor famoso desde 1931, quando lançara Com Que Roupa para o carnaval desse ano com grande sucesso e o nome mais comentado na seara sambista do momento, não se sabe por que, resolve comprar briga com Wilson Batista, sem ao menos conhecê-lo, e compõe uma música com o sugestivo nome de Rapaz Folgado, contestando os louvores do compositor à malandragem. Apesar de só ter sido gravado em 1938 por Aracy de Almeida, entre quem interessava, a roda de compositores e cupinchas com quem Wilson era enturmado, o sucesso do samba foi absoluto:

“Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco
Nunca foi sandália.

Tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e gravata
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.

Com chapéu de lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis.

Arranja um amor e um violão
Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista.
Proponho ao povo civilizado


 

Aracy de Almeida interpretando Rapaz Folgado.






Em uma desconhecida resposta, também para quem interessava, Wilson compõe Mocinho da Vila, não gravada à época, onde deixa claro que, se Noel era respeitado, ele também tinha suas qualidades e merecia o mesmo respeito:



“Você que é mocinho da Vila
Fala muito em violão
Barracão e outras coisas mais.

Se não quiser perder o nome
Cuide de seu microfone
E deixe quem é malandro em paz.

Injusto é seu comentário
Fala de malandro quem é otário
Mas falando não se faz.

Eu de lenço no pescoço
Desacato e também tenho
O meu cartaz.”

.Jorge Veiga interpretando Mocinho da Vila.





  












Não satisfeito, e apesar de, nesse meio tempo, já conhecer Wilson, Noel, um tempo depois, compõe o clássico Feitiço da Vila, gravada com sucesso por João Petra de Barros (1914 - 1948), como homenagem a seu bairro, Vila Isabel, mas cujos versos foram considerados outra paulada no valente compositor rival. Sua letra original vem sofrendo alterações com o tempo, sendo essa considerada a mais fiel versão:

“Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Em abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo.

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora
Sol, pelo amor de Deus
Não venha agora
Que as morenas vão logo embora.

A zona mais tranquila
É a nossa Vila
O berço dos folgados
Não há um cadeado no portão
Porque na Vila não tem ladrão.

A Vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo o nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente.

em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba.

Eu sei tudo que passo
Sei por onde passo
Paixão não me aniquila.
Mas tenho que dizer
Modéstia à parte, meu senhor,
Eu sou da Vila.

 

Caetano Veloso interpretando Feitiço da Vila.


Wilson não titubeia; e não demora muito (1934), compõe o samba
Conversa Fiada, que entrou para o repertório de Luís Barbosa, um dos maiores cantores-sambistas de todos os tempos, morto, prematuramente, aos vinte e oito anos. O samba é direto:
.
É conversa fiada
Dizerem que os sambas
Na Vila tem feitiço.

Eu fui ver pra crer
E não vi nada disso
A Vila é tranquila.

Porém, é preciso cuidado
Antes de irem dormir
Deem duas voltas no cadeado.

(...)”

 Jorge Veiga interpretando Conversa Fiada.

 
















Sentindo-se provocado, Noel responde prontamente. E, nada mais,nada menos, com Palpite Infeliz (1935), lançada em 78 rpm no ano de 1936 por Aracy de Almeida, uma obra-prima e um dos maiores sambas de todos os tempos:
.


“Quem é você que não sabe o que diz
Meu Deus do céu, que palpite infeliz
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira
Osvaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que faz samba também.

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz.

(...)

Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz
Quem é você que não sabe o que diz.

Aracy de Almeida interpretando Palpite Infeliz.





Wilson, moleque tinhoso, bastante novo à época, não se deixa intimidar e parte para a ignorância. Mirando direto na jugular de Noel, compõe, com grosseria e destemidamente, o samba Frankenstein da Vila, alusão a um defeito físico que Noel tinha no queixo. Não obstante, à época, não ter sido gravada, foi bastante executada nas noites cariocas:




          Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece o Frankenstein.

Mas como diz o rifão (refrão)
Por uma cara feia
Perde-se um bom coração.

Entre os feios
Estás na primeira fila
Eu te batizo
Fantasma da Vila.

Esta indireta é contigo
E depois não vais dizer
Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo…”
Frankestein da Vila, da polêmica Noel Rosa  X  Wilson Batista.





E Wilson não para por aí. Apesar de, mais tarde, afirmar que, naquela época, era ainda um compositor sem traquejo, sem esperar a resposta do compositor, lança, em seguida, Terra de Cego, onde provoca sem pejo o "Poeta da Vila", mais uma vez, de forma direta e contundente, como era de seu costume:


“Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma de samba.

És o abafã da Vila, eu bem sei
Mas na terra de cego
Quem tem um olho é rei.

Para terminar a discussão
Não deves apelar
Para um barulho a mão.

Em versos podes bem desabafar
Pois não fica bonito
Um bacharel brigar."


Jorge Veiga interpretando Terra de Cego, da polêmica Noel Rosa X Wilson Batista.





Depois de certo tempo, e após um encontro casual em um café na rua Evaristo da Veiga (ou no bar Porcão, na Lapa), os dois compositores fazem as pazes e acabam amigos. Acabava aí a polêmica. Como Terra de Cego não fora gravada, Noel aproveitou a melodia de Wilson Batista e a versificou, dando-lhe o título de Deixa de Ser Convencida, somente gravada em 2000 por Cristina Buarque de Holanda.


Wilson Batista, apesar de negro e sofrer constrangimento por isso (aliado ao fato de ser quase analfabeto), sustentava uma vida razoavelmente confortável; além de seu sucesso como compositor, também lançava mão de um expediente comum naquele tempo: a venda de músicas, sendo Francisco Alves, o Rei da Voz, um de seus grandes compradores. Desta forma, podia frequentar ambientes da boemia branca e elegante, onde, em alto e bom som, criticava o trabalho, dizendo odiá-lo. Para ele, o que valia era “malandragem, vadiagem, orgia, gandaia e não trabalhar”, o que já lhe valera algumas prisões e maus tratos.




Dentre suas músicas mais famosas, sobressaem Oh! Seu Oscar, parceria com Ataulfo Alves, lançada por Ciro Monteiro, em 1939, ficando famosa e entrando para a história da música popular brasileira por ter ganhado o carnaval de 1940, do qual participaram vários clássicos do cancioneiro popular, como Passarinho do Relógio (Haroldo Lobo/Milton de Oliveira), Malmequer (Newton Teixeira/Cristóvão de Alencar), Anjo da Cara Suja (Haroldo Lobo/Milton de Oliveira), Despedida de Mangueira (Benedito Lacerda/Aldo Cabral) e – pasmem – Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, que, muito mais tarde, seria escolhida a melhor música brasileira de todos os tempos. Oh! Seu Oscar, hoje é um clássico da música popular brasileira:



“Cheguei cansado do trabalho
Logo a vizinha me falou
- Oh! Seu Oscar
Tá fazendo meia hora
Que sua mulher foi embora
E um bilhete deixou
O bilhete assim dizia
‘Não posso mais
Eu quero é viver na orgia’.

Fiz de tudo para ter seu bem-estar
Até no cais do porto eu fui parar
Martirizando o meu corpo noite e dia
Mas tudo em vão, ela é, é da orgia."


Ciro Monteiro interpretando Oh! Seu Oscar.




Em 1941, compõe, em parceria com Haroldo Lobo, Emília, gravada por Vassourinha para o carnaval de 42, com temática igual à de Ai Que Saudades de Amélia (Mário Lago/Ataulfo Alves), ou seja, a idealização da mulher do lar, aquela que vive somente em função de seu companheiro; foi outro grande sucesso de Wilson Batista, estando hoje também na galeria dos clássicos do cancioneiro popular:


“Quero uma mulher
Que saiba lavar e cozinhar
E de manhã cedo
Me acorde na hora de trabalhar.

Só existe uma
E sem ela eu não vivo em paz
Emília, Emília, Emília
Não posso mais.

Ninguém sabe igual a ela
Preparar o meu café
Não desfazendo das outras
Emília é que é mulher.

Papai do céu é quem sabe
A falta que ela me faz
Emília, Emília, Emília
Não posso mais.


Vassourinha interpretando Emília

 


 



Outro grande sucesso de Wilson foi Acertei no Milhar (1940), onde compõe, pela primeira vez, com o grande Geraldo Pereira; Wilson chegou a afirmar que este samba de breque tinha como objetivo  medir a capacidade de Geraldo em compor de forma conjunta, apesar de alguns historiadores dizerem que a música é somente de autoria de Wilson. A música, gravada por Moreira da Silva e composta especialmente para que o já conhecido cantor fizesse seus famosos improvisos, sua marca registrada, marcou época e resistiu, bravamente, aos tempos:



      “Etelvina, minha filha!
Acertei no milhar
Ganhei 500 contos
Não vou mais trabalhar.

E me dê toda a roupa velha aos pobres
E a mobília podemos quebrar
Isso é pra já, passe pra cá.

Etelvina
Vai ter outra lua de mel
Você vai ser madame
Vai morar num grande hotel.

Eu vou comprar um nome
Não sei onde
De marquês, de visconde
Um professor de francês, mon amour
Eu vou trocar seu nome
Pra madame Pompadour.

Até que enfim agora sou feliz
Vou passear a Europa até Paris
E nossos filhos, ó que inferno
Eu vou pô-los num colégio interno.

Telefone pro Mané do armazém
Porque não quero ficar devendo nada a ninguém
Eu vou comprar um avião azul
Para percorrer a América do Sul.

Mas de repente, de repenquente
Etelvina me chamou está na hora do batente
Mas de repente Etelvina me chamou e disse:
Acorda, Vargolino, foi um sonho minha gente.”


Moreira da Silva interpretando Acertei no Milhar.



Não se pode esquecer também da música Deus no Céu, Ela na Terra (1940), parceria de Wilson com Marino Pinto e considerada um exemplo da genialidade do compositor pela forma e pela condução melódica, tornando-se sucesso na voz de Carlos Galhardo, que, a essa altura, lançava sucesso atrás de sucesso

       “Eu sei que outra no meu lar 
         Não vive bem
Só ela conhece os meus defeitos
E as virtudes também.

Por isso já mandei construir
Uma casinha na serra pra ela
É Deus no céu e eu na terra.

Não existe ninguém perfeito
Quando se tem amizade
Desaparece o defeito.

Eu finjo não saber que ela erra
Pra poder dizer:
Deus no céu e ela na terra.”
Carlos Galhardo interpretando Deus no Céu, Ela na Terra.

















Sua música mais comentada, entretanto, foi, certamente, O Bonde de São Januário (1940), composta em parceria com Ataulfo Alves, almejando repetir o sucesso de Oh! Seu Oscar, do carnaval do ano anterior. Esta composição tem uma peculiaridade: sua letra. Feita em plena ditadura do Estado Novo, que, entre suas prerrogativas, estava a de zelar pela moral e pelos bons costumes, ela se enquadra dentro da nova doutrina do Estado, já que glorificar a vadiagem naqueles tempos nem era permitido. A música, que em sua primeira versão rimava “operário” com “otário”, se transforma, assim, em uma ode ao trabalho e aos trabalhadores, o oposto do que pensava e de como agia Wilson Batista:

“Quem trabalha é quem tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar
O bonde de São Januário
Leva mais um operário
Sou eu que vou trabalhar.

Antigamente eu não tinha juízo
Mas resolvi garantir meu futuro
Vejam vocês:
Sou feliz, vivo muito bem
A boêmia não dá camisa a ninguém
É, digo bem."



Pedreiro Valdemar, sua música para o tríduo momesco desse ano de 49, grande sucesso na voz de Blecaute, também se inscreve nesse rol de músicas carnavalescas críticas ao sistema. Satiriza um dos problemas que atormentava (e atormenta) as famílias pobres que moravam no Rio de Janeiro: a falta de moradia para o povão.
Essa falta de moradias e o fato de que os trabalhadores da construção civil construíam prédios e mansões, participavam da expansão imobiliária, mas nada usufruíam em proveito próprio, são expostos de maneira clara e inteligente. A letra, assim, é uma crítica social das mais contundentes, que, entretanto, como sempre, se perdia no emaranhado de algaravia em que se constituía o carnaval carioca:

“Você conhece o pedreiro Valdemar
Não conhece mas eu vou lhe apresentar
De madrugada toma o trem da Circular
Faz tanta casa e não tem casa pra morar.

Leva a marmita embrulhada no jornal
Se tem almoço, nem sempre tem jantar
O Valdemar que é mestre no ofício
Constrói o edifício e depois não pode entrar.

 

Roberto Martins interpretando Pedreiro Valdemar.

 

De autoria de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos é o bonito Samba Bom, que, tamm cantada por Blecaute, foi razoavelmente bem executada (seu sucesso real se deu em meados do ano), apesar de não ser uma obra representativa do que de melhor fora composto pelo magnífico sambista, Geraldo Pereira. Seu relativo sucesso se deve, basicamente, à utilização de uma linguagem bastante popular, com gírias que já estavam na boca do povão e empregadas de forma simples e direta:

“Ó que samba bom
Ó que coisa louca
Eu também estou aí
Estou aí, o que é que há
Também estou nesta boca.

Muita bebida, mulher sobrando
Tem até trouxa neste samba se arrumando
Eu neste samba vou me acabar
Num samba desses vale interpretar.


Blecaute interpretando Que Samba Bom. 



Do trio Marino Pinto/Paquito/Romeu Gentil é a música Jacarepaguá; fez grande sucesso popular na voz do grupo Vocalistas Tropicais, acabando por provocar polêmica nos meios de comunicação pela semelhança de sua melodia com uma rumba de grande sucesso internacional, El Cumbanchero, cantada por meio mundo hispânico, desde o marido cubano menos talentoso da famosa comediante norte-americana Lucille Ball, Desi Arnaz, até a nossa Leny Eversong que a cantou no mais famoso programa da televisão dos Estados Unidos, o Ed Sullivan Show:

“É hoje que eu vou me acabar
Com chuva ou sem chuva eu vou pra lá
Eu vou, eu vou pra Jacarepaguá
Mulher é mato e eu preciso me arrumar.

Copacabana tem romances ao luar
E em Paquetá também a gente pode amar
Porém, o lugar deste mundo
O maior é para mim, Jacarepaguá."

 

Vocalistas Tropicais interpretando Jacarepaguá.


Leny Eversong interpretando El Cumbanchero.
















Mas os deuses do carnaval estavam mesmo é com a favorita Emilinha Borba. Braguinha, o famoso e lendário compositor de grandes sucessos carnavalescos, tais como Linda Lourinha (1934), Cadê Mimi (1936) Touradas em Madrid, (1938), Pastorinhas (1938), Yes, Nós Temos Banana (1938) e centenas de outras, lhe presenteia com duas preciosidades: o samba Tem Marujo no Samba (que ela gravou em dupla com Nuno Roland) e com a hoje cultuada Chiquita Bacana, a mais famosa canção brasileira pré-tropicalista, composta em parceria com Alberto Ribeiro.

João de Barro, o Braguinha (1906 - 2006), um monumento das artes nacionais e um espanto como compositor, a essa altura, já é um compositor veterano e famoso. Nascido no Rio de Janeiro em família de classe média alta, demonstra pendores artísticos desde criança. Desse jeito, tão logo se torna adulto, o mundo artístico se transforma em seu mundo. Ainda bastante jovem, integra o famoso "Bando de Tangarás", com nomes que dariam o que falar através dos anos seguintes: Noel Rosa (violão), Henrique Brito (violão), Alvinho (violão/vocal) e Almirante (pandeiro e vocal)


Sua estreia em disco como solista se dá em 1931, estranhamente com duas músicas de Lamartine Babo, Cor de Prata e Minha Cabrocha. Logo abandona sua carreira de cantor, iniciando uma outra, longa e produtiva, agora como compositor. Seu primeiro grande sucesso foi Linda Lourinha, gravação de Sílvio Caldas. Conhecendo Alberto Ribeiro em 1935, compuseram juntos Deixa a Lua Sossegada, música que iniciou uma parceria que atravessaria os anos seguintes.

Daí em diante, foi uma carreira de êxitos espetaculares: Linda Mimi, Cadê Mimi (gravada por Mário Reis), Pirata (Dircinha Batista), Muito Riso, Pouco Siso (Dircinha Batista, cantada no filme Alô, Alô, Carnaval), Por Um Ovo Só (Almirante), Minha Terra Tem Palmeiras (Carmem Miranda), Touradas em Madrid (objeto de intensa polêmica por ter ganhado o concurso de carnaval de 1938, mas que foi desclassificada por ser considerada um “passo double”, ritmo espanhol), Pastorinhas, feita em parceria com Noel Rosa, (inscrita para o concurso carnavalesco em substituição a Touradas em Madrid, ganhando novamente o concurso), Linda Pequena (As Pastorinhas modificada), Yes, Nós Temos Banana, Pirulito (estréia em disco de Emilinha Borba em 1939 participando do coro) e uma infinidade de outras.

Carmen Miranda interpretando Touradas em Madrid


 


Mário Reis interpretando Cadê Mimi (braguinha), também apresentada no filme Alô, Alô, Carnaval.





Na década de 40, seu sucesso continua inigualável: Em 1941 lança Quebra Tudo, com os Anjos do Inferno; Em 1943 satiriza o então poderoso Adolfo Hitler em uma música instigante chamada Adolfito Mata-Mouros, cantada por Orlando Silva. Seu sucesso continua com o retumbante êxito de Copacabana (1946), que tornou Dick Farney um astro com pretensões hollywoodianas; Pirata da Perna de Pau (1947), com Nuno Roland; Anda Luzia (1947), gravada por Sílvio Caldas. Às vésperas de 1949, novamente obtém grande sucesso popular com as músicas A Mulata é a Tal, gravada por Rui Rei e Tem Gato na Tuba, interpretada por Nuno Roland.




Dick Farney interpretando Copacabana (Braguinha/Alberto Ribeiro).




Chiquita Bacana já nasceu clássica. Antes mesmo de o carnaval chegar, já era a marcha mais executada e cantada em todo o Brasil. Falava-se, inclusive, em “febre Chiquita Bacana”. Um cronista de A Carioca, em fevereiro/49, chegou a escrever:
.
“(…) deu a epidemia da Chiquita Bacana. O micróbio prolifera em toda parte. No morro, nas ruas, nos botequins, nas boites e dentro das casas, através das ondas sonoras (…)”.

Com efeito, Braguinha, mais tarde, em entrevista a Sérgio Cabral, comentaria:
.
“Quando Emilinha Borba lançou Chiquita Bacana, pouco antes do carnaval, ela saiu da Rádio Nacional, na Praça Mauá, acompanhada das fãs, cantando pela Avenida Rio Branco. Quando chegou perto da Cinelândia, havia uma multidão incalculável cantando a música (...)”
.
Segundo Braguinha, "aquilo era muito bom."
.



Estima-se que tenha sido vendida cerca de 200.000 cópias do disco, uma das maiores, se não a maior vendagem de música carnavalesca de todos os tempos. Sua letra, deliciosa e provocante, tocava em temas muito comentados então, o nudismo, por causa da vedete Luz Del Fuego, e o existencialismo, tornado famoso pelo filósofo francês Jean Paul Sartre. Estes fatos, aliados a uma interpretação segura de Emilinha, tornaram-na a favorita imediata do público.



Como resultado do sucesso das duas músicas de Brag
uinha, Tem Marujo no Samba ganha o concurso oficial como o melhor samba de 1949, e Chiquita Bacana se consagra como a melhor marcha deste mesmo ano, também ganhando o carnaval. A transcrição da letra dessa última música demonstra por que se tornou famosa desde então:


“Chiquita Bacana
Lá da Martinica
Se veste com uma casca
De banana nanica.

Não usa vestido
Não usa calção
Inverno pra ela
É pleno verão

          Existencialista com toda paixão

         Só faz o que manda o seu coração.                                 


Emilinha Borba interpretando Chiquita Bacana.



 



Rita Lee interpretando Chiquita Bacana.



Cérebro Eletrônico interpretando Chiquita Bacana.




Com o sucesso de Chiquita Bacana, Emilinha abria, definitivamente, o caminho para ser a Estrela do Brasil da década de 50.