1.11.06

"BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ"

Já no início de 1950, os indicativos de que a volta de Getúlio Vargas ao poder era inexorável se faziam sentir por todos os lados. A aliança PSD-UDN, capaz de se contrapor à máquina que seria montada em torno do antigo caudilho, vira pó, quando fica evidente que o presidente Eurico Gaspar Dutra tramava na surdina a volta da antiga aliança PSD-PTB, para desespero dos próceres udenistas. Estes, por seu turno, desconfiam de que Getúlio terá o apoio do PSP de Adhemar de Barros, eleito, ainda em 1947, com maciço apoio das forças getulistas e, em nome dos “interesses nacionais”, dos comunistas. Também, em maio de 1950, outro golpe nas pretensões udenistas: a corrente nacionalista do exército, tendo à frente Estillac Leal e Horta Barbosa, ganha espetacularmente a eleição do Clube Militar.

Essa eleição se revestia de um caráter eminentemente político, uma vez que seu resultado representava, praticamente, uma prévia das eleições presidenciais, seus principais líderes sendo amplamente respeitados como símbolos do exército brasileiro. Assim, confrontam-se nessa peleja duas correntes ideológicas diametralmente opostas: de um lado, os generais Newton Estillac Leal e Horta Barbosa, identificados com a corrente nacionalista, ou seja, favorável a uma maior intervenção do Estado na economia brasileira e, na questão do petróleo – o assunto mais candente do momento devido aos enormes interesses em jogo – propugnando que se intensificassem as pesquisas e a produção com recursos estatais, deixando a refinação, o transporte e a distribuição para os grandes trustes internacionais. Uma posição até que moderada, mas considerada perigosa e comunizante por amplas parcelas das forças armadas, do capitalismo internacional e de seus aliados brasileiros.
Do outro lado, Oswaldo Cordeiro de Farias e Juarez Távora, da corrente dita internacionalista, são defensores de outros interesses, exatamente o contrário do grupo comandado por Horta Barbosa. Nas discussões acontecidas nos salões do Clube Militar, seus argumentos eram os de que o Estado brasileiro não tinha capacidade de alocar recursos na prospecção de petróleo, nem possuía técnicos capazes e eficientes nesse mister, o que tornaria o trabalho lento e difícil. Além do mais consideravam as dificuldades intransponíveis, "(...) dado o baixo nível de compreensão cívica do povo brasileiro e a falta de orientação e escrúpulos de nossa elite.”


A baixaria dominava as discussões, refletindo os enormes interesses em jogo. Os nacionalistas, segundo seus adversários, nada m
ais eram do que comunistas disfarçados, sendo a defesa dos interesses nacionais um mero disfarce para atacar os grandes grupos estrangeiros, o que significava, no contexto da guerra fria, demonstrar simpatias pela Rússia comunista. Já o outro grupo foi alcunhado de "entreguista", pela defesa apaixonada dos interesses dos trustes internacionais, principalmente norte-americanos, em solo brasileiro, e de "golpista", pelo envolvimento da maioria de seus líderes no golpe que depôs Getúlio Vargas em 1945.


Conectada com a irresistível escalada de Getúlio rumo ao poder, a corrente identificada com a defesa dos interesses nacionais vence espetacularmente os adversários por 3.883 a 2.721 votos. Estillac Leal se torna então presidente do Clube Militar.


Em julho, analisando a vitória dos nacionalist
as, a revista n.º 109 do Clube Militar deixava claro a linha ideológica que os militares deveriam seguir após o resultado do pleito:

"(...)

Venceu a decisão inquebrantável que faz da defesa dos interesses e das riquezas nacionais contra a cobiça alheia uma luta sem desfalecimento, uma batalha sem tréguas, da qual há de ressaltar o triunfo patriótico, com a conquista e a consolidação de nossa independência econômica.

Venceu o propósito de manter as Forças Armadas, irmanadas ao povo, em sua sagrada missão de intransigentes defensores dos ideais democráticos, do respeito à vontade popular, contra os golpistas e seus movimentos antipatrióticos dissimulados, ou não, com a máscara de defesa das instituições.

(...)

Por isso mesmo, o que nos cumpre fazer agora é, esquecidos da divisão eventual e passageira, morta no preciso momento em que se depôs o último voto na urna, unirmo-nos em torno dos novos poderes de nosso clube, para exigir e ajudar o cumprimento do programa eleito."

Estillac Leal não estava mesmo disposto a deixar nada pendente, e, em seu discurso, por ocasião da posse da nova diretoria, manda recados para todos os lados:


















"As eleições do Clube Militar, empolgando as Forças Armadas, num movimento cívico sem símile em sua história, deram à Nação uma lição de democracia, que ela deve considerar e meditar, dado que mostraram, com eloquência, subordinar-se a condicionar-se o regime democrático ao respeito mútuo, à educação cívica, à disciplina e, sobretudo, à consciência do dever, tanto dos que estão no poder, como dos que estão fora dele. A democracia, - tal como a compreendemos, medra e prospera onde se afirma o princípio da responsabilidade e onde as divergências de opinião, ao invés de fat"ores de desagregação, o são de vitalidade e coesão, pela fiscalização e crítica construtivas que promovem e de progresso, pela sadia emulação que engendram.

Nesse espetáculo, entretanto, alguns vesgos e hipócritas querem ver, não as cenas alentadoras duma consciência, que se expande e ganha consistência crescente, aberta generosamente às justas reivindicações de nossa classe, mas tão somente os quadros sombrios de traição à pátria e de solapamento de suas instituições. Esta opinião suspeita, como suspeitos são os que a esposam, não invalida a verdade e a significação histórica e social do acontecimento, cuja matriz assaz transcende de sua medíocre influência e estreita compreensão, porque, estagnados num passado morto, não sentem as palpitações e anseios da nova moral que nasce.

De qualquer forma, porém, a luta que travamos, no plano da opinião, dos princípios e das reivindicações impostergáveis de nossa classe, não foi e nem poderia ser mera competição caudilhesca. Afirmar o contrário seria ofender a consciência e o espírito cívico das Forças Armadas. As pessoas, minha e do meu velho e ilustre camarada, general Cordeiro de Farias, serviriam tão somente, pelas tendências que cada um exprime, para personificar as idéias em que se divide sua opinião, os princípios que esposam e os critérios de consideração e tratamento dos assuntos de seu particularíssimo interesse.

(...)

Há poucos dias, atribuiu-se a eminente camarada a assertiva de que, usando eu, em documento público, o termo 'Nação', em lugar de 'Pátria', dava prova da minha condição de comunista, aliás, propalada com medo e, desde há muito, por gratuitos inimigos meus, à sombra, evidente, do anonimato. Ignorava tivesse aquele termo perdido o seu valor semântico e muito menos sabia da influência comunista tão extensa e profunda na estrutura de nossa língua. Confesso o desconhecimento do evento surpreendente, e isto pela razão de que não possuo o dicionário bolchevista da língua portuguesa, nunca deletreado por mim, mas amiudadas vezes, por certo, pelos hermeneutas dos "Planos Cohens", de cujos conhecimentos especializados haverá, doravante, de se socorrer quem se aventura a escrever no idioma pátrio sem incidência no índex dos exegetas totalitários.

(...)”


No dia primeiro de junho de 50, logo após as eleições para o Clube Militar, e parecendo pressentir a vitória de seu inimigo número um, o raivoso jornalista da UDN Carlos Lacerda escreve em seu jornal Tribuna da Imprensa:



“O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar."

Entretanto, o desabamento da tese de união nacional, tecida pela UDN contra Getúlio Vargas, com a confirmação do afastamento do PSD dessa “união”, desanima de vez os udenistas, que via seu tão almejado sonho de ocupar o Catete cada dia mais distante, um sonho quase impossível. E apesar de o general Canrobert Pereira da Costa, ministro da Guerra de Dutra, ter convocado Ernani do Amaral Peixoto, genro de Getúlio e presidente do PSD, para que este comunicasse ao sogro que os militares haviam vetado seu nome ao cargo máximo do país, mais desanimados ficam os udenistas quando o general Góis Monteiro, em claro desafio à direita militar, declara, peremptoriamente, que as Forças Armadas não se oporiam à posse de ninguém, desde que “ os direitos impostergáveis dos militares” fossem respeitados.

A Era Vargas (parte 1).
















A Era Vargas (parte 2).















A Era Vargas (parte 3).
 







A Era Vargas (parte 4).



  












Tudo isso significava na verdade que o apoio a Getúlio provinha de várias fontes: setores ligados ao Estado ou dele dependente; a oligarquia estadual, quase toda oriunda do Estado Novo, agora alojada basicamente no PSD; setores nacionalistas das Forças Armadas e, mais importante, as massas urbanas mais organizadas, habilmente cooptadas pelo apelo getulista. A proeza do caudilho foi costurar uma aliança entre setores tão díspares, com a finalidade de possibilitar a expansão capitalista com base no nacionalismo, em alta no terceiro mundo, ou seja, amarrava um estilo político, o populismo, com a ideologia, o nacionalismo. Sobre o que seria o nacional-populismo getulista, a história diria a última palavra.

Nada impediria, por conseqüência, Getúlio Vargas em sua caminhada de volta ao poder. 15 dias depois do virulento artigo de Lacerda, Adhemar de Barros, em um comício realizado em São Paulo, lança sua (de Getúlio) candidatura à presidência da República, fazendo com que a multidão, onde eram vistas bandeiras de praticamente todos os partidos (exceto as da UDN, logicamente), cantasse em uníssono:


É PTB ! É PSP !
PRESIDENTE GETÚLIO!
ADHEMAR SENADOR!

Com o fechamento do acordo com Adhemar, os petebistas, depois de homologar a candidatura de Getúlio (19.08.50), registram sua candidatura junto ao TSE, tendo como candidato a vice um antigo desafeto getulista e quadro do PSP, Café Filho. Esta escolha, porém, trouxe em seu bojo alguns contratempos; a "Liga Eleitoral Católica", bem estruturada e apoiada pela grande maioria do clero católico, se achava no direito de consultar (quer dizer, interrogar) os candidatos para conhecer suas opiniões a respeito das questões relacionadas com a fé católica, se aceitavam seus pressupostos, dogmas etc. Após a consulta (melhor, interrogatório), a LEC recomendava ou não tal candidato ao eleitorado que seguia sua orientação. A maioria dos candidatos sabatinados teve acolhida favorável. Acusado, todavia, de comunista, por seu duvidoso envolvimento com a "Intentona Comunista" de 1935, que o obrigou a se exilar em Buenos Aires, Café Filho foi dos poucos reprovados pela liga, o que não o impediu de ser efetivamente o escolhido, que lhe asseguraria, mais tarde, uma tranqüila eleição para vice-presidente da República.

Getúlio estava novamente nas paradas.


O quadro então se delineia: A UDN, sem opções, relança a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes. Dutra e Góis Monteiro indicam o fraquíssimo deputado mineiro Cristiano Machado pelo PSD, sabendo, de antemão, que a maioria dos pessedistas votaria em Getúlio.


Mas as coisas não eram tão simples assim; do lado de Getúlio, o apoio de Adhemar teria como contrapartida a reciprocidade, ou seja, "Getúlio-50, Ademar-55". Além do mais, as alianças regionais não eram respeitadas, acontecendo de candidatos pessedistas apoiarem candidatos udenistas e petebistas; candidatos petebistas apoiados por integralistas e pessedistas e assim por diante.

O pior acontecia pelos lados de Eduardo Gomes. O candidato udenista, além de ter que encarar a força unida do (assim chamado pela imprensa burguesa) populismo, faz uma campanha, naquele momento histórico, repleta de contradições. Aceita o apoio das forças integralistas, aparecendo em público com Plínio Salgado, o “Fuhrer” tupiniquim. E para piorar as coisas, ataca a Lei do salário mínimo. Tais atos afastam tanto os trabalhadores, já identificados, em sua grande maioria, com Getúlio, o “Pai dos Pobres”, como também setores da intelectualidade e estudantis. Sua estratégia de ser o porta-voz da classe média, empobrecida pela política econômica implementada pelo governo Dutra, não sensibiliza o eleitorado, e sua campanha milionária, apesar de grandes concentrações eleitorais e do apoiamento de praticamente toda a imprensa falada e escrita, não emplaca.

Getúlio, por seu turno, conhecia muito bem as forças poderosas que temem sua volta e, como se fosse uma resposta aos ataques de Lacerda, em julho/50, antes, portanto, do registro de seu nome pelo TSE, diz profeticamente:




"Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei de lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão agüentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações."


Apesar da idade – 68 anos -, Getúlio empreende uma campanha cansativa e vitoriosa, visitando todos os estados do Brasil. Sua pregação toca fundo no coração dos brasileiros; nacionalismo era essencialmente sua palavra de ordem. Significava a presença do Estado nos setores básicos da economia e a retomada das reformas sociais abandonadas por Dutra, duramente criticado por ele por ter transformado em pó as reservas cambiais acumuladas durante a segunda guerra mundial.




Como jogo de cena, a UDN se dispunha a entrar no jogo democrático, não dispensando, entretanto, nos bastidores, a chicana, recursos que até tinham algum valor legal, mas moralmente discutíveis.


A materialização do jogo sujo já se fazia presente ainda durante o período pré-eleitoral; nesse ínterim, corria pelo Congresso Nacional uma emenda constitucional encampada pelos golpistas que tinha como objetivo a prorrogação do mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra por mais um ano, tentativa sustada pelo próprio presidente Dutra, que, anteriormente, afirmara que não ficaria no poder "nem um dia a mais, nenhum dia a menos" do que o tempo previsto na Constituição ainda vigente.

Em paralelo, José Tomás Nabuco, ilustre membro do Instituto de Advogados, defendia em diversos foros, a tese da inegibilidade de Getúlio Vargas, posição encampada pelo jornal Correio da Manhã, que instava o TSE a impugnar a candidatura do antigo caudilho, sob a alegação de que ele, no período ditatorial, teria se desfeito de duas constituições anteriores, a de 1941 e a de 1934. Outra alegação que utilizavam contra Vargas era a de que este, por ter recusado a assinar a Constituição de 1946, não era digno de governar sob a nova Carta Régia. E muitas coisas mais, inclusive ações populares sob a égide da oposição udenista.

Só que de nada adiantou todo o empenho da oposição em barrar o caminho de Vargas rumo ao Palácio do Catete. Ao analisar o registro da candidatura de Getúlio, o Tribunal desconheceu todas as argumentações de seus adversários, considerando-as ilegítimas até legalmente, já que qualquer impugnação de candidaturas só poderia ser feita por outro candidato ou por delegado de partido político, não cabendo, no caso, ações populares.

E assim, frente a uma oposição frustrada e convicta da derrota, em 19 de agosto, a candidatura de Getúlio Vargas foi registrada.

Desta forma, após as eleições de 3 de outubro de 1950, e abertas as urnas, o resultado não surpreendeu a população brasileira: Getúlio foi eleito com 48,7% dos votos, quase obtendo a maioria absoluta. Eduardo Gomes alcança 29,7% e o candidato pessedista, Cristiano Machado, 21,5%. Como se sabia que a maioria dos quadros do PSD havia abandonado seu candidato, os dicionários brasileiros, daí em diante, ganham novo termo: "cristianização", significando abandono, traição.

No entanto, o golpismo era mesmo o caminho natural da UDN; logo após as eleições, juristas simpatizantes da oposição e com poder de eco nos grandes meios de comunicação (qualquer semelhança com o que está acontecendo contra Lula hoje, é mera coincidência). começaram a defender outra tese, a de que o mandato de cinco anos estabelecido na Constituição de 1946 não poderia ser aplicado para Eurico Gaspar Dutra, já que ele fora eleito pela Constituição de 1937, alterada pela emenda nº 9, que fixava o mandato do Presidente em seis anos e que constava, inclusive, de seu diploma. Então, segundo esses juristas, Dutra teria, mesmo sem querer, que cumprir o que estava disposto na Constituição, ou seja, teria que continuar na presidência até 31 de janeiro de 1952. Se tal idéia fosse encampada pelo presidente, uma crise de proporções inimagináveis certamente levaria o país ao caos, o que era o ardente desejo de diversos próceres udenistas.

E como se instalaria esse crise? Da seguinte forma: como Dutra garantira inúmeras vezes que deixaria o poder em 31 de janeiro de 1951, com sua saída, haveria vacância do cargo, a ser preenchida por seu sucessor legal imediato.

Aí residia o problema: se vencida a tese da vacância, não haveria um sucessor legal que preenchesse os requisitos legais para tal. O vice de Eurico Gaspar Dutra, Nereu Ramos, fora eleito pelo Congresso Constituinte e seu mandato terminaria em 31 de janeiro de 1951, mesma data em que Dutra deixaria o poder.



O mesmo problema ocorreria com o presidente da Câmara Federal (Carlos Cirilo Júnior) e com o presidente do Senado, ficando pois disponível apenas o presidente do Supremo Tribunal Federal (Laudo Ferreira Camargo), que deveria assumir no lugar de todos os antecedentes na escala sucessória.

As vozes da razão, porém, abortaram o expediente; o receio dos clamores roucos das ruas que apoiavam Getúlio Vargas, coroando uma eleição realizada dentro da observância das normas constitucionais, com a participação ativa das mesmas forças que agora apoiavam uma tese tão esdrúxula, foi o motivo maior, porquanto essa quebra do jogo democrático representaria um golpe de difícil assimilação no país e no exterior. A oposição teria mesmo que esperar mais um tempo para destruir o presidente eleito.

O rancor do resultado das urnas pode ser avaliado pelas palavras de Paulo Duarte (outro "intocável", criticá-lo pode significar ser olhado com absoluto desprezo por parcelas importantes de formadores de opinião brasileiros), milionário paulista ligado aos modernistas. Liberal em política, Duarte pregava o afastamento do Estado da economia, a não ser para defender seus interesses de classes, tais como, por exemplo, a manutenção dos preços do café, uma medida que lhe permitiria continuar comprando suas roupas em Paris e investir em um emergente mercado de artes. Com comportamento aristocrata, paparicado por integrantes da esquerda e venerado pelas direitas de todos os quilates, Paulo Duarte, em 1927, escreveu famoso ensaio histórico – Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira – em que expõe uma ideia simples e cara a alguns intelectuais tupiniquins: "Numa terra radiosa vive um povo triste."

E por que os brasileiros são tristes, segundo Paulo Duarte? Porque seus antepassados viviam na luxúria, eram cobiçosos e, por causa, melancólicos; também eram chegados a um concubinato, adorando negras e índias, e, por isso, tornando o Brasil um país mestiço; tudo isso devido aos "germes de desmoralização e depravação dos costumes", já que o Brasil é uma "terra de todos os vícios e de todos os crimes".

Pérolas do pensamento racista são desfiadas ao longo do ensaio: o índio "era um animal lascivo, vivendo sem nenhum constrangimento na satisfação de seus desejos carnais". Os escravos seriam "terríveis elementos de corrupção no seio das famílias", as negras e mulatas "vivendo na prática de todos os vícios". Assim, o negro cativo "perturbou e envenenou a formação da nacionalidade", devido, principalmente, "aos relaxamentos dos costumes e pela dissolução do caráter social". E os mulatos, já numerosos nesse momento? Eram, juntamente com suas crias, "perniciosíssimos", transformando as casas dos conquistadores em "verdadeiros antros de depravação". E como a melhor sociedade era invadida pela "vida dissoluta dos africanos", "desses excessos de vida sexual ficaram traços indeléveis no caráter brasileiro".


Como sempre foi paparicado por quase todo o mundo nas redações, seu livro foi, e continua sendo elogiado pelos resenhistas de plantão, seu relançamento na segunda metade dos anos 90, saudado com vivas e fogos de artifício. Retrato do Brasil, que, segundo Ronaldo Varias (caderno “Mais” da Folha de São Paulo, de 23.06.2002) é um “livro de um pessimismo que não poupava nenhum dos atores da cena colonial, portugueses, negros, índios, vistos como partícipes de uma colonização luxuriosa e depravante (...)” dá uma pequena mostra de uma maneira de pensar, racista e preconceituosa, das elites brasileiras. É o inconformismo, como bem o disse Darcy Ribeiro, de quem tem que suportar uma sociedade capitalista corrompida, sabendo que é parte fundamental dessa mesma sociedade que despreza. A vantagem é que Paris, para os milionários, era logo ali.

Pois, pelo desprezo às massas, Paulo Duarte era um intelectual visceralmente antigetulista, trazendo à cena política a teoria, mais tarde tornada clássica pelo jogador de futebol, Pelé, segundo a qual o povão não sabe votar:


"No dia 3 de outubro, no Rio de Janeiro, era meio milhão de miseráveis, analfabetos, mendigos famintos e andrajosos, espíritos recalcados e justamente ressentidos, indivíduos tornados pelo abandono homens boçais, maus e vingativos, que desceram os morros embalados pela cantiga da demagogia berrada de janelas e automóveis, para votar na única esperança que lhes restava; naquele que se proclamava pai dos pobres, o messias-charlatão…"


Estas palavras representam sobremaneira o modo de pensar de parte da intelectualidade brasileira com relação aos valores das massas. Parafraseando um autor inglês, John Carey, apesar de, normalmente, pretenderem ser progressistas, os intelectuais são, quase sempre, reacionários.

Um comentário:

Anônimo disse...

Conhecimento nunca é demais. Saber sobre a nossa história é nosso dever!