19.8.06

"OBCENO E OBCENIDADES": O TEATRO DE NELSON RODRIGUES

Quando foi contratado por Samuel Wainer em 1951 para integrar a equipe do novo jornal Última Hora (ano em que escreve e encena uma de suas peças psicológicas, Valsa nº 6, sob a direção de Madame Morineau e com a irmã, Dulce Rodrigues, no papel solo), já beirando os 40 anos, Nelson Rodrigues estava desempregado, depois de uma melancólica passagem por O Globo, e sua vida particular em frangalhos. Para quem trabalhava desde os 13 anos, era uma situação, no mínimo, perturbadora, principalmente se se levar em conta que ele já havia produzido uma obra de peso, tanto no jornalismo, quanto no teatro.


Adaptação livre da obra de Nelson Rodrigues Valsa número 6.
















Seu início de carreira fora como repórter policial no jornal do pai, A Manhã; para quem conhece a vida e obra de Nelson, o cargo era mais do que oportuno, proporcionando-lhe a oportunidade de se deparar com preciosas matérias-primas, depois usadas em seus diversos romances, crônicas, e peças. Era o encontro da fome com a vontade de comer.


Três anos depois, aos 16 anos, já se transformara em colunista semanal da prestigiada página três, onde os famosos editoriais de seu pai, Mário Filho, eram despejados com força, talento e destemor. Entretanto, seus interesses como colunista não ensejavam esperar dele um polemista político como o pai, seus temas constantemente evocando os loucos, os poetas, os malandros, o oportunismo do homem frente à natureza, a felicidade etc...etc. Até que, inesperadamente, direciona suas flechas em direção a ninguém mais do que... Rui Barbosa, o "Águia de Haia", uma unanimidade nacional, uma lenda viva, segundo o qual se dizia que, quando morara na Inglaterra, colocara uma placa na porta de sua casa com os dizeres "Ensina-se Inglês". Tais comentários a respeito do famoso civilista mexia com o imaginário do brasileiro, deixando-o orgulhoso frente a tamanha sumidade, tamanho portento.



Pois, foi contra Rui Barbosa, contra a mitologia em torno de seu nome, que Nelson se rebelou. Na verdade, em seus dois artigos, onde Rui era o alvo, Nelson demonstra uma rara sintonia com o sentimento popular. Todo mundo conhecia Rui Barbosa, duas vezes candidato à presidência da República, falava de seu gênio, de seu português castiço, de sua esperteza et coetera e tal. Porém, curiosamente, praticamente ninguém conhecia sua obra. O Brasil era analfabeto de Rui, usando-se uma expressão típica do ferino jornalista. Além do mais, segundo Nelson, o que o famoso político da primeira República deixara nada mais eram do que "discursos e quinquilharias".


Nelson, que, com seus artigos, objetivava colocar Rui Barbosa em seu devido lugar, quer seja, retirar-lhe a auréola de gênio, é que foi defenestrado: Mário Filho, invocado com as colocações do pirralho, o expulsa da página três e o despacha novamente para a seção policial. Por pouco tempo. Não demora muito e Mário perde seu jornal para o sócio, Antônio Faustino Porto. Também não demora muito (em torno de dois meses) e Mário, com seu tino e experiência, já está com novo jornal na praça, o excepcional Crítica, que, entretanto, não dura nem três anos. Com o advento da Revolução de 30, Crítica, que apoiara os futuros perdedores contra Getúlio Vargas, tão logo Washington Luiz é destronado, teve sua redação e oficina destruídas. Nunca mais funcionou. Tem início um período de privações e humilhações para a família Rodrigues.


Em 1931, Nelson está novamente trabalhando em O Globo, 500 mil réis por mês. Como a maior parte da grana era destinada aos gastos familiares, Nelson consegue outro emprego, agora como redator de textos para uma firma que distribuía os filmes dos estúdios RKO no Brasil. Os dois empregos, no entanto, não resolvem seus problemas, e, em 1934, basicamente devido às privações, Nelson fica tuberculoso, indo, logo a seguir, para um sanatório em Campos de Jordão, onde fica pouco mais de um ano. A cura, porém, não acontece. Dessa forma, no início do ano de 1937, Nelson retorna novamente para a mesma cidade. Dessa vez, a estadia não se prolonga por muito tempo; alguns meses depois, Nelson deixa o sanatório gordo e restabelecido. Pouco depois, também, depois de um romance que durara cerca de um ano, Nelson está casado com Elsa Bretanha.


De volta a O Globo, da seção de esportes, onde trabalhara antes da doença, vai para O Globo Juvenil, recente lançamento do jornal de Roberto Marinho, em forma de tablóide. Começa também a escrever sobre ópera, para espanto dos amigos. Ficou nessa lida até 1943.


Paralelamente, Nelson tenta se firmar como dramaturgo, sua ambição maior. Assim é que, aos 9 de dezembro de 1942, depois da intermediação de Vargas Neto, sobrinho de Getúlio, Nelson consegue que a Comédia Brasileira, subvencionada pelo Serviço Nacional de Teatro, órgão governamental de ajuda e incentivo às artes, encene sua primeira peça A Mulher sem Pecado, com um tema obssessivo na obra do dramaturgo, a desconfiança da traição feminina, dirigida pelo peso pesado do teatro brasileiro Rodolfo Mayer. Obviamente a peça não faz sucesso, ficando duas semanas em cartaz. A indiferença, para ego tão absoluto, foi dolorosa, deixando-o arrasado. Arrasado, mas não demolido. Uma crítica elogiosa de Álvaro Lins (de quem se dizia de tudo, desde que era uma sumidade, grande crítico, até que era um charlatão, nada entendendo de teatro), muito respeitado, porém, no meio teatral, dera-lhe alento suficiente para seguir em frente. E seguir em frente significava Vestido de Noiva, a peça cuja montagem mudaria o conceito de teatro no Brasil para sempre.




Com uma estrutura cênica complicada (porém muito bem resolvida pela criatividade dos cenários, obra do fenômeno Santa Rosa, o maior cenógrafo, o mais criativo, do teatro brasileiro de todos os tempos), onde o que mais se salientava era a total desobediência às regras teatrais estabelecidas desde remotos tempos, subvertendo, totalmente, a questão da unidade de tempo e de espaço, a peça se passa em três planos simultâneos: na realidade, na memória e na alucinação. Em outras palavras, a ação de desenrola em lugares diferentes, caracterizando, por outro lado, tempos diferentes, presente, o passado recente, o passado um pouco mais afastado e, por fim, a fantasia. Era uma revolução que muitos não entenderiam.


Assim que Nelson deu a peça por conformatada, logo toma suas providências: envia cópias da peça para todas as personalidades literárias, que ele considerasse capazes de entender a complicada estrutura de sua Vestido de Noiva. Apesar dos elogios, exatamente pela maneira como a peça fora concebida, a maioria achava um sonho impossível sua montagem, porquanto ela significava vultosos recursos, pelo que envolvia de material e de artistas profissionais, dinheiro que ninguém do metier iria investir.


Mas Nelson era um predestinado. Com as benesses oficiais, depois de marchas e contramarchas, a peça foi encenada no Teatro Municipal pelo grupo carioca Os Comediantes, sob a direção de Ziembinski, sua estréia ocorrendo em 28 de dezembro de 1943. A platéia, composta basicamente pela fina flor da alta sociedade carioca, no desenrolar da peça, se perguntava o que estava vendo, a maioria, não acompanhando direito a história, exatamente, pela confusão que causavam os três planos, muitos não conseguindo entender a trama por isso. Findo o primeiro ato, muitos temiam pelo pior. Nos entretantos, mestre Zimba se deparava com problemas técnicos não esperados, que teriam que ser superados e rapidamente, conquanto Vestido de Noiva, se já era complicada em si, com tudo correndo em perfeita ordem, com problemas de luz, fundamental para o perfeito entendimento dos planos, a coisa desandaria e fatalmente o fracasso seria total.


Veio o segundo ato. Apesar dos problemas na iluminação, tudo correu bem, até abaixarem-se as cortinas. Logo depois, uma enorme cruz que compunha o cenário veio abaixo estrepitosamente. Se fosse durante o espetáculo, a história do teatro brasileiro teria outro rumo. Nesse ato, a platéia se mostrara apática, o pessoal com medo de vaias.



Findo o terceiro ato e a peça, com as cortinas abaixadas, ouviram-se algumas palmas. Depois outras mais, e outras mais fortes. Até que o teatro inteiro se manifestou em uníssono. Era a glória, a consagração. O teatro brasileiro tinha a sua mais nova sensação.

Cena de Vestido de Noiva.



Daí em diante, a vida de Nelson toma outros rumos. Primeiro, fora convidado pelos Diários Associados para ser o diretor de
redação de duas revistas do império de Chateaubriand, O Guri e Detetive, o salário oferecido (CR$ 5.000,00), bastante tentador e muito maior do que lhe pagava O Globo. Pouco depois (1944), inicia a publicação do folhetim Meu destino é Pecar nas páginas de O Jornal, sob o pseudônimo de Suzana Flag (mais tarde, lançado em livro). O sucesso foi de tal porte que as edições do jornal subiram para um patamar (30.000 exemplares) jamais esperado por seus editores. Assim, terminado o primeiro, novo folhetim aparece, agora sob o título de Escravos de Amor, outro impressionante sucesso popular de Nelson Rodrigues. Tudo deixava a entender que as coisas finalmente entravam nos eixos.

Lucélia Santos e Marcos Paulo, na minissérie Meu Destino é Pecar, baseada em Nelson Rodrigues.


















Só que, em 1945, a tuberculose volta, e lá vai Nelson, acompanhado de uma Elsa grávida, seu primeiro filho, Jofre Rodrigues, e a sogra, de volta a Campos de Jordão, lá permanecendo até meados do ano, ocasião em que lhe nasce o segundo filho, chamado também de Nelson.


No raiar de 1946, a nova peça de Nelson, Álbum de Família, uma trama de incestos e desejos proibidos, assim que submetida ao crivo da censura federal, causa um escândalo daqueles, sendo imediatamente proibida sob os epítetos de "doente" e "indecente", além de ser acusada de preconizar o incesto e incitar ao crime. Uma das mais fortes e ousadas peças de Nelson, Álbum narra a história de Jonas, casado com Senhorinha e de seus quatro filhos: Edmundo, Guilherme, Nonô e Glória. Jonas é pedófilo, tem uma forte fixação em meninas de 15 anos. Tia Rute, irmã de Senhorinha, é encarregada de ir buscá-las para ele. Edmundo sente atração pela mãe, enquanto Glória é alvo da adoração de seu pai e de Guilherme. Nonô é o filho preferido de Senhorinha, mas enlouqueceu e anda ao redor da casa totalmente nu.



Nelson não se resigna com o que ele considerava uma cretinice, uma prova cabal da ignorância crassa que assolava o Brasil, e inicia uma luta tenaz para liberar sua peça. Durante quatro meses, luta com unhas e dentes para alcançar seu intento, sem nada conseguir. E para piorar as coisas, Álvaro Lins (1912 - 1975), aquele mesmo que tinha elogiado a primeira peça de Nelson, agora, diante do texto de Álbum de Família, se mostra chocado. Em crítica um tanto quanto virulenta no Correio da Manhã, a peça foi chamada de vulgar, chula, grosseira, primária e outros adjetivos depreciativos.



Instaura-se a polêmica. Amigos e colegas de Nelson o defendem (Monte Brito, Freddy Chateaubriand), acusando o crítico de analfabeto em teatro. Entretanto, Álvaro Lins também tinha amigos, e, logo, José César Borba, também no Correio da Manhã, apesar de tratar Nelson como amigo, arrebenta com ele, acusando-o, entre outras coisas, de "inculto". Pompeu de Souza, do Diário Carioca, entra na briga ao lado de Nelson. Insinua que, por detrás da crítica de Borba, estariam as mãos de Álvaro Lins, o qual, segundo ele, era uma fraude, um analfabeto em questões teatrais.
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E a coisa foi por aí; R. Magalhães Jr. (uma múmia nelsonrodrigueana por excelência) percebe os personagens da peça como brutos, anormais, tarados etc. etc. No mesmo jornal (Diário de Notícias), Sérgio Milliet sai em defesa de Nelson e da peça. Waldemar Cavalcanti, também de O Jornal, entra na briga e ataca violentamente os moralistas de plantão, as "senhoras de Santana".


E de tanto ser comentada pela imprensa, os leitores começam a ficar excitados e curiosos, a ponto de O Globo, em várias edições, entrar na polêmica e perguntar aos leitores: deve ou não ser representada a peça Álbum de Família?


A intelectualidade em peso se manifesta. Pompeu de Souza e Álvaro Lins voltam a defender suas posições. A maioria, mesmo demonstrando receio com relação à peça, ataca sua interdição, dentre os quais estavam Austregésilo de Athayde, Lúcia M. Pereira, Otávio Tarquínio de Souza, Dinah Silveira de Queiroz, Accioly Neto, Lêdo Ivo, Agripino Grieco, Raquel de Queiroz, Nelson Werneck Sodré, Manuel Bandeira e outros mais. Somente duas vozes solitárias ficam a favor da censura: o pensador católico tradicional Alceu de Amoroso Lima, que, a partir desse episódio, se torna um desafeto mortal do dramaturgo, e o ator e produtor de comédias digamos "ligeiras", Jaime Costa.


Moral da história: a peça ficou 20 anos sob as botas da censura, somente sendo encenada, pela primeira vez, em 1967.

Álbum de Família, de Nelson Rodrigues.



Cena final de Álbum de Família.



Álbum de Família, de Nelson Rodrigues.



Agora, com a pecha de maldito a acompanhá-lo indelevelmente, Nelson, daí por diante, na maioria das vezes, teria problemas com suas peças. Em 1948, com Anjo Negro (com Nicete Bruno no elenco, com apenas 13 anos, estreando nos palcos), que, além dos temas recorrentes em Nelson, ainda ousa colocar como personagem principal um negro que estupra e se casa com uma garota branca e loira (Maria Della Costa), em uma época em que tais personagens eram representados (como realmente aconteceu) por atores brancos pintados de preto. Senhora dos afogados, sua peça seguinte, também seria censurada, concomitantemente com Anjo Negro.


A próxima peça de Nelson – Doroteia – (escrita para Eleonor Bruno, sua paixão no momento), para muitos seu melhor texto teatral (estreia em 1950, com direção de Ziembinski) e uma das mais criativas de todo o teatro brasileiro, não teve problemas com a censura, mas, a exemplo de Vestido de Noiva, muitos não a entenderam, a peça ficando somente duas semanas em cartaz.

Trecho da peça Doroteia, de Nelson Rodrigues.


Ainda em 1949, Nelson, a pedido de Freddy Chateaubriand, vai para outro jornal dos Diários Associados; deixa para trás Suzana Flag e se encarna em novo autor feminino, desta vez "Myrna", que, de tanto sucesso, enseja a criação de um "correio sentimental", ocasião em que Nelson responde às cartas dos leitores (alguns desconfiando de que esses leitores eram exatamente o próprio Nelson), reconfortando-os, na maioria das vezes, com aquela sua linguagem peculiar.


Tudo isso dura muito pouco. Em 1950, Nelson sai dos Diários Associados e não mais consegue emprego, ficando um ano sem trabalhar em jornais. Até que, depois de sua passagem meteórica pelo O Globo, Nelson é contratado por Samuel Wainer. A partir daí, sua vida jornalística se tornou legendária, ganhando status de mito que perdura até hoje.

Um comentário:

Letícia Tomazella disse...

Por causa da minha pesquisa de Mestrado, me interessam muito os textos críticos que se referem à obra rodriguiana, como o de Lúcia Miguel Pereira, Agripino Grieco, entre outros. Sabe onde posso encontrar os originais desses textos?
um bjo