25.8.06

O MITO CACILDA BECKER

Em 1953, as artes cênicas foram brindadas com a criação, pelo jornal O Estado de São Paulo, do prêmio Saci de teatro (que já existia para o cinema), laureando os melhores da temporada finda. Como a companhia teatral mais bem organizada, o TBC abocanha todas as premiações, Melhor Espetáculo (Antígona, de Sófocles e Anouilh), Melhor Diretor (Adolfo Celi), Melhor Ator (Paulo Autran), Melhor Atriz (Cacilda Becker) Melhor Autor Nacional (Edgard da Rocha Miranda pela peça Onde a Terra Cresce) e prêmio especial para Guilherme de Almeida pela tradução da peça Antígona.

Quando, nesse ano de 1953, Cacilda Becker ganhou seu primeiro Saci, aos 32 anos, já se tornara uma lenda nos meios teatrais, como também já era considerada a melhor atriz a atuar nos palcos brasileiros.

Teatro da Neura na montagem de Antígona.
















Neta de imigrantes alemães protestantes e italianos do sul, da Calábria mais precisamente (e com sangue grego pelo lado do avô paterno), Cacilda ( 1921 - 1969) nasceu e viveu até seus 10 anos em São Paulo. Logo que seus pais se separam, sua mãe, Alzira Becker, parte com seus filhos (Cacilda, Cleyde e Dirce) para Santos (depois de uma curta temporada em São Simão), onde Alzira, professora primária, começa a trabalhar em escolas municipais para sustentar a família. O período era de extrema pobreza, e Cacilda, irmã mais velha, se vê no papel de pai, exercendo sua autoridade junto às irmãs mais novas, enquanto a mãe trabalhava. Apesar da vida de pobre, as três irmãs eram muito devotadas ao estudo, todas chegando a cursar o curso normal, destino de nove entre dez garotas de classe média a média baixa do interior que terminavam o ginasial.

Vocacionada desde cedo para as artes, Cacilda logo se interessa pela dança, Isadora Duncan se tornando um ídolo eterno para ela. Quando se vê adolescente, acredita que pode e deve fazer carreira como bailarina, com o apoio entusiástico de Alzira, que conhece como ninguém as potencialidades da filha.

Em fins da década de 30, Cacilda se torna uma garota que impressionava por uma certa beleza puxada para o exótico, o que a tornava invulgar e diferente. Mais para baixa, seu corpo era delgado e gracioso, seu sorriso, largo e sincero. Seus cabelos, longos e cacheados, e de uma cor incomum (cor de avelã), eram daqueles que logo chamavam a atenção. Dos rapazes, mais precisamente, já que, por ser filha de pais separados, cedo começa a ser discriminada pelas colegas e pelas moças de família da cidade, raramente sendo convidada a participar de festas em suas casas. Isso a leva a se enturmar com o pessoal considerado mais avançado da cidade, os boêmios e os jovens intelectuais, impressionados com aquela jovem firme e decidida. Pois, por sua beleza (é verdade, muitos a achavam uma linda mulher, um tanto quanto diferente, do tipo exótica), logo seus novos amigos fazem-na capa de algumas revistas da cidade e a levam a disputar um concurso de beleza, apoiando-a, também, a se apresentar em espetáculos de dança que, entretanto, não preenchem no todo as expectativas da futura estrela.

Já normalista, em 1941, e com exatos 20 anos, Cacilda, através do jovem e atribulado Miroel Silveira, um de seus amigos intelectuais de Santos, e com alguns contatos nos meios teatrais, mesmo sem nunca ter participado de nenhuma montagem teatral (nem na platéia), parte determinadamente para o Rio de Janeiro, a capital federal, para participar da montagem amadora da peça 3.200 Metros de Altitude (Julien Luchaire (1876 - 1958), encenada pelo Teatro do Estudante do Brasil, substituindo outra artista. Sua confiança em si mesma era tanto que, em carta à mãe, considerava sua figura "abafativa" e "com mais talento" que seus colegas amadores. Não demora começa a chamar a atenção nos meios teatrais.

Raul Roulien, ex-ator brasileiro em Hollywood, que iniciaria uma temporada com sua nova companhia teatral no teatro Boa Vista, encanta-se com a atuação da jovem paulistana e a convida a participar de sua troupe, prometendo transformá-la em uma estrela. De cara, Cacilda se vê atuando com uma das maiores glórias do teatro brasileiro, Laura Suarez. E, de roldão, são montadas pelo grupo Prometo Ser Infiel (Dario Niccodemi), Garçom (Alfredo Savoir), Trio em Lá Maior (R. Magalhães Júnior), Alguns Abaixo de Zero (Machado de Oliveira), Coração (Raul Roulien) e Diana, eu te Amo, de Alberto de Castro. As críticas vão em um crescendo: inicialmente, Cacilda é vista pela crítica "inteligente, jovem e de agradável presença em cena"; depois, "ainda é uma esperança". Mais adiante, consideram que ela "(...) compôs com muita exatidão sentimental e cênica o papel da noiva (...)". Até que obtém sua melhor crítica por sua atuação em Diana, eu te Amo: "Cacilda Becker, num papel forçosamente limitado, obteve dele excelente efeitos, tirando sua interpretação da surdina e da penumbra nos quais a encerra o texto".

Cena de Flying Down To Rio , com Dolores del Rio, Fred Astaire and Ginger Rogers, também estrelado por Raoul Rolien.

















Cena de A Delicious Meloly, cena com Janet Gaynor e Raoul Rolien.
















Cacilda recebera seu batismo de fogo, saindo-se muito bem para quem nunca havia pisado em um palco.

Miroel Silveira, que queria ligar o nome de Cacilda com um incipiente e inexistente teatro de vanguarda, desaprova azedamente seu engajamento com a companhia de Roulien, considerando-o, juntamente com Jaime Costa e Procópio Ferreira, representantes do teatro velho e ultrapassado. Cacilda, que "(...) não tinha a menor afinidade com o teatro; não o entendia como arte, nunca tinha visto, não tinha frequentado e não compreendia essa arte", após um ano com Roulien, obviamente sem ter se tornado uma estrela, volta para São Paulo magra, estafada e sem dinheiro. Emprega-se, então, em uma seguradora (trabalhando como caixa), sendo logo despedida por seu alheamento. O vírus das artes já entrara em seu sangue.
Seu destino imediato foi o rádio, trabalhando como locutora e radioatriz na Cultura e na Tupi-Difusora. Enquanto isso, entretanto, o teatro, mais uma vez, entra em sua vida: convidada a participar do Grupo de Teatro Universitário - GUT, criado pelo então jovem crítico de teatro, Décio de Almeida Prado, um aristocrata que tinha horror ao teatro praticado no Brasil, Cacilda se junta a um jovem e ambicioso elenco em que figuram Sônia Coelho, Hamilton Ferreira, Caio Eduardo Cayubi entre outros.

Três peças curtas de Gil Vicente (Auto da Barca), Martins Pena (Os Irmãos das Almas) e Mário Nene (Pequenos Serviços em Casa de Canal) abriram a temporada do GUT, recebendo afagos da crítica, que elogia a coesão do grupo, o cuidado da direção e o equilíbrio dos valores. Os aplausos foram "entusiásticos", cativando até o monstro sagrado Oswald de Andrade que publicou excelente crítica no Diário Popular.

Cacilda, em 1944, mais uma vez, retorna ao Rio de Janeiro, agora para integrar a companhia de Bibi Ferreira, ocupação conseguida novamente por Miroel Silveira. São montadas, entre outras, Que Fim de Semana (Noel Coward), A Moreninha (adaptação de Miroel Silveira do livro homônimo), O Barbeiro de Sevilha (Beaumarchais) e A Culpa é de Você (Giocoecher e Guidone). Foi uma experiência um pouco amarga para a jovem aspirante de teatro que se viu sem chance a partir da constatação de que a companhia já tinha sua estrela, exatamente Bibi Ferreira.

O cinema então entra em sua vida.

Os estúdios Atlântida, ainda sem uma filosofia definida de produção (Esse Mundo é um Pandeiro seria filmado no mesmo ano, 1947), a convidam para participar do melodrama Luz dos Meus Olhos, argumento de Paulo Wanderley, roteiro do futuro contratado da Vera Cruz Alinor Azevedo, e direção de José Carlos Burle. O elenco contava com o galã Celso Guimarães, Grande Otelo, Manuel Pera, Heloísa Helena e Luiza Barreto Leite. O filme, de tão ruim, se perdeu na história, todos recebendo críticas negativas, inclusive Cacilda, que, a partir dessa experiência, se tornou arredia em relação ao cinema, somente retornando a um estúdio seis anos depois para filmar Floradas na Serra.

Esse ano de 1947 se torna um marco na carreira de Cacilda. Miroel Silveira (e Brutus Pedreira), que no início de ano se tornara o empresário de um novo e promissor grupo teatral carioca, Os Comediantes, convida-a a integrar a troupe para a temporada de São Paulo, onde seria montada uma nova versão de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, carro-chefe da companhia desde 1943 quando lançara as bases do novo teatro brasileiro. Seriam companheiros de Cacilda futuros pesos pesados do teatro brasileiro, com destaque para Maria Della Costa, Graça Mello, Margarida Rey, Jardel Filho, Orlando Guy e Olga Navarro.

Antes, porém, Cacilda sobe em cena pela primeira vez na nova companhia, atuando na peça Desejo, de Eugene O'Neill, com direção de Ziembinski, cenários de Martin Gonçalves, figurinos de Oswaldo Mota e contando no elenco com Maria Della Costa, Sandro Polônio, Jardel Filho e Margarida Rey, assim se referiu a crítica de O Estado de São Paulo:


"Dificilmente no correr de 47 teremos um outro acontecimento tão importante para a vida do teatro paulista como a estreia (...) de Os Comediantes. Jamais tínhamos visto o nosso teatro oficial ser cedido a uma companhia brasileira de teatro e muito menos ainda por dois meses consecutivos ... Não há atualmente, no Brasil, nenhuma organização teatral amadora ou profissional que se compare em seriedade artística e capacidade de organização aos Comediantes..."

Vestido de Noiva, seu cartão de visitas para São Paulo, se transforma no primeiro grande sucesso de Cacilda, com críticas muito favoráveis ao seu desempenho. A crítica de O Estado de São Paulo, após aplaudir Olga Navarro e Maria Della Costa, assim se refere à mais nova estrela da ribalta:

"(...) O mesmo poderíamos dizer da Sra. Cacilda Becker, que não tivera ainda uma oportunidade digna de seu talento, a não ser espetáculos esparsos de amadores. Esta já se apresenta mais segura de si,pois a sua experiência de palco, embora limitada, permite grande domínio de seus dons, fato raro em atriz tão jovem. A Sra. Cacilda Becker dispõe de todo o necessário para ser uma das maiores atrizes do teatro brasileiro de amanhã. O seu ingresso nos Comediantes parece ter sido o passo mais decisivo nesse sentido."

Vestido de Noiva, montagem apresentada na TV Cultura.



















Só que Os Comediantes não aguenta a barra e fecha suas portas. Cacilda se vê, assim, no fim do ano, sem dinheiro e, pior de tudo, sem a amizade de Miroel Silveira, fato que terminou não sendo tão ruim assim, já que, logo no ano seguinte, é convidada a integrar a nova companhia que também revolucionaria as artes cênicas no Brasil, o Teatro Brasileiro de Comédia.

Cacilda mal teve tempo de esquentar sua cadeira; não demora e ela é chamada por Abílio Pereira de Almeida para substituir Nídia Lycia na peça A Mulher do Próximo, de autoria e direção do próprio Abílio. Diz a lenda que a substituição de uma pela outra se verificara porque Nídia, então amadora, advinda do Grupo Experimental de Teatro, se negara a beijar em cena aberta, fato inadmissível àquela altura do campeonato.

Com a profissionalização do TBC em 1949, Cacilda é a primeira a ser contratada, logo participando como atriz principal da primeira montagem profissional de grupo, Nick Bar (William Soroyan), vivendo Kitti Duval, sendo secundada por Maurício Barroso, Carlos Vergueiro, Madalena Nicol, Marina Freire, Waldemar Wey, Carlos Vergueiro, Célia Biar e um punhado de estreantes, oriundos dos grupos amadores de então.

Nesse espetáculo, o destaque ficou para a cenografia de Aldo Calvo, que impressiona ao reconstituir o ambiente degradado descrito no enredo. Décio de Almeida Prado diria sobre o espetáculo:

"O trabalho dos amadores paulistas já vinham sendo de primeiríssima ordem nestes últimos tempos, mas sempre no sentido de maior naturalidade e discrição possível.Celi modificou ligeiramente tais características, dando ao elenco do TBC um senso de espetáculo, mais teatralidade, uma tonalidade de maior agressividade e mais vida, de acordo, aliás, com o caráter da peça. O rendimento que obteve dos atores, nesse ponto, foi excelente."


Esta peça também marca a estreia do jovem diretor de teatro, também recém contratado, Adolfo Celi, com quem Cacilda inicia um turbulento romance. Ainda em 1948, a jovem estrela seria dirigida por Celi na peça de Joseph Kesselring Arsênio e Alfazema, dividindo a cena com uma poderosa rival, Madalena Nicol.

Adolfo Celi sendo entrevistado por Odete Lara (TV Tupi).
















1950 marcou a definitiva consagração de Cacilda Becker, que protagoniza a maioria das peças apresentadas pelo TBC nesse ano: Entre Quatro Paredes (Jean Paul Sartre), em que divide os palcos com outro portento do teatro, e também recém contratado, Sérgio Cardoso; A Ronda dos Malandros (John Gay), novamente com Sérgio Cardoso, peça que, por suas críticas levemente socialistas, desagradou Zampari, ocasionando a demissão de Ruggero Jaccobi, seu diretor; A Importância de Ser Prudente (Oscar Wilde), contracenando pela terceira vez com Sérgio Cardoso; Pega Fogo (Jules Renard), que marca sua primeira apresentação junto à irmã, Cleide Yáconis; e Anjo de Pedra, de Tennessee Willians, peça em que seu desempenho deslumbrou a crítica paulista, considerando sua performance digna das melhores atrizes de teatro de todos os tempos.

Encenação de Entre Quatro Paredes, peça de Jean Paul Sartre.
 
















Por seus méritos, tornando-se a primeira atriz do TBC, Cacilda cedo teve que brigar por sua condição de estrela. Ainda em 1950 (segundo Sábato Magaldi; para o biógrafo de Cacilda, Luís André de Prado, o fato se dera em fins de 1949), Madalena Nicol, segundo se noticiou pela imprensa, sentindo-se desprestigiada com a irresistível escalada da companheira de elenco aos píncaros da glória, teria exigido que seu salário fosse o maior da companhia. Naquele momento, tal pretensão era impossível, já que a estrela de Cacilda se tornara de primeira grandeza. Ela, inclusive, chegara a dizer que, por seus méritos, "(...) não podia ser superada por ninguém na folha de pagamento". Como resultado, Madalena Nicol foi demitida e, junto com Ruggero Jaccobi, forma novo grupo teatral que, entretanto, teve curtíssima vida.

No entanto, outra história corria pelos bastidores do teatro; existia mesmo uma forte concorrência entre as duas divas pela condição de estrela da companhia; Madalena se sentia superior à rival por ter uma voz imponente (segundo ela, Cacilda tinha uma voz de “taquara rachada”), uma presença luminosa, além de ser uma ótima atriz. Mas Cacilda tinha aquela qualidade, uma persona, que a tornava inigualável dentro de um palco.

Porém, o que a maioria dos contemporâneos das duas estrelas comenta é que o problema era que Madalena tinha um temperamento explosivo, expunha suas opiniões de maneira inflexível e, com a chegada de Adolfo Celi, se sentia perseguida. E para piorar as coisas, tinha fortes opiniões políticas, com inclinações para a esquerda do espectro político. Reclamava com todos sobre a terrível carga de trabalho que os atores tinham que suportar, já que, naquela época, havia duas apresentações noturnas durante a semana e três aos sábados, fato que deixava os atores exaustos e nervosos, principalmente quando, como é comum em teatro, as coisas não saiam como esperado.

A gota d'água teria sido que Zampari fora alertado de que Madalena havia incentivado uma greve de maquinistas, o que, para ele, que se apresentava como um mecenas, um abnegado das artes, era insuportável. Assim, após o fim da temporada da peça Luz de Gás, de Patrick Hamilton, em que detinha o papel principal, Madalena foi chamada pelo empresário que, sem meias palavras, a acusa de desagregar a companhia, chamando-a, inclusive, de comunista. Madalena desmentiu tudo, mas o fato é que ela teve mesmo que se afastar. O mais interessante de tudo é que, em um “informe reservado” do DOPS paulista (07.09.1949), Cacilda e o então seu marido, Tito Fleury, eram acusados de serem os principais integrantes da “célula comunista mais ativa do meio artístico de São Paulo”, que se reuniam constantemente à revelia da diretoria do TBC. São as ironias do destino que somente a história pode explicar.
.
1951 foi um ano atribulado para Cacilda, tanto profissional quanto sentimentalmente. Profissionalmente, pode-se dizer que foi um ano abençoado para ela. Excetuando Ralé, de Máximo Gorki, em que Maria Della Costa, dirigida pelo mais novo encenador contratado pela companhia, vindo diretamente da Itália, Flaminio Bollini, arrasou em cena, basicamente, todos os outros grandes sucessos do ano contaram com a presença da estrela: Paiol Velho (Abílio Pereira de Almeida), Seis Personagens à Procura de um Autor (Pirandello) e, fechando o ano com chave de ouro, Dama das Camélias (Alexandre Dumas Filho), uma montagem problemática, em que foi dirigida por Luciano Salce, que, mais tarde, faria seu nome como diretor cinematográfico na Itália (Pato com Laranja).
.
Durante a montagem de Paiol Velho, aconteceu um fato hilário que entrou para o anedotário do teatro; Adolfo Celi, com sua mania perfeccionista, resolveu colocar um papagaio de verdade em cena, que participara dos ensaios desde o início. Acontece que, por isso, o bicho decorara muitas das falas dos artistas e, durante o desenrolar da peça, perante uma plateia boquiaberta e aturdida, passou a repetir o final das falas dos artistas. A peça, que era um drama, repentinamente se tornara uma comédia, já que a plateia (ah! a plateia) caía na risada, o que deixava o elenco em situação vexatória. O problema só foi resolvido quando substituíram a nova revelação dos palcos por outro com menos atributos dramáticos.

Quanto à sua vida sentimental, Cacilda estava em frangalhos. Tudo porque seu romance com Adolfo Celi, o diretor mais famoso e poderoso da companhia, estava às vias de um final melancólico, fruto da chegada aos estúdios da Vera Cruz e, consequentemente, ao TBC, de uma das mulheres mais bonitas do Brasil, a estonteante Tônia Carrero.

Tônia, àquela altura já famosa por sua incomparável beleza, estava em São Paulo com a companhia teatral de seu marido, Carlos Thiré, recentemente contratado por Zampari como assistente de Abílio Pereira de Almeida, e de Fernando de Barros (descobridor de outra estrela poderosa, a também lindíssima Maria Della Costa) que iria produzir a nova aposta do estúdio, Tico-Tico no Fubá, a biografia romanceada de Zequinha de Abreu, companhia esta vinda do Rio de Janeiro para se apresentar no teatro Cultura Artística de São Paulo.



Já com três filmes em sua bagagem - Querida Suzana (1947), Caminhos do Sul (1950) e Quando a Noite Acaba (1950) -, Tônia, que ambicionava brilhar na ribalta e conquistar o TBC como Cacilda, a princípio, ficou sem ter o que fazer, porquanto não recebeu nenhuma proposta de trabalho, nem do TBC, nem da Vera cruz. Hóspede de Di Cavalcanti e figurinha carimbada na então cena teatral e cinematográfica, a estrela batalhava seu caminho até que conheceu Alberto Cavalcanti.

Cavalcanti ficou absolutamente impressionado com a beleza da artista; e ao reencontrá-la certa vez no Nick Bar, reduto da boemia artística de São Paulo, logo lhe oferece o principal papel do filme Tico-Tico no Fubá, que seria dirigido por Adolfo Celi, que, ao conhecê-la, se apaixonou perdidamente, aliás, sendo imediatamente correspondido, não obstante seus relacionamentos com Thiré e com Cacilda.

Enquanto estava filmando, Celi manteve a estrela longe do TBC, o que não foi difícil, já que as filmagens de Tico-Tico no Fubá se arrastaram por quase todo o ano de 51, numa gastança sem fim, fato que foi um dos motivos da demissão de Cavalcanti, acusado de gastar demais, sem se preocupar com o desperdício considerado demasiado por Zampari.

Com as filmagens de Tico-Tico no Fubá em seu final, Tônia começou a frequentar o TBC, assistindo a todos os ensaios, considerando-os como verdadeiras aulas de interpretação teatral e observando atentamente as lições dos mestres italianos contratados pela companhia. Só que, nessa ocasião, seu relacionamento com Celi já estava na boca de todos, tanto nos estúdios, quanto no TBC. Cacilda foi uma das últimas a saber, ficando arrasada pela falta de sensibilidade de Celi, entrando, então, em profunda depressão, incapaz de acreditar na traição. Emagreceu muito, seus cabelos, lindíssimos, começaram a cair. A estrela chegou mesmo a pensar que ficaria careca.

Como em uma montagem teatral, o epílogo se deu quando dos ensaios de A Dama das Camélias, uma das mais caras produções do TBC. Celi e Tônia aguardavam juntos o ensaio geral, até que o diretor colocou os braços nos ombros de Tônia. Obviamente, todos os olhares se dirigiram ao casal e, também obviamente, o mal estar foi geral. Cacilda, totalmente descontrolada, sai de cena por determinado tempo e, quando volta ao palco, o refletor que a iluminava, sai de cena e começa a se dirigir para os lados de Tônia, logo focalizando-a. A cena deve ter sido dramática e divertida: o teatro todo escuro e as luzes focalizando uma artista que nem parte do elenco fazia.

E não ficou só nisso: Cacilda abandona o palco, dirige-se para os lados de Tônia, ainda sob as luzes do refletor, e fica cara a cara com ela. Inclina-se sobre ela e lhe diz algo que nunca foi revelado. Para quem conhecia o gênio da estrela, é de se imaginar o que ela poderia ter dito.

Como prêmio de consolação, Cacilda obteve de Celi a promessa de que Tônia Carrero nunca pisaria nos palcos do TBC.

Promessa obviamente não cumprida, não obstante, mais tarde, Tônia declarar que fora para a companhia sem a ajuda do companheiro.

 Tônia Carrero em comercial do Opala.















Também em fins de 1951, Cacilda teve que se deparar com um dos grandes desafios de sua vida profissional: levar A Dama das Camélias – a mais suntuosa e cara produção do TBC - para ser encenada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, cidade onde seu nome despertava certa antipatia nos círculos teatrais. O elenco era estelar e competente: Cacilda Becker, Maurício Barroso, Paulo Autran, Carlos Vergueiro, Fredi Kleemann, Isadoro Lopes, Cleyde Iáconis, Ruy Cerqueira, Elizabeth Henreid e grande elenco.

Sob o pretexto de comemoração do terceiro ano da companhia, mas, na verdade, querendo impressionar o governador paulista Lucas Garcez, visando a um empréstimo do Banco do Estado de São Paulo para os estúdios Vera Cruz, à aquela altura já com sérios problemas de caixa, a peça já representara problemas, quando de sua montagem no Teatro Municipal de São Paulo.

Acontece que a companhia estava acostumada com o pequeno teatro da Major Diogo (360 lugares), onde até um sussurro era ouvido na última fila, o que não acontecia em um teatro de tão grande proporção como o Municipal. O resultado foi que, se ganhou em suntuosidade, a peça perdeu bastante em seu lado dramático, a maioria do público mal escutando as falas, em virtude das enormes dimensões do teatro. Plasticamente, um sucesso; dramaticamente, um fiasco.

A crítica não perdoou. Miroel Silveira, descobridor de Cacilda e então seu desafeto, em crítica na Radar intitulada “A Camélia Caiu do Galho”, foi cáustico e objetivo:
"O TBC, insuflado pela ambição de sua primeira atriz, desejosa de comparar-se apenas a outras modestas intérpretes de Margarida Gautier, como Sarah Bernhardt e Eleonora Duse, abandonou sua acolhedora sala de espetáculos da rua Major Diogo e lançou-se às dimensões pedras-de-toque do Teatro Municipal. O resultado foi constrangedor.

(...)

E aquilo que deveria ser o dó de peito das comemorações do seu terceiro aniversário, transformou-se num melancólico festival de amadores... Por quê? A resposta é fácil. Porque antes realizava o TBC, apesar das dificuldades e naturais imperfeições – mas afastado de um objetivo imediatamente comercial -, um teatro de equipe, cujo ponto de partida era a direção de cena. Agora, porém, invertem-se as posições: o teatro não apenas se profissionalizou, mas, também, se comercializou – e, o que foi pior de tudo, foi atrelado ao carro de sua ‘estrela’. Desmanchou-se a igualdade que tornava equilibrada a situação de seus companheiros e, tal como nos tão combatidos ‘teatros comerciais’, a estrela escolhe a peça, o diretor, os companheiros de interpretação e tem seu nome acima e maior do que o dos outros nos cartazes (por força de cláusula contratual) – mesmo acima e maior do que os nomes daqueles que a ensinaram – Salce e Ziembinski (...) O Teatro Brasileiro de Comédia se transformou no Teatro Brasileiro de Cacilda. Continua o TBC, mas só nas iniciais: por dentro, o miolo é outro."
Pode-se imaginar a reação de Cacilda a tão pesado comentário. Deve ter sido a mesma que teve Margo Channing, de Bette Davis, ao ler a crítica de Addison DeWitt (George Sanders) a respeito de atrizes de meia idade que insistiam em fazer os papéis das mocinhas, no filme A Malvada (All About Eve), de Joseph L. Mankiewicz.
Chegando ao Rio de Janeiro para uma temporada de 20 dias no Teatro Municipal, a companhia, logo no dia da estreia, se deparou com uma dificuldade adicional: a crítica carioca, já com um pé atrás, ficou perplexa e azeda com a ausência em papéis significativos daquele a quem considerava o maior e mais talentoso ator de sua geração, o carioca Sérgio Cardoso. Comentava-se que próprio ator se sentia desprestigiado no TBC e que se estava preparando uma vaia para Cacilda Becker. Chegou-se mesmo a dizer que lhe jogariam ovos na estreia.

Foi neste clima que estreou A Dama das Camélias. E, ao contrário do que se esperava, os aplausos foram calorosos, a peça se constituindo em novo triunfo para Cacilda. Parte da crítica, capitaneada por Paschoal Carlos Magno, desancou a montagem, contudo, criticando, principalmente o sotaque italianado dos atores, de Cacilda, basicamente, culpa, segundo eles, dos montadores italianos (Salce, Jaccobi, Celi etc.).

Assim, entre mortos e feridos, salvaram-se todos na aventura tebeciana aos palcos cariocas.

Cenas do filme Dama das Camélias.

















Em 1953, após o êxito de Antígona, estreada em agosto de 52, espetáculo considerado por Décio de Almeida Prado "o maior espetáculo que já vimos no TBC", e ter brilhado na montagem de Divórcio a Três (Victorien Sardou), e não obstante a triste experiência de anos atrás, Cacilda tentaria dar um passo à frente em sua carreira: estrelar a superprodução da Vera Cruz Floradas na Serra, baseada na obra de Dinah Silveira de Queiroz.

Mas as filmagens, iniciadas em agosto/53, para tormento de Cacilda, somente teriam seu termo em meados do ano seguinte, 1954.

Nenhum comentário: