24.8.06

KINO FILMES E MULTIFILMES: MOMENTOS FUGAZES

Assim que chega a Recife e inicia as filmagens de O Canto do Mar para a Kino Filmes, Cavalcanti se defronta com a dura realidade. Tendo acumulado as funções de diretor e de produtor, ao mesmo tempo em que é confrontado com um orçamento mais do que apertado, ele tenta economizar imprimindo um exaustivo e enxuto cronograma de trabalho, o que traz como consequência constantes brigas com a equipe técnica e um clima tenso nos sets de filmagens.



Tudo em vão. Por falta de dinheiro, o que ocasionava a falta de filmes virgens, as filmagens são constantemente interrompidas, enquanto Cavalcanti, sem ter o que fazer, pintava e bordava pelas noites recifenses, escandalizando seus moradores e sendo atacado pela imprensa local, a mesma que o bajulava até recentemente em seus cadernos culturais.




Aos trancos e barrancos, todavia, Cavalcanti, depois de meses e meses, termina as filmagens e, em meados de junho de 1953, volta para São Paulo para os trabalhos de sonorização, dublagem e montagem. Enquanto isso, entra em grande evidência nos meios culturais da cidade por ser o protagonista de dois relevantes acontecimentos nessa área: é agraciado com o prêmio Governador do Estado pela sua contribuição ao cinema brasileiro e, paralelamente, lança seu livro sobre a sétima arte intitulado Cinema e Realidade. Por esse tempo, ele já tem sua convicção sobre os melhores caminhos a serem trilhados pelo cinema nacional e de como deveria ser a atuação do poder público nesse campo.
Em síntese, ele propugnava:

- Medidas visando a proteção dos filmes nacionais que tenham como tema central a exata expressão dos sentimentos e tradições populares brasileiros;

- Criação de um estilo cinematográfico de conteúdo e forma nacionais, visando à utilização do filme brasileiro como veículo de defesa e do desenvolvimento da cultura do povo brasileiro;

- Desenvolvimento de intercâmbio cinematográfico com todos os países latino-americanos, objetivando a realização de um Congresso Latino-Americano de Cinema e o estreitamento de relações com todos os países do mundo;
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- Implantação de uma legislação que eleve o nível moral e social do cinema, tanto na produção nacional como na escolha das películas importadas;

- Organização de um sistema continental e nacional estável de distribuição e exibição de películas, baseado nas leis nacionais de proteção, troca internacional de cópias e direito de exibição com liberação dos direitos aduaneiros;

- Medidas e leis que permitam o livre desenvolvimento econômico e artístico do cinema brasileiro.

Provocando intensa polêmica na imprensa do eixo Rio-São Paulo, atacado por Salvyano Cavalcanti e pelo dublê de crítico e futuro ministro Bresser Pereira, e elogiado por Helena Silveira e Almeida Salles, O Canto do Mar, refilmagem de En Rade, filme realizado na Inglaterra pelo cineasta em 1927, roteirizado pelo futuro superastro da literatura brasileira, José Mauro de Vasconcelos (Meu Pé de Laranja Lima), com diálogos criados por Hermilo Borba Filho (escritor pernambucano que depois narraria a frenética saga recifense de Cavalcanti), música do maestro Guerra Peixe, montagem de José Cañizares e com um elenco absolutamente desconhecido, quase todo composto por artistas amadores ligados ao cine-clube de Recife, dentre os quais Aurora Duarte (futura estrela do cinema brasileiro, protagonista de A Morte Comanda o Cangaço), Cacilda Lanuza, Margarida Cardoso, Alfredo de Oliveira, Ruy Saraiva, Alberto Vilas e Glauce Bandeira, é um filme sobre a decadência dos laços familiares. Conta o drama das famílias que fogem da fome e da miséria do sertão, passando pelo litoral nordestino a caminho da abundância que, acreditam, os esperam no sul maravilha. Uma dessas famílias é composta por um pai velho, inválido e desequilibrado; uma mãe lavadeira; um filho ainda jovem, mas já o arrimo da família; e a heroína, a jovem que vê a ruína de seus sonhos em decorrência da miséria. A morte do irmão mais novo, sem assistência, é o toque final para a total desintegração familiar.

A crítica ficou dividida sobre o filme. Os paulistas, Salles Gomes à frente, gostaram, o mesmo não acontecendo com os cariocas. Salvyano Cavalcanti, por exemplo, em crítica devastadora, arrebenta com o filme. Seus termos mais amenos foram "maior decepção", "decadência", "descosido", "sinuoso", "deturpado" e assim por diante.

Lançado em 20 salas da capital, São Paulo, e não obstante a celeuma intelectual em torno de si, o filme foi um tremendo fracasso, trazendo como conseqüência fortes rumores sobre o iminente fechamento dos estúdios.


Apesar de tudo, Cavalcanti parte para a realização de seu segundo longa para a Kino Filmes, a comédia Mulher de Verdade, com roteiro de Miroel Silveira e Oswaldo Moles (os mesmos roteiristas de Simão, o Caolho), e estrelado pelo cômico Colé, a multifacetada Inesita Barroso (que, nesse ano de 1953, faria a primeira gravação da música Ronda, de Paulo Vanzolini, mais tarde gravada por meio mundo), Raquel Martins, Adoniran Barbosa, Carla Nell e outros, que conta a história de um malandro, de nome Bamba, que, já no início do filme, é mostrado com o crânio fraturado em uma disputa com a polícia. Ainda no hospital, ele se apaixona por uma enfermeira, Amélia, com a qual pretende casar. Com efeito, saindo da cadeia, dá um último golpe, muda de vida e vai trabalhar como bombeiro-sapador. Sabendo que o regulamento do hospital não permitiria que se casasse, Amélia se diz solteira, e se casa novamente, aproveitando o horário de trabalho para levar uma vida dupla. Um incêndio precipita o equívoco.
 



Inesita Barroso interpretando Ronda (Paulo Vanzolini).
 

Carmen Costa interpretando Ronda.



 
Jamelão interpretando Ronda.

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Conquanto tenha sido concluído em fins de 1953, o filme não consegue mercado para ser lançado (o que somente ocorreria em fins de 1955), e assim, com a queda de suas ações, demissões de técnicos e de funcionários e com dívidas por todos os lados, a situação da Kino Filmes se torna insuportável. E logo os estúdios, de comum acordo, já que várias prestações estavam em atraso, são devolvidos à Maristela que, novamente comandada põe Marinho Audrá, iniciaria, ainda em 1954, nova fase da companhia, que todos esperavam fosse mais dinâmica e com melhores resultados.

Cavalcanti, com o fim da aventura Kino Filmes e premente de dinheiro, vai para a televisão (TV Record), dirigindo Madalena Nicol, e para o teatro (dirige Electra, de Sófocles), viajando a seguir para a Europa (mais precisamente para os países socialistas), onde saboreia os ecos do sucesso de crítica de O Canto do Mar nos festivais de Cannes e de Karlovy Vary, na Tcheco-Eslováquia, onde o filme ganha o grande prêmio, aliás, o primeiro grande prêmio a ser concedido a uma produção brasileira. Porém, nada seria como antes. Dizendo-se contratado por uma companhia cinematográfica austríaca para dirigir na Europa, no apagar das luzes de 1954, deixa definitivamente para trás o Brasil e o cinema nacional. Era o fim melancólico de um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos.

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Mário Civelli era realmente um rapaz muito sabido, esperto mesmo. Com o fim de sua aventura nos estúdios Maristela, onde os Audrá chegaram a investir cerca de 30 milhões de cruzeiros, tudo levava a crer que seus projetos cinematográficos chegaram a seu termo e que as portas do capital financeiro estariam irremediavelmente fechadas para ele.

Tipo de raciocínio de quem não conhecia Civelli.


Com seu forte poder de persuasão, se assim se pode dizer, Mário mal teve de chorar pelo leite derramado. Não demora muito, convence outro rico industrial - Anthony Assunção - (com interesses em fazendas, em fábricas de rádio e de refrigerantes e na montagem de automóveis), a investir cerca de 15 milhões de cruzeiros em um novo empreendimento cinematográfico: a Multifilmes.

Fortemente atraído pelo projeto, e sem ter muito claros (apesar de achar que sim) os problemas relacionados à indústria cinematográfica, Assunção não economiza capital. Quase que imediatamente, modernos estúdios são erigidos na Serra da Cantareira (área de 50.000 metros quadrados), contando com todas as modernidades possíveis, energia própria (três geradores importados), ótimos palcos, modernos laboratórios de montagens etc. E como filosofia de trabalho, os estúdios teriam que trabalhar com orçamentos reduzidos (abaixo de dois milhões de cruzeiros), e produções muito bem planejadas, para evitar o desperdício, marca registrada da Vera Cruz. Traduzindo, filmes de qualidade, com apelo popular e com preços condizentes com o mercado.
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Seu primeiro envolvimento com Civelli foi na produção de Modelo 19 (de 1952), com a qual gastaria em torno de seiscentos mil cruzeiros. Dirigido por Armando Couto, a partir de um roteiro de Millôr Fernandes, e com um jovem e saudável elenco (Ilka Soares, Luigi Picchi e Mário Cerni), o filme, conta a história de alguns imigrantes que fogem de um Europa destruída rumo ao Brasil em busca de novas oportunidades. Durante a viagem, em meio a brigas e camaradagens, traçam seus sonhos em um novo e desconhecido país. O "modelo 19" do título faz alusão à carteira que lhes daria direito de viver legalmente no Brasil.
O filme ganhou diversos prêmios ao longo dos próximos anos: prêmio da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos, Rio de Janeiro, 1956; Melhor Ator Secundário (José Mauro de Vasconcelos), prêmio Saci, São Paulo, 1956; Melhor Ator (Luigi Picchi), prêmio Governador do Estado de São Paulo, São Paulo, 1956. Também ganhou cinco prêmios no I Festival Internacional de São Paulo - Ganhou 5 Prêmios Governador do Estado de São Paulo - de Melhor Ator (José Mauro de Vasconcelos), Ator Coadjuvante (Waldemar Seyssel-Arrelia), Diálogo (Millôr Fernandes), Revelação (Luigi Picchi) e Produção (Mário Civelli)], que, no entretanto, não impediram seu fracasso nas bilheterias. Mas, apesar dessa primeira experiência mal sucedida, Assunção não desiste, considerando esse seu primeiro fracasso apenas como um teste que lhe permitira entrar em contacto com os reais problemas por que passava a indústria de cinema no país.


Com carta branca dada por Assunção, e com a coragem que lhe era peculiar, além de embalado pelo suporte monetário de Assunção, Civelli, em um feito digno de nota, produz e lança no mercado, nesse ano de 1953, nada mais nada menos do que cinco longas-metragens: Destino em Apuros, O Homem dos Papagaios, Uma Vida para Dois, A Sogra e Fatalidade.
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Aliado a isso, por ter sido revelado em laboratório estrangeiro, o filme não consegue, junto ao Departamento de Censura, o certificado de filme brasileiro, ocasionando mais despesas com as quais Civelli não contava. Como consequência, assim que lançado, o filme não consegue se pagar, constituindo-se no segundo fracasso da jovem companhia. Como curiosidade, diversos atores que depois escreveriam a história do teatro brasileiro atuam neste filme. Além de Paulo Autran, fazem parte do elenco Sérgio Brito, Ítalo Rossi, Graça Melo, Luiz Tito e Paulo Goulart.
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O Homem dos Papagaios (direção de Armando Couto; argumento de Procópio Ferreira; elenco formado por Procópio Ferreira, Ludy Veloso, Herval Rossano, Eva Wilma, Hélio Souto, Mario Benvenutti, Elísio de Albuquerque etc.) e Fatalidade (direção, argumento e roteiro de Jacques Maret; no elenco, Angélica Hauff, Guido Lazzarini, Célia Helena, Jackson de Souza, Araci Cardoso, Altamiro Martins e outros), as duas próximas produções saídas dos estúdios, já foram realizadas dentro da filosofia de Anthony Assunção: filmes baratos, em preto e branco, roteiros bem estruturados e filmados em pouco tempo (cerca de 30 dias). O resultado das bilheterias ficou também muito aquém do esperado, principalmente em relação a O Homem dos Papagaios, cujo elenco é encabeçado pelo mítico Procópio Ferreira, recém saído de um razoável sucesso (O Comprador de Fazendas) e ainda passando por grande popularidade em todo o Brasil.
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Fatalidade foi arrasado pela crítica, considerado um dos grandes equívocos de Mário Civelli. Bresser Pereira (jornal O Tempo, de 13.01.1954), por exemplo, não tinha mais paciência com suas películas e foi curto e grosso:

"É possível. que Jacques Maret tenha razão, quando reclama por não lhe ter sido permitido assistir aos trabalhos finais de “Fatalidade”, que ele dirigiu e cenarizou para a Multifilmes. Realmente não tem cabimento fazer-se isso com o diretor de uma fita, a não ser por motivos muito especiais, pois são essas atitudes de produtores comercializados que tornaram o cinema um produto industrial despersonalizado, como qualquer outro.

Entretanto, depois de assistirmos a “Fatalidade”. quer-nos parecer que a ausência. de Maret nos trabalhos de montagem, sonorização, mixagem, etc., prejudicou muito pouco o filme. É claro que estas partes da fita não estão perfeitas, mas, levando-se em consideração unicamente o seu lado técnico somos obrigados a constatar que o seu maior defeito reside na fotografia, que ficou muito prejudicada nos interiores realizados fora do estúdio devido às naturais dificuldades de iluminação.

Falhas técnicas dessa ordem, porém, jamais condenaram um. filme, não podendo ser confundidas com as deficiências formais, que são de primordial importância. O que faz de “Fatalidade” um filmezinho de terceira categoria é a sua história superficial, melodramática e piegas, é seu roteiro sem contextura, falso, completamente ausente de qualquer realidade, embora pretenda narrar um drama humano, é a sua direção muitas vezes insegura e sem nenhuma inspiração. Enfim, o que torna esta película aborrecida e inexpressiva, quando não ridícula, é a sua história de novela de rádio, é o seu roteiro manquitolejante, é a sua direção sem vigor, ou seja, é o trabalho de Jacques Maret. É verdade que pelo menos em relação à história ele mesmo declarou que sua intenção era realizar um filme melodramático, “de acordo com o gosto do público”, mas isto não o justifica.

A parte melhor de “Fatalidade” é, indiscutivelmente, a interpretação. Angélica Hauff, Lisca Hayde e Guido Lazzarini tiveram desempenho bastante bom, principalmente se levar-mos em consideração a mediocridade do resto. Célia Helena e Jackson de Souza não acompanharam os primeiros, revelando a primeira insegurança, e o segundo, autossuficiência teatral. E como conclusão “Fatalidade” é mais uma produção de Mário Civelli e mais um mau filme."

Completando o ciclo, são realizados os outros filmes acima citados: Uma Vida para Dois (Armando Couto na direção; argumento de Sérgio Brito: Orlando Vilar, Liana Duval, Luigi Picchi, Jaime Barcelos, Valery Martins, Sérgio Brito, Ítalo Rossi etc. no elenco) e A Sogra (direção de Armando Couto; roteiro de Renato Tignoni a partir de um argumento de Alberto Dines; elenco contando com Maria Duval, Procópio Ferreira, Ludy Veloso, Waldemar Seyssel, Eva Wilma, Elísio de Albuquerque, Riva Nimitz, Herval Rossano entre outros). Para infelicidade de Civelli, ambos fracassam irremediavelmente nas bilheterias.

Posto que mais filmes estivessem em pleno andamento, com tantos fracassos seguidos, a Multifilmes entraria em 1954 com sua situação financeira deverasmente combalida. Mais um estúdio - tudo parecia demonstrar - estava à beira de fechar suas portas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Por favor, gostaria de saber como faço para ter acesso às fitas de filme da multifilmes. Vocês podem me mandar um email de contato?
O meu é baraldimj@gmail.com, meu nome é Maria José.

Obrigada