28.8.06

A AGONIA DO CINEMA PAULISTA

Mesmo tendo realizado 13 dos 38 filmes de 1955 (aí contabilizado o inacabado Três Destinos, uma rara incursão do ídolo teatral Sérgio Cardoso na sétima arte), o cinema paulista entra no novo ano agonizante e sem forças. Agora dono da Vera Cruz, o Banco do Estado de São Paulo não sabe o que fazer com sua valiosa propriedade, terminando por eleger o teatrólogo e cineasta Abílio Pereira de Almeida como Diretor Superintendente da companhia, visando a um futuro soerguimento dos estúdios. Mas, sem dinheiro e com desconfianças por todos os lados, Abílio quase nada poderia fazer a não ser tentar estruturar a companhia e elaborar uma nova estratégia de produção.
Com efeito, ao longo do ano, a Vera Cruz não consegue produzir nenhum filme (Eva no Brasil, um filme inexpressivo dirigido por Pierre Caron, um diretor francês de grande atividade em seu país nos anos 30 e 40, realizando filmes um pouco mais ousados à época, com um elenco bastante bom, mas incapaz de salvar o filme, encabeçado por Almeidinha, estreando no cinema, Emilinha Borba, Juanita Cavalcanti e pelo cômico Colé, foi filmado em seus estúdios, apesar de ser uma produção de uma companhia independente, a Françamérica Filmes), até que, afinal, Abílio parecia ter encontrado a solução salvadora: criar uma companhia paralela – a Brasil Filmes –, procurar solucionar a problemática questão que sempre afligiu o cinema brasileiro, a distribuição e modificar radicalmente o sistema de produção, realizando filmes com roteiros enxutos e bem elaborados, e, mais importante, de baixo orçamento, a exemplo do que faziam naquele instante a Maristela e a Multifilmes. Se daria resultados, só o futuro diria.

Acontece que a Multifilmes de Mário Civelli (substituído, após seu fracasso, por Plínio Assunção, filho do dono da companhia, Anthony Assunção) não poderia ser exemplo de nada, porquanto o problema era que, basicamente, nenhum de seus filmes anteriores fizera realmente sucesso e, nesse ano, estava na mais completa penúria, deteriorando-se a olhos vistos. A exemplo da Vera Cruz, também cede seus estúdios para um produtor independente, Jaime Prades (Lusa Filmes), que futuramente seria um dos produtores do épico El Cid, realizar um filme com Mazzaropi (1912 - 1981) – A Carrocinha –, já em seu caminho fulminante rumo ao estrelato.
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Exatamente nos moldes pensados pela Vera Cruz – uma produção modesta, mas conduzida com mão de ferro por Prades –, com direção de um eterno desconhecido, Agostinho Martins Pereira, argumento e roteiro de Walter George Durst (futuro adaptador de obras literárias para a televisão, entre elas Gabriela, de Jorge Amado e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa), e contando também no elenco com a belíssima Dóris Monteiro, secundada por Adoniran Barbosa, Modesto de Souza, Gilberto Chagas, Kleber Macedo e outros, o filme conta a história de Jacinto (Mazzaropi), contratado pelo prefeito da cidade de Sapiranga, Juca Miranda (Modesto de Souza), para comandar um carrocinha para capturar cães vadios soltos pela cidade. Só que, por detrás do gesto do prefeito, se esconde um plano ardiloso: quer se livrar definitivamente da cadela mais do que paparicada da esposa, que o desagradava profundamente.
Iniciando seu trabalho sob intenso apoio popular, Jacinto logo captura um cão vadio, pelo qual, entretanto, cai de amores, levando-o para sua casa, para desagrado de sua mãe, mas apoiado pelo irmão caçula. A partir daí, o filme centra sua atenção no trabalho de Jacinto. O problema maior é que, a princípio apoiado pela população, quando seu trabalho começa a ter resultados, todos se voltam contra ele ao saberem da captura de seus animais de estimação. Quando até o padre se revolta contra ele, Jacinto começa a soltar um por um os animais.

Porém, pondo em prática seu plano, o prefeito exige de Jacinto a captura da cadelinha da mulher, que foge para os arredores da cidade. Na tentativa de capturá-la, Jacinto e seu irmão caçula laçam é uma onça, conseguindo, a custo, escaparem do animal. Chorosa e desconsolada pela fuga da cachorra, enquanto recebe os afagos do marido, a mulher do prefeito é surpreendida pela chegada de Jacinto com a cadela sã e salva, para desagrado de Juca Miranda, que exige do chefe da carrocinha resultados em seu trabalho, que, entretanto, não sabe o que fazer. Até que, ao procurar por um passarinho de uma professora, que escapara da gaiola durante um passeio com seus alunos, Jacinto se depara com Ermelin da (Dóris Monteiro), que, cantando ao lado de seu cão, o deixa encantado e logo apaixonado.

Como não consegue cumprir com suas obrigações, Jacinto passa a dar novas funções à sua carrocinha, transportando porcos, móveis e outras coisas mais, dentre elas, a pedido do vigário, uma imagem de Santo Antônio; durante o trajeto de transporte do santo, a carrocinha atola em um lamaçal, fazendo com que Jacinto peça ajuda a um sitiante, Salvador (Adoniran Barbosa), morador próximo do local do acidente. E quem é que mora no sítio, filha de Salvador? Ela, Ermelinda, que, na sala, flerta com o mais do que tímido Jacinto.
Em determinado momento, ele é designado para chefe da torcida do clube de futebol local, o Brioso, logo na primeira partida, devido ao seu entusiástico incentivo, o time da cidade vence a partida, ensejando, à noite, a devida comemoração na sede do clube. Como em quase todos os seus filmes, essa é uma ocasião para Mazzaropi dar vazão a uma de suas paixões, o canto, entoando a canção Sereno, música dos compositores Elpídio dos Santos e Conde.

Incentivado pela mãe, Jacinto pede Ermelinda em casamento, fato que enseja mais um mal-entendido, na película, fazendo com que o fazendeiro persiga Jacinto com sua espingarda, atirando a esmo, em uma das cenas mais engraçadas do filme; tudo termina bem, após uma conversa entre pai e pretendente.
No entanto, para casar, Jacinto precisa de um aumento de salário, prontamente recusado pelo prefeito, irritado pelo fato de Jacinto ter devolvido a cadela vinda do sítio de Salvador à sua mulher, agora cheia de filhotes. O prefeito tem outra proposta para Jacinto: voltar a laçar cachorros, trabalhando por comissão. Necessitado, Jacinto realiza com êxito seu trabalho, mas, logo fica sabendo que o prefeito quer muito mais, quer a eliminação dos cachorros, o que deixa sua família horrorizada. A cidade também está em pé de guerra contra a nova investida de Jacinto contra os cachorros, a carrocinha sendo mesmo apedrejada pelo moleques da cidade. Sentindo que o prefeito está irredutível, Jacinto toma a decisão de levar os cães para o sítio de Ermelinda, que fica encantada em cuidar deles, mesmo com a desaprovação do pai.

Após várias peripécias, muita confusão, envolvendo o prefeito e sua obsessão em matar a cadela da esposa, o sumiço misterioso do cachorro mascote do time, a revolta dos torcedores do time que destroem a carrocinha, a entrada da noiva na igreja, ao mesmo tempo em que os cachorros entram na cidade vindos do sítio, a retirada à força do noivo da igreja, salvo exat amente pela chegada dos cães à pracinha, o prefeito presenteando Jacinto com as devidas comissões, os noivos recebem os cumprimentos dos convidados, sendo felizes para sempre.

Mazzaropi e Adoniran Barbosa no filme A Carrocinha.
















Dóris Monteiro canta Céu sem Luar, cena do filme A Carrocinha.



sucesso do filme de nada valeu à Multifilmes; apesar de milionário, Assunção não estava mais disposto a investir em sua deficitária companhia. Desta forma, o estúdio não consegue uma sobrevida, fazendo com que seus artistas e técnicos fossem paulatinamente dispensados e seus equipamentos, vendidos. Mais uma aventura cinematográfica paulista chegava a um fim melancólico.

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Para os lados da Maristela, os tempos até que prenunciavam dias melhores; assim que os estúdios da Kino Filmes lhe são devolvidos, a companhia – diga-se Marinho Audrá, agora senhor absoluto dos negócios da família –, entra no que se convencionou chamar de sua terceira fase, que terminaria por ser a melhor e a mais dinâmica em sua história, fruto de uma nova política implantada por Audrá para a realização dos filmes dos estúdios: as co-produções. Isso significava que a Maristela, em suas novas produções, entraria com a infra-estrutura – os estúdios propriamente ditos e equipamentos – e com seus técnicos altamente especializados, enquanto os sócios, com o dinheiro. Ao mesmo tempo, Audrá tinha em mente, tal como todos os outros executivos das suas concorrentes paulistas, realizar filmes de baixo orçamento, enredo “amarrado” e com qualidade, ou seja, tudo que todos queriam. Outra coisa que mudaria era a distribuição dos filmes: uma nova companhia distribuidora entrava em cena, a Columbia Pictures, que substituiria a UCB de Luís Severiano Ribeiro Jr. nessa nova fase. Magia Verde seria o primeiro filme a ser distribuído pela companhia norte-americana.

Fruto de uma parceria com o produtor italiano Leonardo Bonzi, roteiro de Alfredo Palácios, fotografia em cores de Mário Craveri, narração de Waldir Oliveira, direção de Gian G. Napolitano e contando no elenco com Solano Trindade e o Teatro Popular Brasileiro, Magia Verde na verdade tinha sido produzido no período 1952/1953, apesar de somente ter sido distribuído nesse ano de 1955. Seria um documentário que objetivava mostrar um Brasil exótico e exuberante, próprio para o consumo das plateias internacionais. Como co-produtora e com direitos de distribuição da fita em solo brasileiro, seria de responsabilidade da Maristela, além do fornecimento da infra-estrutura e da equipe técnica, as despesas com as cópias (10 no total), com o processo de narração em português, com a publicidade e com o lançamento.
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Como os mais diversos problemas ocorreram durante a pré-produção – a parte do orçamento que caberia à empresa brasileira foi considerado por Benjamim Finemberg, seu principal executivo, acima das possibilidades da empresa –, a Maristela praticamente desistiu do projeto, ficando por conta de Bonzi praticamente todo o custo da produção, que terminou por ficar completamente diferente do que se almejava, segundo depoimento de Marinho Audrá tempos depois. Apesar de ter feito certo sucesso no circuito internacional (foi premiado, inclusive, no festival de Cannes em 1953, como um filme italiano), o filme fracassou redondamente no Brasil. Alguns historiadores nem o listam entre as produções realizadas pelo cinema brasileiro (Salvyano de Paiva Cavalcante entre eles). Tempos perigosos pareciam se aproximar dos estúdios de Jaçanã.


A primeira fita realmente produzida nessa terceira fase da Maristela foi Carnaval em Lá Maior, co-produzida com a Rádio Record de São Paulo, que aproveitaria um acordo com a Rádio Nacional – então dona do maior e mais famoso elenco de cantores do rádio brasileiro – em que se estabeleciam duas apresentações anuais conjuntas de seus artistas, fato que seria aproveitado para a realização do filme. Efetivamente, com uma história passa da nas dependências da emissora paulista (consta que ninguém recebeu cachê para participar do filme, à exceção de Walter D’Ávila), Carnaval em Lá Maior conta com um grupo de cantores estelares: Aracy de Almeida, Jorge Goulart, Nora Ney, Isaurinha Garcia, Ataulfo Alves, Carlos Galhardo, Cascatinha e Inhana, Alvarenga e Ranchinho, Nelson Gonçalves, Elisete Cardoso, Inesita Barroso e diversos outros.
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Dirigido pelo lendário Adhemar Gonzaga, dos estúdios Cinédia, baseado em argumento de Miroel Silveira e roteiro de Osvaldo Moles e com um elenco encabeçado por Walter D’Ávila, Randal Juliano, Renata Fronzi, Adoniran Barbosa, Genésio Arruda, Sandra Amaral e Ester de Souza, o filmes fracassou espetacularmente, sendo que todas as grandes publicações brasileiras, a exemplo da revista O Cruzeiro, solenemente ignoraram o filme, não recebendo nenhuma crítica ou análise mais apurada.
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A revista Anhembi, de setembro de 1955, faz um comentário, não uma crítica realmente, azedo e demolidor sobre o filme, tolamente preconceituoso em sua essência por colocar a culpa da indigência da produção paulista no mau gosto das camadas populares, fato, aliás, recorrente no pensamento de vários intelectuais brasileiros:

“Em sã consciência, é possível chamar de cinema brasileiro a essas peças de aventura? Porque, em caso afirmativo, se Carnaval em Marte ou Carnaval em Lá Maior for cinema brasileiro, então eu confesso que sou contra o cinema brasileiro... O que se tem feito com grande energia... é explorar o mau gosto das massas, incentivando os seus instintos primários, iludindo e confundindo, baixando o cinema para o público, ao invés de elevar o público para o cinema.”

Para a terceira e última produção desse ano de 1955, Marinho assinou um contrato de co-produção com Roberto Acácio – Diretor Comercial da A
rtistas Associados Filmes Ltda. – que tinha tudo para dar certo: a realização do filme
Mãos Sangrentas, com o grande astro mexicano de fama internacional, Arturo de Cordoba (1908 – 1973). A companhia entraria com os estúdios , a parte técnica e com alguns de seus artistas contratados, devendo ficar com 22% das receitas obtidas pela fita no Brasil, Europa e Oriente. Obviamente a pa rte da arrecadação mais apetitosa – os mercados da maior parte dos países latino-americanos (onde Córdoba era um astro popularíssimo) e norte-americanos – ficaria nas mãos dos outros parceiros. Do total oado para o filme (CR$ 2.400.000,00), a Maristela entraria com CR$ 500.000,00, além do estabelecimento em contrato da realização de outra película nos mesmos moldes e condições e com o mesmo Arturo de Cordoba. O mais vantajoso para Audrá era que todas as despesas durante as filmagens com transporte da equipe, alimentação, moradia e até o seguro com os equipamentos e do pessoal envolvido na produção da fita seriam de responsabilidade da Artistas Associados.

Pioneiro na utilização de técnicas industriais na realização de filmes no Brasil, Mãos Sangrentas seria a primeira película a ser realizada por Carlos Hugo Christensen (1914 - 1999) no Brasil, não obstante já ter dirigido cerca de 30 filmes na Argentina, seu país de origem, e em outros países latino-americanos. O elenco foi completado com Tônia Carrero, Carlos Cotrin, Heloísa Helena, Sadi Cabral (que, também, foi o responsável pelos diálogos), Lisete Barros, Jackson de Souza, Lídia Matos e outros mais. Como curiosidade, diversos artista de renome participaram da dublagem da fita, dentre eles Fernanda Montenegro, Dionísio Azevedo, Rodolfo Mayer e Jurema Magalhães.

O argumento de Pedro J. Vignole, baseado em fatos reais, conta a história de uma turma de prisioneiros que consegue escapar do presídio localizado na ilha de Anchieta em São Paulo, conseguindo atravessar para o estado, se embrenhando na luxuriosa e perigosa mata atlântica, sempre perseguida pela polícia. A ação se concentra então na perseguição dos fugitivos até a sua definitiva capitulação.

Apesar de praticamente ter sido ignorado pela grande imprensa (a revista O Cruzeiro nem se dignou a resenhar o filme, limitando-se a estampar uma foto de Arturo de Córdoba), a produção – que fez razoável sucesso no Brasil (sendo também vendido para diversos países como Israel e Japão) - impressionou o público da época por sua violência e crueza até então desconhecidas no Brasil e, por suas qualidades técnicas, foi escolhida para representar o Brasil no Festival de Veneza, além de ter ganhado os prêmios Saci de Produtor para Roberto Acácio e Melhor Ator Coadjuvante para Gilberto Martinho. Christensen também foi laureado como Melhor Diretor do ano no Festival de Cinema do Rio de Janeiro.

Arturo de Cordoba, no filme Leonora dos Sete Mares.

















Como parte do acordo entre o artista mexicano, Roberto Acácio e Audrá, assim que terminaram as filmagens de Mãos Sangrentas, iniciaram-se os entendimentos para a produção do que seria o segundo filme conjunto do trio, Leonora dos Sete Mares (a ser filmado no ano seguinte), com enredo baseado em peça do teatrólogo Pedro Bloch.

Diante de um irredutível Roberto Acácio, Marinho Audrá prontamente recusou o argumento apresentado, convicto de que o filme não teria a mínima chance de fazer sucesso no Brasil, talvez já calejado com tantos fracassos na Maristela. Como não houve acordo, Acácio aceitou vender sua parte no filme anterior para Audrá por CR$ 4.000.000,00 (quantia que daria para que ele filmasse a história de Bloch), partindo Audrá para uma nova produção, o policial Quem Matou Anabela?Mas, isso ficaria para 1956.

Ironicamente, não foi nenhuma produção dos estúdios paulistas que ganhou o prêmio Saci de Melhor Filme do ano. A premiação foi para Armas da Vingança, uma produção independente de Roberto Acácio/Cinematográfica Inconfidência, um melodrama de baixa qualidade que conta a história de uma garota comprometida com um jovem fazendeiro, mas que, por questões familiares, termina por se casar com o irmão do noivo, passando a ser desprezada por ele. Com a morte do marido, a tarefa da moça é voltar a conquistar o antigo pretendente. O filme, interpretado por Hélio Souto, Luigi Picchi, Vera Nunes e Aurora Duarte, ganhou ainda os Sacis de Melhor Diretor (para Carlos Coimbra), Melhor Ator (Luigi Picchi), Melhor Fotografia (Konstantin Tkaczenko) e Melhor Musica (Gabriel Migliori).

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