14.1.07

"DAQUI NÃO SAIO: O PROTESTO DILUÍDO

O carnaval de 1950, um dos melhores dos últimos anos, deixou uma plêiade de clássicos, alguns deles fazendo sucesso até hoje. Apesar de os cantores com mais nome dividirem seus repertórios carnavalescos entre sambas e marchas, estas últimas predominam em número de gravações, sendo as preferidas, principalmente, pelos cantores iniciantes e pelos diletantes.


Quatro sambas dominaram esse carnaval: Nega Maluca, Coroa do Rei , Se é Pecado Sambar e A Lapa. Poderíamos também incluir General da Banda, exaustivamente tocada e cantada, que, entretanto, fora lançada no carnaval de 1949. A grande surpresa deste carnaval foi a pouca repercussão do excelente samba Boca Rica, de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, gravado por Emilinha Borba, principalmente depois do sucesso alcançado pela cantora no carnaval do ano findo.
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Nega Maluca, um samba-batucada de Fernando Lobo e Evaldo Rui, fora composto, originalmente, como um baião, transformado em samba por sugestão de Francisco Alves. Terminou por ser gravada por Linda Batista e foi um triunfo na voz da cantora, que a interpretou com a garra de uma iniciante, talvez já pressentindo o início de seu declínio popular. Foi a mais cantada e a mais executada nos bailes carnavalescos e nas rádios, acabando por se tornar a grande sensação do carnaval de 50, vencendo o concurso oficial da Prefeitura do Distrito Federal:
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"Tava jogando sinuca
Uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu
Não senhor!
Toma que o filho é seu!
Não senhor!
Guarde o que Deus lhe deu
Não senhor!"


Zé Renato e Roberta Sá interpretando Rebolar/Nega Maluca.


Coroa do Rei, uma sátira às "majestades" que pululavam por todo o Brasil (Rei da Voz, Rei do Rádio, Rei do Baião, Rainha do Rádio, Rainha do Chorinho, Rainha do Carnaval etc.), foi composta por Haroldo Lobo e David Nasser, uma dupla acostumada com êxitos, fosse no carnaval ou fora dele. David Nasser, polêmico jornalista de direita, e um razoável letrista de músicas, por exemplo, compunha todos os ritmos imagináveis, indo desde o fox-trot (Tudo em Vão), passando pelo tango (Hoje Quem paga Sou eu), partido-alto (Candeeiro), samba (Chorei Quando o Dia Clareou), bolero (Esmagando Rosas), samba-canção (Francisco Alves), marchinha (Confete) e vários outros. Seus parceiros mais constantes eram Alcir Pires Vermelho, Herivelto Martins e Benedito Lacerda..

O outro parceiro, Haroldo Lobo, carioca da gema (1910 - 1965), merece uma menção especial por ser um compositor muito especial, na realidade, um artista danado de bom, mormente no período carnavalesco. 

Francisco Alves interpretando Confete.














Já deu sorte quando nasceu em uma família onde se respirava música. Seu pai,Quirino Lobo, era um flautista de mão cheia e chegado num violão; e seu irmão, Osvaldo Lobo, compositor e baterista de primeira. Muito cedo, Haroldo começa sua carreira de compositor, ao compor, já aos 13 anos, sambas para o Bloco do Urso. Mas tinha que trabalhar. Vai ser guarda na polícia de vigilância, indo depois ser operário na tecelagem da América Fabril, onde fizera seus primeiros estudos, inclusive, de teoria musical e solfejo, o que não era pouca coisa. 



No início dos anos trinta, ganha de seus amigos músicos, que frequentavam a noite carioca, o estranho apelido de "Clarineta", pelo fato de cantar no exato tom desse instrumento musical. Assim, Haroldo ia levando a vida, até que, em 1934, consegue realizar sua primeira gravação, a música Metralhadoras, onde faz alusão à revolução constitucionalista. Seus parceiros nesta primeira música foram o lendário Donga (autor do primeiro samba gravado, Pelo Telefone) e Luís Meneses. Aí, ele não para mais. Nesse mesmo ano, Aurora Miranda lança, pela Odeon, De Madrugada, composta por ele em parceria com o Maestro Vicente Paiva, sucesso razoável, obscurecido pelos grandes êxitos alcançados pela cantora nesse ano, Se a Lua Contasse (Custódio Mesquita) e Cidade Maravilhosa (André Filho).


Martinho da Vila interpretando Pelo Telefone (Donga).







Aurora Miranda e André Filho interpretando Cidade Maravilhosa.





Até que Patrício Teixeira grava, em junho/37, para o carnaval de 1938, o samba Juro, dele e de seu principal parceiro, Milton de Oliveira, a quem conhecera no Café Nice, e já com mais de 100 músicas gravadas. É dele, por exemplo, o espetacular sucesso Não Tenho Lágrimas ("Quero chorar/ não tenho lágrimas/ que me rolem na face/ para me socorrer/ se eu chorasse/ talvez desabafasse/ o que eu sinto no peito/ eu não posso dizer"), com dezenas de gravações, inclusive uma do mito norte-americano, Nat "king" Cole. Apesar dessa gravação, os executivos da RCA Victor preferem lançá-la novamente com outro cantor, J. B. de Carvalho (gravada em agosto/37), obtendo grande sucesso. Nesse concurso, Juro concorreu com verdadeiras preciosidades da música popular brasileira: Camisa Listrada, do gigante Assis Valente; Yes, Nós Temos Bananas, de Braguinha e Alberto Ribeiro;
Não Tenho Lágrimas, de Milton de Oliveira e Max Bulhões; Pastorinhas, de Braguinha e Noel Rosa; Periquitinho Verde, de Nássara e Sá Roris; Abre a Janela, de Arlindo Marques e Roberto Roberti; Touradas em Madrid, de Braguinha e Alberto Ribeiro; Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e dezenas de outras. E para surpresa geral, a música terminou sendo premiada no concurso de carnaval promovido pela prefeitura do Distrito Federal, abocanhando o primeiro lugar na categoria samba (As Pastorinhas foi escolhida a melhor marcha).

Musical em animação com clássicos da música popular brasileira, dentre elas
Yes, Nós Temos Banana.



 

Aurora Miranda e Bando da Lua interpretando As Pastorinhas.




Carmen Miranda e Bando da Lua interpretando Touradas em Madrid.














Carmen Miranda interpretando Camisa Listrada/ (Assis Valente).














Francisco Alves interpretando Aquarela do Brasil (Ary Barroso).















Patrício Teixeira interpretando Não Tenho Lágrimas.














Aliás, nesse concurso, aconteceram coisas curiosas. Primeiramente, Camisa Listrada fora considerada a grande vencedora, seguida de Olá, Seu Nicolau, de Paulo Barbosa e Osvaldo Santiago, Juro, ficando em terceiro lugar, que, para Haroldo já era o máximo. No entanto, logo o concurso foi anulado, segundo a imprensa, porque o presidente da comissão julgadora não comparecera ao julgamento. Todos, obviamente, especularam que tudo era armação. O verdadeiro motivo seria que muitos perdedores de peso, com acesso à mídia, iniciaram uma campanha contra a vencedora no quesito marcha, a música Touradas em Madrid, de João de Barro e Alberto Ribeiro, que, segundo eles, seria um passo doble, ritmo espanhol, portanto, ferindo o tal regulamento.

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Realizado novo concurso, Pastorinhas, de Noel Rosa, ganha na categoria marcha, e, quando da escolha do melhor samba, Juro pula espetacularmente do terceiro para o primeiríssimo lugar, imediatamente colocando o nome de Haroldo Lobo ao lado dos bambas do pedaço. Para este, porém, só de concorrer com tantos pesos pesados, e ser premiado, já era o máximo, além de que Juro permite a Haroldo Lobo um reconhecimento popular imediato:

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"Juro
Nunca mais tive alegria
Desde aquele dia
Em que te abandonei
Eu te juro que chorei
Quando me vi sozinho
Sofri tanto
Sem o teu carinho
Chorei
Eu te juro que chorei
Ela sabia que eu ia sofrer
Tanto assim
Ela gostava de mim
Eu sabia e não liguei
Ela não quer mais me ver
Nem quer me perdoar
Eu me contento em chorar
Pois choro e nem sei."
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Roberto Silva interpretando Juro.
















Porém, seu primeiro grande sucesso mesmo foi Miau, Miau, música gravada por Aracy de Almeida, sua mais fiel intérprete nos primeiros anos de carreira, para o carnaval de 1939, inaugurando uma galeria de títulos musicais com animais como tema:

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"O gato e a gatinha
Sempre vão pro meu quintal
Fazer miau, miau, miau
E levam a noite toda
Nesse choro infernal
Miau, miau, miau
O gato até parece
Que conhece a nossa gíria
Começa logo com lero-lero
Oferece vestidos de seda à gatinha
E ela zangada responde:
Eu rasgo, não quero."

Aracy de Almeida interpretando Miau Miau.














Haroldo sabia muito bem, porém, que, para alcançar sucesso com música, teria que se aproximar das pessoas apropriadas. E logo, lá está ele frequentando o Café Nice, o Amarelinho, o Café Chave, o Teatro Carlos Gomes e outros locais onde os artistas eram encontrados. Logo, também, trava oportunos conhecimentos com Vicente Paiva, Luiz Meneses, Wilson Batista (claro!), J. Cascata, Benedito Lacerda, Paquito, Nássara e muitos outros.

Em 1940, ano de Malmequer (Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar), Acertei no Milhar (
Wilson Batista e Geraldo Pereira), Curare (Bororó), O Samba da Minha Terra (Dorival Caymmi), Dama das Camélias (Braguinha e Alcir Pires Vermelho), Upa, Upa (Ary Barroso), Velho Realejo (Custódio Mesquita e Sadi Cabral), ele estoura com Passarinho do Relógio, também chamada Cuco, que Aracy de Almeida gravara maravilhosamente bem para o carnaval desse ano, propiciando-lhe uma das coisas das quais ele mais necessitava: prestígio. Também colaborara para o sucesso da música, além de suas evidentes qualidades musicais, um fato inusitado: o relógio cuco, então gozando de imensa popularidade, muitas vezes dava defeitos, com problemas nas engrenagens, fato que os fazia disparar exatamente como retratado pela música:
"Cuco! Cuco! Cuco!
O passarinho do relógio está maluco
Ainda não é hora do batente
E ele fica impertinente
Acordando toda gente
Fazendo Cuco, cuco, cuco.
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Eu pego às oito e quarenta e cinco
E levanto às sete
Pra tomar banho e café
Mas, quando são mais ou menos três e cinco
Ele começa: cuco, cuco, cuco
E só termina quando estou de pé."

Aracy de Almeida interpretando Cuco.
















Rosa Passos interpretando Curare.




Elsa Soares interpretando Samba da minha terra.














Sílvio Caldas interpretando Velho Realejo.




 










Homenagem a Greta Garbo com a música Dama das Camélias (Braguinha/Alcyr Pires Vermelho), interpretada por Caetano Veloso.






Mas, bom mesmo para o compositor foi o ano de 1941. Haroldo lança, nada mais, nada menos, do que 12 músicas para o carnaval desse ano. Dentre elas, destacam-se O Passo do Canguru, "(Todo mundo tem seu passo/ é gato, é rato, é urubu (...)", outra ótima gravação de Aracy de Almeida, gravada até nos Estados Unidos.


O Passo do Canguru, com Aracy de Almeida

E mais: O Bonde do Horário já Passou
(gravação de Patrício
Teixeira), Essa Vida Não é Sopa, também gravada por Patrício Teixeira, onde Haroldo compõe pela primeira vez com Wilson Batista; e o mega-sucesso, Alá-lá-ô, dele e de Nássara, arranjos de Pixinguinha e magnificamente cantada por Carlos Galhardo. Foi o maior sucesso carnavalesco de Haroldo Lobo de todos os tempos:

"Alá-lá--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Mas que calor-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Atravessamos o deserto do Saara
O sol estava quente
E queimou a nossa cara
Alá-lá-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô.
Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar:
Alá, Alá, Alá, meu bom Alá
Mande água pra Ioiô
Mande água pra Iaiá
Alá, meu bom Alá".
Carlos Galhardo interpretando Alá-lá-ô.
















Haroldo Lobo, depois deste esplendoroso sucesso, não para mais. Compõe praticamente todo tipo de música, carnavalescas, de meio de ano, músicas juninas etc. Além do mais, aprende com seu parceiro, Milton de Oliveira, a trabalhar suas músicas junto aos formadores de sucessos nas rádios. Milton, inclusive, era acusado de sabotar outras músicas em proveito próprio. Haroldo, que divulgava suas músicas na zona sul, usava os guardas municipais (ele era uma espécie de comissário, fiscal dos guardas) que prestavam serviços nos bailes de salão, para pedirem aos maestros que executassem tais e tais músicas, de preferência aquelas de autoria de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. Assim, os sucessos vêm de roldão: Emília (1942), Alô, Padeiro (1943), gravação de Déo, o "Ditador de Sucessos", ...E o 56 Não Veio e Rosalinda (1944), Hilda, O Alberto Bronqueou e Cabo Laurindo, ambas de 1945.



Cabo Laurindo, feita em parceria com Wilson Batista (assim como Alô, Padeiro e ...O 56 Não Veio), e gravada por Jorge Veiga com o conjunto de K-ximbinho, foi composta quando do retorno das tropas brasileiras que lutaram contra o nazi-fascismo na Europa, e é clássica pelas corajosas palavras que saem dos versos de Wilson Batista, um dos compositores mais engajados na questão da denúncia das nossas mazelas sociais, apesar de os historiadores de nossa música popular dizerem que ele era um compositor despolitizado. A questão do poder é claramente levantada na música, que conta a história de um favelado, provavelmente negro, que brilhara na Itália lutando na guerra e agora, com poder, promovido a cabo, que, no morro, significa autoridade, pode por em prática tudo aquilo que sempre defendera, entre elas, a "igualdade" e, tanto, que logo em seguida Wilson, em tom previdente, comenta que "(...) dizem que lá no Morro/ vai haver transformação (...)." Obviamente, porque, se Laurindo defendia a igualdade, agora que pode, ele vai tentar implantá-la. Apesar do narrador da letra, oferecer seu apoio, dizendo-se "(...) à disposição", e chamá-lo de "camarada" (tratamento comum entre os comunistas), só não fica claro, de que meios Laurindo lançaria mão, se realmente ele pretendesse implantar essa igualdade. Apesar de sua idealização, Cabo Laurindo é uma música eterna, e só ela bastaria para consagrar qualquer compositor:

"Laurindo voltou
Coberto de glória
Trazendo garboso no peito
A Cruz da Vitória
Ôi, Mangueira, Salgueiro,
Estácio, Matriz, estão agindo
Para homenagear
O bravo cabo Laurindo.

As duas divisas que ele ganhou, mereceu
Conheço os princípios que Laurindo
Sempre defendeu
Amigo de verdade
Defensor da igualdade
Dizem que lá no morro
Vai haver transformação
Camarada Laurindo
Estamos à sua disposição."
Jorge Veiga interpretando Cabo Laurindo.

















Ao longo dos anos quarenta, Haroldo continua sua saga de sucessos: Saem de sua fornalha centenas de músicas, a maioria se tornando grandes sucessos, sendo impossível elencá-las pela quantidade exagerada de títulos. Contando as centenas de músicas feitas por ele, não seria exagerado dizer que, seguramente, ele está entre os compositores com mais músicas em sua bagagem. Em 1946, além de ganhar novamente o concurso oficial do carnaval patrocinado pela prefeitura do Distrito Federal com a marchinha Espanhola, lançamento de Nelson Gonçalves, parceria com Benedito Lacerda, lança também com bastante sucesso Vou Sambar em Madureira, feito em parceria com Milton de Oliveira. Em 1947, entra em uma polêmica com a censura, por causa de sua música Eu Quero É Rosetar, ganhadora do carnaval, mas tendo os discos recolhidos em nome da moral e dos bons costumes. Passo da Girafa, de 1949, gravação de Aracy de Almeida, foi outro de seus grandes sucessos.
 


Nelson Gonçalves interpretando Espanhola.








Então, voltando ao carnaval desse ano, Coroa do Rei, (David Nasser e Haroldo Lobo), interpretada por Dircinha Batista, aliás, uma das "majestades" criticadas, conquanto a cantora já ostentara o título de Rainha do Rádio, acabou por se tornar também grande sucesso popular, tirando o segundo lugar no concurso oficial:



"A coroa do rei
Não é de ouro nem de prata
Eu também já usei
E sei que ela é de lata.
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Não é de ouro nem nunca foi
A coroa que o rei usou
É de lata barata
E olhe lá…borocochô.
Na cabeça do rei andou
E na minha andou também
É por isso que eu digo
Que não vale um vintém."
 
Dircinha Batista interpretando Coroa do Rei.




Se Marlene precisasse de um sucesso para reafirmar sua condição de Rainha do Rádio, o samba de Manoel Sant’Ana Se é Pecado Sambar caiu-lhe de para-quedas. Talvez tenha sido o samba mais bonito do carnaval de 1950, ficando em terceiro lugar no concurso oficial. À bela melodia, uniu-se uma letra inteligente e maliciosa, que logo conquista os foliões do Brasil inteiro:



"Se é pecado sambar
A Deus eu peço perdão
Eu não posso evitar
A tentação
De um samba dolente
Que mexe com a gente
Fazendo endoidecer
É um tal de me pega
Me solta e me deixa
Sambar até morrer."

 

Marlene interpretando Se é Pecado Sambar.






 










 

Francisco Alves, o Rei da Voz, foi o intérprete do sucesso em que se transformou A Lapa, de Benedito Lacerda e Herivelto Martins. Letra e melodia se casam de maneira harmônica e coesa, neste samba que se tornou um hino em louvor do velho reduto da boêmia carioca. Por ironia do destino, e ao contrário do que diz a letra, a Lapa nunca mais foi a mesma, começando, à essa época, sua decadência definitiva:

"A Lapa
Está voltando a ser a Lapa
A Lapa
Confirmando a tradição
A Lapa
É o ponto maior do mapa
Do Distrito Federal
Salve a Lapa!
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O bairro das quatro letras
Até um rei conheceu
Onde tanto malandro viveu
Onde tanto valente morreu.
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Enquanto a cidade dorme
A Lapa fica acordada
Acalentando quem vive
De madrugada."

 Francisco Alves interpretando A Lapa. 
















Para esse carnaval, Emilinha escolhe as marchas Escocesa (Dunga e Vicente de Abreu), e Casca de Arroz (Arlindo Marques e Roberto Roberti) e os sambas Eu Já Vi Tudo (Peterpan e Amadeu Veloso), em que a cantora canta em dueto com a rival Marlene, claramente um golpe publicitário da indústria cultural, e Boca Rica de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos.


Geraldo Pereira, mineiro de Juiz de Fora, a essa altura, já com 34 anos, é um compositor respeitado e com muito chão rodado. Nem bem tinha 12 anos, vai, a chamado do irmão, Manuel Araújo, para o Rio de Janeiro, indo direto para Mangueira, onde o irmão morava com a mãe de ambos e uma filha. Iria cuidar delas, enquanto o irmão trabalhava.


Tão logo completa o curso primário, Geraldo se casa, tentando seu sustento com biscates e trabalhando como atendente de botequim. Tinha ele, porém, um problema: o vício. Era chegado numa branquinha, coisa comum na família, conquanto a mãe, quando bebia, aprontava todas no meio da rua; a boemia o atraía de forma irresistível, começando a chifrar a mulher abertamente.


Só que, repentinamente, ele some de mapa. Ninguém sabe, ninguém viu. 
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O que tinha acontecido mesmo, segundo as lendas musicais, é que, como era disputado pela cabrochas do morro, devido a seu belo porte, 18 anos de idade, e maneira de mineiro come quieto, Geraldo aprontara uma das suas com mulher de casa posta. O dono da china, com fama de bravo no morro, dera-lhe 24 horas para desaparecer, sendo prontamente obedecido por Geraldo, que foi se estabelecer - onde? -, na Lapa, é claro.


Em 1939, tendo como profissão dirigir um caminhão de lixo, através de um obscuro compositor, Nelson Teixeira, conhece Roberto Paiva, que, cantando na Mayrink Veiga e gravando na Odeon, atravessava fase de alta popularidade, Os dois lhe mostram um samba, Se Você Sair Chorando, que termina sendo gravado por ele, participando do famoso concurso do carnaval de 1940 promovido pela Prefeitura Federal, cuja ganhadora foi Ó Seu Oscar!, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, o maioral, o bamba do pedaço. A música de Geraldo e de seu parceiro não faz feio e fica entre as vinte classificadas além de alcançar certa notoriedade.

Roberto Silva interpretando Ó Seu Oscar!.



Pouco depois, Geraldo é surpreendido pelo convite de Wilson Batista para comporem juntos. O resultado: a maravilhosa Acertei no Milhar, de 1940, gravada por Moreira da Silva e um de seus primeiros grandes sucessos (segundo alguns, isto não seria verdade, a música sendo somente de Wilson). Morengueira, também, gravaria, para o carnaval de 1941, outra música de Geraldo, Olhe a Cara Dela.

Coral UNIFESP interpretando Acertei no Milhar.


Ainda em 1941, conhece Ciro Monteiro, que seria seu intérprete mais importante, além de se constituir em amigo e protetor, percebendo, de imediato, malandro que era, a ingenuidade daquele menino ainda, a despeito de sua vida bastante conturbada. Logo grava Acabou a Sopa, a primeira de uma série de músicas de Geraldo gravadas pelo afamado sambista.

Com a fama, Geraldo começa a ser gravado por grandes nomes da música popular brasileira, Aracy de Almeida, Isaurinha Garcia, Roberto Paiva, Moreira da Silva, Ciro Monteiro, Odete Amaral, Anjos do Inferno, Quatro Ases e Um Coringa e vários outros, sendo parceiro de diversos compositores, destacando-se Augusto Garcez (Lembra-te Daquela Zinha), Marino Pinto (Falta de Sorte), J. Portela (Quando ela Samba), Moreira da Silva (A Voz do Morro), Ary Monteiro (Ai, Que Saudade Dela), Djalma Mafra (Jamais Acontecerá) etc.

Em 1944, os Anjos do Inferno gravam Sem Compromisso, samba de sua autoria e de Nelson Trigueiro (que ganharia notoriedade quando gravado por Chico Buarque em 1974, participando do aclamado LP Sinal Fechado), ao mesmo tempo em que Geraldo alcança seu maior sucesso, Falsa Baiana, composição que teria sido baseada em um fato curioso: ao se deparar com a mulher de Roberto Martins vestida de baiana, mesmo ela não sabendo sambar, quer dizer uma falsa baiana, Geraldo logo bola a música, que, gravada por Ciro Monteiro, se constituiu em um dos maiores êxitos do grande sambista e de Geraldo Pereira. A música, muito avançada em termos melódicos, é considerada um marco da música popular brasileira:

"Baiana que entra na roda
Só fica parada
Não canta, não samba
Não bole nem nada
Não sabe deixar a mocidade louca.


Baiana é aquela
Que entra no samba
De qualquer maneira
Que se mexe, remexe
Dá nó nas cadeiras
E deixa a moçada com
Água na boca.


A falsa baiana
Quando cai no samba
Ninguém se incomoda
Ninguém bate palma
Ninguém abre a roda
Ninguém grita "oba,
Salve a Bahia, Sinhô!"


Mas a gente gosta
Quando uma baiana
Quebra direitinho
De cima em baixo
Revira os olhinhos
E diz: "Eu sou filha
De São Salvador"."


Ciro Costa interpretando Falsa Baiana.
















Geraldo alcança outro expressivo êxito em 1945, quando os Anjos do Inferno gravam, na RCA Victor, o samba Bolinha de Papel, que, como Falsa Baiana, se tornaria um clássico da bossa nova ao ser regravada por João Gilberto:


"Só tenho medo da falseta
Mas adoro a Julieta
 
Como adoro Papai do céu.
Quero seu amor, minha santinha
Mas, só não quero que me faça
De bolinha de papel.

Tiro você do emprego
Dou-lhe amor e sossego
Vou ao banco

Tiro tudo pra você gastar
Posso, ó Julieta
Lhe mostrar a caderneta

Se você duvidar."

 

Anjos do Inferno interpretando Bolinha de Papel (Geraldo Pereira).




 










Após 1948, Geraldo se depara com grandes dificuldades, tanto na vida pessoal quanto em sua carreira. Primeiramente, por causa de Chegou a Bonitona
música que deveria ser gravada na RCA Victor pelo grande amigo Ciro Monteiro. Alegando falta de matéria prima, a gravadora, entretanto, havia suspendido todas as gravações por determinado período. Geraldo, ao invés de esperar que os problemas da gravadora fossem sanados, e, além do mais, precisando de dinheiro, entrega a música a Blecaute para ser gravada na Continental. Aborrecido, Ciro para de falar com Geraldo por bastante tempo.


Para complicar ainda mais as coisas, o samba e os sambistas passam, nesse momento, por um período de grandes turbulências, devido à concorrência da música norte-americana, que começava a invadir o Brasil com força avassaladora, e de suas similares brasileiras, aqui representadas por Dick Farney, Os Cariocas, Lenita Bruno, Lúcio Alves etc., além de ter que enfrentar o baião e o bolero, que, pouco tempo antes, começaram a dominar, irresistivelmente, o gosto musical do brasileiro.
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Com isso, Geraldo passa por um período de declínio, não obstante conseguir gravar, de 1948 a 1950, diversas músicas, Que Samba Bom, Mexe, Mulher e Perdi Meu Lar, compostas com Arnaldo Passos, Chegou a Bonitona e Brigaram para Valer, as duas em parceria com J. Batista, e Sem Destino feita com Oldemar Magalhães.


Black Out interpretando Chegou a Bonitona (Geraldo Pereira/J. Batista).















Nesse último ano, Emilinha escolhe um samba de sua autoria - Boca Rica - para fazer parte de seu repertório carnavalesco.


Emilinha depositava grandes esperanças em Boca Rica. Geraldo e Arnaldo Passos fizeram um samba sincopado, com bela melodia e uma letra bastante interessante, mas que, no entanto, não agradou ao grande público, terminando por ser praticamente esquecida pelos divulgadores dos sucessos carnavalescos:






"Pessoal, vamos beber
Pra dona da casa não se aborrecer
Vamos agradar a dona Chica

Pra gente não perder
e
ssa boca
rica.



Comida a noite inteira
Bebida a toda hora
Mulheres de baiana

Com barriguinhas de fora

O samba só acaba
Depois que rompe a aurora

A gente tem dinheiro

E condução pra ir embora."
.Mas, tudo seria uma questão de tempo. Geraldo Pereira era grande demais para desaparecer de seu meio. E logo ele demonstraria que isso era verdade.


***


Com relação às marchas carnavalescas do carnaval de 50, várias se tornaram patrimônio da música popular brasileira, destacando-se Daqui Não Saio (Paquito e Romeu Gentil), cantada pelos Vocalistas Tropicais, repetindo o sucesso do carnaval anterior (Jacarepaguá); Meu Brotinho (Luiz Gonzaga/Humbero Teixeira), com Francisco Carlos; Balzaqueana (Nássara e Wilson Batista), cantada por Jorge Goulart; Serpentina (Fernando Lobo e David Nasser), interpretada por Nelson Gonçalves; e a Marcha do Gago, dos "hit-makers" Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, com o famoso cômico das chanchadas, Oscarito.


A grande vencedora do carnaval no concurso oficial e a mais cantada por todo o Brasil, foi, sem sombra de dúvidas, Daqui Não Saio; como sempre acontecia no carnaval, sua letra era de crítica social, agora abordando tema ainda hoje candente: a falta de moradias para o povão e as vãs promessas de se solucionar o problema:


"Daqui não saio
Daqui ninguém me tira
Onde é que eu vou morar
O senhor tem paciência de esperar
Ainda mais com quatro filhos
Onde é que eu vou parar.


Sei que o senhor tem razão
Pra querer a casa para morar
Mas onde eu vou ficar
No mundo ninguém perde por esperar.
Mas, já dizem por aí
Que a vida vai melhorar."

Ouça Daqui Não Saio, com os Vocalistas Tropicais.






















Francisco Carlos, o "El Broto", emplacou um dos maiores sucessos desse ano - Meu Brotinho -, a marchinha histórica mais pelos seus compositores, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, acostumados com outro ritmo, o baião, o que não os impediu de compor uma das mais deliciosas marchinhas do carnaval de 1950:

“Ai, ai, brotinho…
Não cresça meu brotinho,
Nem murche como a flor…
Ai, ai, brotinho…
Eu sou um galho velho,
Mas quero o seu amor…

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Meu brotinho, por favor não cresça…
Por favor não cresça,
Já é grande o cipoal…
Veja só que galharia seca,
Tá pegando fogo
Neste carnaval…”




Francisco Carlos interpretando Brotinho.















Balzaqueana (um termo cunhado a partir do famoso romance A Mulher de Trinta Anos, de Balzac), fica em segundo lugar no concurso da prefeitura do Distrito Federal, disputando com Daqui Não Saio as preferências populares. Foi a música que impulsionou a carreira de um cantor razoavelmente novo, Jorge Goulart, tornando-o, aos 24 anos, um astro de primeira grandeza no cenário musical brasileiro:



"Não quero broto
Não quero, não quero não
Não sou garoto
Pra viver na ilusão
Sete dias na semana
Eu preciso ver
Minha balzaqueana.

O francês sabe escolher
Por isso ele não quer
Qualquer mulher
Papai Balzac já dizia
Paris inteira repetia
Balzac tirou na pinta
Mulher, só depois dos trinta."

Ouça Balzaqueana, com Jorge Goulart


 





Sucesso espetacular também alcançou o cômico Oscarito com a Marcha do Gago, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti (que desbancou todo mundo nesse carnaval), que, apesar da fraca letra, ou mesmo, por causa disso, caiu no gosto popular, impulsionada pelo fato de ser cantada no filme de Watson Macedo Carnaval no Fogo, sucesso espetacular de público:


"Tá, tá, tá, tá na hora
Vá, vá, vale tudo agora
Eu sou mo, mole pra falar
Mas sou um Pintacuda pra beijar.


Eu fico ga, ga, ga, gago
Dentro do salão
E até pa, pa, pa, pago
Pra não ver canhão
Mas se, se, se, se a dona é boa
A minha língua se destrava à toa."
 Oscarito interpretando A Marcha do Gago.





 Os versos mais bem elaborados de todas as músicas do carnaval de 1950, porém, pertenceram à marchinha Serpentina. Fugindo de um estilo tradicional reinante no carnaval, "malícia versus crítica social", sua melodia resgatava para o carnaval uma variação da marcha um pouco desaparecida e que faria muito sucesso nos carnavais posteriores, algumas se tornando (como As Pastorinhas, de Noel Rosa e Braguinha, de carnavais passados) verdadeiras jóias do cancioneiro popular: a marcha-rancho. Na voz de Nelson Gonçalves,terminou por tirar o terceiro lugar no concurso oficial:

"Guardo ainda bem guardada a serpentina
 Que ela jogou 
 Ela era um linda colombina
 E eu um pobre pierrô
Guardei a serpentina que ela me atirou
Brinquei com a colombina até as sete da manhã
Chorei quando ela disse: vou-me embora
Até amanhã,
Pierrô, até amanhã."


Ouça Serpentina, com Nelson Gonçalves.




O carnaval, a se levar em conta o sucesso de 1950, parecia mostrar que ainda tinha muita força e fôlego. O correr da década é que confirmaria se isso era verdade ou não.

Um comentário:

Anônimo disse...

adorei esse blog pois, tenhu q fazer um desfile p fakuldade sobre a dec de 50 ih esse blog vai me ajudar mtoooo
obrigado....
Paulo