5.9.06

SOBRE BURROS E ZEBUS

Tudo levava a crer que seria uma temporada sem maiores contratempos ou aborrecimentos; a peça, com o provocante título Perdoa-me Por me Traíres, apesar das taras e perversões que sempre habitaram o universo de Nelson Rodrigues, não tinha palavrão, fora liberada com contratempos, é verdade, mas sem cortes pela censura e recebera grande cobertura antes de sua estreia. Nelson, com seu senso de publicidade, aparecera em reportagens em praticamente todas as revistas semanais, com grandes reportagens nas duas mais importantes, O Cruzeiro e a Manchete. Todas elas exploravam o fato, inusitado, de que o autor participaria pela primeira vez (e última) como ator de uma peça, abrindo seus espaços para que ele explicasse sua visão do que o público poderia esperar dessa montagem, que seria levada no Teatro Municipal, em uma temporada de dez dias, sob a direção de Léo Jusi, com um elenco que contaria, entre outros, com Sônia Oiticica, Abdias do Nascimento, Gláucio Gil (também produtor da peça juntamente com o próprio Nelson), Dália Palma, a espetacular Léa Garcia, Maurício Loyola e Roberto Batalin.

O repórter Mário de Moraes (famoso por ter conseguido a única entrevista concedida pelo assassino de Leon Trotski, Ramón Mercader), assinou ótima reportagem, laudatória, obviamente, no O Cruzeiro (01.06.57) sobre a montagem, sob o título Nelson Rodrigues Ator. É um primor de propaganda gratuita:
“Os meios teatrais cariocas foram surpreendidos por uma notícia: Nelson Rodrigues seria intérprete em sua nova peça. Na verdade, o conhecido cronista da imprensa diária, não satisfeito em ser autor de grandes peças de teatro, como ‘Vestido de Noiva’, ‘Anjo Negro’, ‘Senhora dos Afogadose outras, viverá um dos personagens de ‘Perdoa-me Por me Traíres’. Jornalista desde os treze anos de idade, vibrante cronista esportivo e figura que se tornou famoso com o pseudônimo feminino de Suzana Flag, Nelson Rodrigues nos explica o porquê de sua atitude: - ‘a todos está parecendo estranha a minha resolução. Nada mais simples, porém. Meus companheiros, aqueles que irão trabalhar comigo, acharam que eu sou o tipo ideal para o tio Raul, um dos personagens centrais de mina nova peça. Concordei e acabei me transformando em ator em ‘Perdoa-me Por me Traíres’. Aliás, nós desejamos mesmo fazer um teatro diferente, onde haja autenticidade, onde cada intérprete viva realmente o seu papel. Nada da costumeira técnica teatral, do gesto e da atitude certa. O importante é criar vida. Em geral, nossas companhias teatrais giram em torno da atriz principal e de seu elenco. As peças têm que ser criadas para essa gente. Um grande papel para a atriz e outro menores que se adaptem ao elenco. Nós, a exemplo do que se faz na Broadway, invertemos as coisas: procuramos adaptar o elenco à peça. Para cada papel, um ator que possa representá-lo bem’.

Assistimos a alguns ensaios e acreditamos que o desempenho de Nelso
n Rodrigues no palco venha a tornar-se uma surpresa para os que o conhecem. Integrado completamente no seu difícil papel, ele vem se esforçando o máximo para obter uma boa atuação. A nova peça de Nelson Rodrigues (que já está escrevendo a décima (‘Viúva Porém Honesta’), como quase todas as outras de sua autoria, tem bastante realismo, abordando um tema profundamente humano e brutal. Será levada ao palco do Teatro Municipal de 19 a 29 de junho próximo, com uma ‘avant-première’ de gala no dia da estréia. Serão, como nos disse seu autor, ’11 dias para nunca mais’, pois não voltara a ser encenada. Alem de Nelson Rodrigues, os outros papéis importantes de Perdoa-me Por me Traíres’ foram entregues a artistas por demais conhecidos em nossos meios teatrais, como Sônia Oiticica, Abdias do Nascimento e Léa Garcia. Entre os novos, podemos destacar Dália Palma, jovem, mas promissora atriz, Maria do Nazareth e Gláucio Gil, que além de ator é o produtor da peça.”

Perdoa-me por me Traíres, montagem integral pelo grupo Novos Candango.















Perdoa-me Por me Traíres tem um enredo que pode ser 
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 sintetizado: Glorinha (Dália Palma, atriz que não fez carreira) é uma garota de 16 anos que mora com seu tio Raul (Nelson Rodrigues) e sua tia Odete (Sônia Oiticica), uma mulher um tanto quanto amalucada, que vive repetindo sempre a mesma frase: “está na hora da homeopatia”, além de nunca se sentar. Ela é o perfeito retrato de uma mulher dominada pelo marido, uma mulher fraca que, diante da difícil realidade que a cerca, se fecha à realidade feia e ameaçadora; seu mundo é de fantasia. Tem presença marcante na montagem, caminha para lá e para cá ao longo do palco, insinuando-se através da sua sombra que é refletida na parede. Sua fragilidade comove e sua aparente loucura é mágica e hipnótica, graças a uma grande atuação de Sônia Oiticica.


Violentamente reprimida pelo tio Raul, que tenta, a todo custo, manter sua castidade, Glorinha, não encontra sentido em sua vida, vendo-se prisioneira em um universo que detesta e onde se sente deslocada. Ela então, mesmo amedrontada, entra em um bordel (o famoso “bordel de normalistas”, que tanto po
voava o imaginário coletivo masculino na década de 50) em companhia de Nair (Yara Texler), uma colega de escola. Só que, em virtude de toda uma vida reprimida, Gloria, fica nervosa e assustada com tal lugar, sentindo-se insegura perante madame Luba (também interpretado por Sônia Oiticica) e, após ser ameaçada pela cafetina de revelar ao tio sua visita ao lugar, quando vai ter sua primeira experiência com seu primeiro cliente, o deputado negro Jubileu de Almeida (Abdias do Nascimento), velho caquético que só conseguia ficar excitado recitando, aos gritos, pontos de Física para as garotas, implorando também para ser chamado de “A Reserva Moral da Nação”, ela, dessa primeira vez, não consegue, fugindo então do deputado, que, trôpego a persegue, enquanto ela o chama de indecente. Ao se encontrar com Nair, a amiga lhe comunica de sopetão que está grávida e querendo abortar; pede-lhe para acompanhá-la a um médico aborteiro (Roberto Batalin). Porém, o aborto desanda e Nair fica entre a vida e a morte. Agonizante, delira, implorando para que em sua casa ninguém soubesse nunca que ela não era virgem. Ela então pede um beijo a Glorinha, que nega o pedido da amiga, correndo para sua casa apavorada. A amiga, mesmo em estado lastimável a ameaça. Tio Raul, no outro dia, dissimuladamente, pergunta à sobrinha se ela esteve com sua colega Nair na tarde passada. Quando Glorinha nega, ele fica possesso e lhe diz que ela era uma mentirosa, que ele já sabe de tudo, pois o médico havia ligado para sua casa atrás dela, e ele fora se encontrar com a prostituta à beira da morte. Lá ele ficara sabendo de tudo sobre a vida da sobrinha, que ela era uma falsa, que já cheirara lança-perfume e tinha até frequentado um bordel. Vingativamente, ele então resolve contar à sobrinha toda a verdade sobre a história de sua família.


Glorinha sabia que uma tragédia acontecera com sua família: sua mãe tinha se matado, e seu pai morrido de desgosto pouco tempo depois. Todavia, tio Raul desmente essa história e diz à sobrinha que, na realidade, seu pai, Gilberto (Gláucio Gil), e sua mãe Judite (Maria de Nazareth) eram um casal feliz, viviam em eterna lua-de-mel havia dois anos, tendo o costume de tomarem banhos juntos todos os dias. Até que um dia, Judite se recusa a abrir a porta do banheiro na hora do banho. A quebra dessa espécie de pacto do casal desperta a suspeita do marido; ele começa a suspeitar da infidelidade da esposa. Ficou com a convicção de que ela tinha um amante. Ele então desenvolve um ciúme doentio da mulher, o que o leva a ter um colapso nervoso. Sua neurose e obsessão se revelam, fazendo com que ele se interne, por sua livre e espontânea vontade, em uma casa de repouso. Ao mesmo tempo resolveu ficar incomunicável e, durante seis meses, não quis receber sequer um telefonema. 

Quando resolve voltar para sua casa sem avisar à esposa, encontrou-a, porém, muito bem vestida e maquiada, pronta para sair de casa. Judite, mesmo surpreendida pela chegada repentina do marido, tem bastante presença de espírito e lhe diz que está saindo para cumprir uma promessa. Gilberto não desconfia de nada até que, no mesmo dia, chega sua família para visitá-lo. Raul, seus outros dois irmãos (Weber de Moraes e Namir Cury) e a mãe de ambos (papel também vivido por Sônia Oiticica) trazem-lhe a notícia de que Judite era uma mulher infiel, que ela tinha uma amante e que até sabiam seu nome e a freqüência com que os amantes se encontravam. Pasmado, ele não acredita, mas Judite, confrontada, sem meios termos, confessa que era verdade, que ela tinha não um, mas vários amantes, que transava até por um “bom dia”, dando preferência até a garotos que tinham espinhas. Gilberto então diz que, se ele era traído, a culpa era dele e perde perdão à mulher pelo fato de ela o estar traindo, daí o título da peça, Perdoa-me Por me Traíres. Raul, entretanto, não aceita tal situação: prepara um copo de veneno e obriga a cunhada a tomar. Judite, contente, viu no veneno sua libertação e o toma sem hesitação.


Assim que termina de contar a história da morte da mãe da sobrinha, Raul lhe diz que somente lhe contou a verdadeira história porque ela teria o mesmo destino da mãe, ser morta envenenada por ele. Em uma cena culminante da peça, na discussão entre os dois, a verdade vem à tona: Judite morreu não por ser adúltera, mas por ter repelido seu cunhado Raul a quem detestava. Antes da morte de Judite, porém, ele lhe dá um beijo na boca. E mais verdades surgem de roldão. Tio Raul diz à sobrinha que só a criou para ele, que a ama desde sempre e propõe à garota um pacto de morte, ambos bebendo o veneno. Ela aceita, pede-lhe também um beijo, mas exige, como condição do pacto de morte, que o tome primeiro, Consumado o gesto, enquanto o tio estrebucha agonizante, Glorinha, triunfante, pega o telefone, liga para o bordel e avisa que o encontro com o deputado marcado para o dia seguinte está confirmado. Raul vive o bastante para ver a sobrinha jogar-lhe o copo de veneno na cara. É o fim da peça.


Perdoa-me Por me Traíres é uma peça expressionista, estruturada no passado e no presente, sendo dividida em três atos. No primeiro, cuja ação se dá no presente, num intervalo de vinte e quatro horas, o espectador conhece o cotidiano medíocre e sem perspectivas de Glorinha. No segundo, a peça começa a se desenvolver no presente para logo se converter ao passado, onde, em flashback, se fica sabendo as origens de Glorinha. O 3° ato começa quando Raul termina de contar toda a história à sobrinha, a ação se desenvolvendo toda no presente. O passado, na realidade, obviamente, não é simplesmente narrado por Raul; ele é vivido. A ação acontece com Maria do Nazareth como Judite e Gláucio Gil no papel de Gilberto, porém ela é interrompida por breves comentários de Raul, que é o único personagem que vai do presente ao passado e vice-versa. Toda a passagem de tempo entre os planos é determinada pela iluminação, ou seja, quando a ação vai para o passado, o presente escurece, e vice-versa.


Como Nelson Rodrigues sempre foi um frasista memorável, a peça não poderia deixar de ter seus diálogos irônicos e mordazes, muitos, na realidade, hilários, caídos para o humor negro. No primeiro ato, o garçom do bordel, Pola Negri (Maurício Loyola), ao se referir à cafetina, diz com a maior naturalidade que madame Luba “é lituana, mas uma simpatia”. Quando Glorinha chega ao bordel, ficando intimidada perante madame Luba, ela lhe diz: “Querem biscoito? Aceitem um licorzinho! Glorinha, eu poderia ser sua mãe!”. Enquanto, durante o aborto, Nair agoniza, e a enfermeira (Léa Garcia) reza desesperada, o médico grita com ela: “Mas, não reza só para ti! Pra mim também! Eu quero ouvir! Anda! Alto! Reza, sua cretina”. Gilberto para Judite: “O verdadeiro defloramento é o primeiro beijo na boca!”. Mais uma vez, Gilberto: “A adúltera é mais pura porque está salva do desejo que apodrecia nela!”. Pola Negri: “Natural! Bola só um negócio: se, por um acaso, por uma hipótese, a polícia entrasse aqui, já imaginaste o escândalo? Ia saber que há uma casa, nessas e nessas condições, vê bem: uma casa infanto-juvenil, que oferece alunas dos melhores colégios, a fina flor de dezessete anos para baixo, as filhas de famílias fabulosíssimas... vêem aqui, por dinheiro...” São pagas! Pagas!”. Gilberto para Raul: “E minha cabeça? São obscenos os miolos da minha cabeça! Eu olho e vejo os amantes de minha mulher. Os amantes escorrendo como águas nas paredes infiltradas...”. Mãe de Raul sobre Judite: “Como é limpa, como é cheirosa! Imagina tu que ela própria me disse que fazia a higiene íntima três vezes por dia, se tem cabimento! Tanto asseio não havia de ser para o marido, duvido!”. Judite para Gilberto: “Eu me arrependo do marido, não me arrependo dos amantes!”.

Apesar de se esperar tudo de uma peça de Nelson Rodrigues, no dia seguinte à estreia do espetáculo, na cidade só se comentava o que se sucedera no Teatro Municipal na noite anterior. O que efetivamente aconteceu naquela fatídica (e interessante financeiramente como se verificaria depois) noite de estreia assim foi descrito por Ruy Castro em O Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues:


“Pelos aplausos discretos ao fim dos primeiros dois atos, naquela noite de 19 de junho, a estreia de ‘Perdoa-me por me traíres’ parecia caminhar para uma carreira tranquila – nada de estremecer os túmulos de Martins Pena ou Gonçalves Dias. Ninguém podia antecipar que uma parte da plateia provocaria um distúrbio ao fim do espetáculo, nem a conflagração que se seguiria – dez vezes pior do que a da estreia de ‘Senhora dos Afogados’, três anos antes.

Nelson, como ator, era de uma sinceridade comovente. Atirou-se de corpo, alma e ectoplasma ao personagem de tio Raul. Até as bofetadas que dava em Dália Palma eram de verdade, ao contrário do que aprendera nos ensaios. A cada tapa que estalava e ardia em seu rosto, Dália Palma torcia para que o veneno no copo de Nelson fosse de verdade. Com tudo isso, a sinceridade de Nelson estacionava no proscênio, não passava para a plateia, segundo uma colega de elenco. Nelson tinha razão ao dizer que a nenhum ator profissional ocorreria que todo personagem ‘morria mal, morria pessimamente'. Ele Morreu pessimamente e, segundo os críticos, foi o pior canastrão que já passou pelo Municipal. Mas nada disso teria importância, ninguém esperava que ele fosse um Alec Guiness.


A Peça terminou e, atrás do pano, elenco e diretor ouviram os aplausos e, para sua surpresa, vaias. (Depois eles saberiam que, naquele momento, tinham quarenta por cento da plateia a seu favor e sessenta por cento contra). No decorrer do espetáculo, nada indicava que haveria vaias. A plateia parecera sob controle e rira inclusive do que não era para rir, como na fala em que a adúltera confessa para o marido: - ‘Até me entreguei por um bom dia’. Léo Jusi planejava fazer a entrada isolada ou em grupos dos atores para os aplausos. Mas, ao ouvir os apupos, decidiu: ‘Vamos entrar todos juntos, de uma vez, de mãos dadas. Vamos agradecer os aplausos e as vaias. Abram o pano’.


O pano abriu e isso foi uma espoleta para amplificar as vaias e os insultos. A plateia parecia possessa. Os palavrões que a peça não tinha estavam sendo berrados pelas pessoas mais insuspeitas. Como Nelson contaria depois, ‘santas senhoras cavalgavam cadeiras e ululavam como apaches’, xingando-o de imoral, indecente e de coisas impublicáveis. Os que aplaudiam o incitavam: ‘Fala, Nelson! Fala!’

Mas não havia como falar. Ninguém parecia querer ouvir. Os balcões do Municipal urravam como as arquibancadas do Olaria na rua Bariri. Nelson não se conteve. Deu um passo na direção do proscênio e começou a gritar para as cadeiras e camarotes: ‘burros! Zebus!’

Os burros e os zebus o ofenderam de volta. Pela expressão transtornada de seu rosto, Nelson estava a ponto de descer para enfrentar fisicamente a multidão, para dar e levar pescoções. Seria uma chacina. Gláucio Gil e Abdias do Nascimento o agarraram pelo pescoço, Sônia Oiticica chorava. E, de repente, ouviu-se um tiro. Ou o que se pensou que fosse um tiro.

Meia hora antes, o vereador pela UDN Wilson Leite Passos, 26 anos [até hoje vereador no Rio de Janeiro pelo PFL (Democratas, atualmente, autor de um polêmico projeto de eugenia, passava distraído pela porta do teatro. Viu amigos saindo e esbravejando contra a peça – sabia que era uma peça do abominável Nelson Rodrigues – e resolveu dar uma espiada. Sua carteirinha de operoso edil permitia-lhe entrar no Municipal à h
ora que quisesse e, com isso, não perdia um espetáculo. Para ele, o Municipal deveria ser uma catedral, um templo, reservado exclusivamente a representações edificantes. Wilson Leite passos era correligionário de Carlos Lacerda, membro do ‘Clube da Lanterna’ e estava convicto de que Nelson Rodrigues era tarado.

Quando chegou ao balcão, a peça estava no começo do terceiro ato. Já não gostou do que viu, mas resolveu esperar pelo pano. Achou um absurdo aquele desfile de taras entre tio e sobrinha num teatro da Prefeitura, mantido com
o dinheiro do contribuinte, mesmo que o prefeito fosse negrão de Lima, com seu ridículo chapéu ‘gelot’. Resolveu que, amanhã mesmo, ia falar com Negrão. O pano caiu, parte da plateia começou a aplaudir, a maior parte a vaiar. Nelson Rodrigues veio à boca de cena e se pôs a chamar a plateia de ‘zebus’. Wilson Leite Passos sentiu-se na obrigação de lavrar um protesto contra aquela cena desprimorosa num próprio da municipalidade. Afinal, era um vereador.


Valendo-se de sua voz de tribuno, conseguiu fazer-se ouvir sobre a balbúrdia e declarou: ‘É um deplorável atentado à moral e aos bons costumes, incompatível com um teatro destinado a óperas, balés e clássicos sinfônicos!’. Um cidadão, dos que
aplaudiam, afrontou-o no próprio balcão: ‘Palhaço!’Wilson Leite Passos, desacostumado a esse tratamento, reagiu: ‘Palhaço é você!’O homem partiu para cima dele. Wilson Leite Passos empurrou-o e o homem caiu sobre as cadeiras do balcão. O homem se levantou, voltou à carga e foi então que Wilson Leite Passos sacou sua arma – uma pistola ‘Walther’, favorita entre os vereadores.


Uma arma na multidão é sempre qualquer coisa de assustador. Nem precisa disparar. O que era um bafafá transformou-se num tumulto, com espectadores dando shows de saltos ornamentais e corrida de obstáculos, pulando do balcão para a orquestra e galopando por cima de poltronas para salvar a vida. Ninguém sabe se houve o tiro. – Wilson Leite Passos iria no dia seguinte ao programa de Gilson Amado na TV Tupi para garantir que não houve –, e certamente não houve. Mas a versão de Nelson sobre o episódio podia dar a entender qualquer coisa. Ele escreveria muitas vezes que o vereador ‘puxara o revólver e, como um Tom Mix, queria fuzilar o texto’. Wilson Leite Passos, depois daquilo, andaria sendo chamado de ‘trêfego vereador da UDN’.


Nelson Rodrigues entrevistado por Otto Lara Resende - Parte 1 de 3.

















Nelson Rodrigues entrevistado por Otto Lara Resende - Parte 2 de 3.
















Nelson Rodrigues entrevistado por Otto Lara Resende - Parte 3 de 3.




 













Paulo Francis, também, comentou o acontecido em sua coluna de teatro no Diário Carioca,, de 25 de agosto de 1957:


“Juntamente com Perdoa-me por me Traíres estreou Wilson Passos, sacando a arma de fogo contra espectador que aplaudia Nelson Rodrigues. Não satisfeito com o teatro, lançou-se, sábado, na televisão, ameaçando conseguir a proibição da peça junto ao Ministério da Justiça. O estreante é ‘Reserva Moral’ da Gaiola de ouro. E todos sabem o que isto significa...

A Constituição permite ao vereador manifestar de público suas opiniões por asininas que sejam. E nós, de teatro, temos experiência suficiente do que seja exibicionismo, para não nos chocarmos com o ‘strip-tease’ moralista de Wilson Leite Passos (...) Reconhecemos futuro histriônico no Vereador, e fazemos votos de que os empresários de circo tenham anotado seu nome.”

As críticas a Perdoa-me Por me Traíres foram controversas; O mesmo Paulo Francis, cuja pena já era temida por todo mundo, por exemplo, criticou severamente a peça no Diário Carioca (23.06.57); numa coluna sob o título “Sem Perdão” – uma alusão ao título da peça –, ataca o comportamento de Nelson, berrando em cena, e decreta:

“As atitudes de Nelson Rodrigues antes e depois da estreia de suas peças já lhe renderam o apelido de Dr. Clichê. Sempre a loucura! Loucura entre aspas, com método, coma a de Hamlet, mas sem a lucidez e a ressonância dos ‘disparates’ shakespearianas (...) Quem escreveu Álbum de Família e Senhora dos Afogados deveria saber que o palco não é picadeiro”.

Essa crítica fez com que Nelson se tornasse desafeto do crítico por muito tempo; Nelson passou a jogar-lhe pedras por diversos órgãos da imprensa. Até pela Revista do rádio. Em sua edição de 27.07.57 (nº 411), Nelson assim se referiu ao crítico:
"Graça a ‘Perdoa-me por me traíres’, desembaracei-me, afinal, de várias admirações intoleráveis... [por exemplo] o sr. Paulo Francis, débil mental evidente, que por várias vezes apontou-me como o mais importante autor brasileiro’ ...
O crítico respondeu com mais patadas; além de dizer que Nelson não discutia com seus inimigos, limitando-se a xingá-los, já em 29.07.57, a pretexto de atacar o ator Abdias do Nascimento, o deputado - Reserva Moral da Nação - da peça, ele escreveu no Diário Carioca:

“Nelson Rodrigues voltou a esbravejar contra os críticos em defesa de Abdias do Nascimento. Vejam a companhia; dize-me com quem andas etc. Amizade nascida de admiração mútua, de afinidades? Abdias professa (para uso interno) credo em política, que não se harmoniza com a obra de Nelson – as revoluções atraem a elite e a escória. Onde o ponto de contato entre o dramaturgo e o demagogo?”

E a metralhadora giratória de Paulo Francis não parava; como não concordava com o rumo que a carreira teatral do autor paulista Abílio Pereira de Almeida tomava, nessa mesma época com uma peça em cartaz no Rio de Janeiro, resolveu matar dois coelhos de uma só cajadada: atacou ambos os dois, Nelson e ele. Sob a rubrica “Obsessão”, sua coluna no jornal assim decretou:
“A preocupação de Nelson com sexo, antes um elemento de tensão e revelação poética, é hoje um gambito sensacionalista, um mero ‘strip-tease’. E Abílio, que principiou como um possível satírico de costumes, parece, presentemente, um editorialista de revistas de escândalo. O curioso é que os dois escritores, desde que caíram de nível, se apresentam explicitamente como defensores da moral, técnica que aprenderam em pasquins, desses que publicam o lado escabroso das notícias e depois de os explorarem pelo que vale, não deixam de incluir algumas linhas de pseudo indignação moral...”

Já Accioly Netto, da nova geração de críticos teatrais ao lado do próprio Francis, Bárbara Heliodora, Cláudio de Mello e Sousa, Edgar de Alencar, Gustavo Dória e outros, escreveu elogiosa crítica ao espetáculo na revista O Cruzeiro (13.07.57), sob o título “O Grego Nelson Rodrigues”:

"A estreia de 'Perdoa-me por me traíres', 'tragédia de costumes' de Nelson Rodrigues que o jovem produtor Gláucio Gil apresentou no Teatro Municipal, sob a direção de outro jovem, Léo Jusi, constituiu o impacto mais firme e mais puro do ano teatral. Inicialmente existe o fato único da peça que foi anunciada para permanecer em cartaz apenas 10 dias (como de fato aconteceu) ‘para nunca mais voltar à cena’, nem aqui, nem fora daqui. Não se entende nem se explica um limite assim irredutível, nem se conhece o exemplo em toda nossa história dramática, de outra peça que nascesse com os dias contados como que marcada por predestinação inexorável. Os 10 dias de ‘Perdoa-me por me traíres’ têm, por isso, a pungência de um canto de cisne, de um último canto. Há quem interprete o fato como uma demissão, em adeus do autor ao teatro. Além disso, existe uma outra circunstância que valorizou e quase dramatizou o acontecimento – é que, com ‘Perdoa-me por me traíres', o seu autor estreou como ator. Pela primeira vez, com efeito, Nelson Rodrigues abandonou a sua solidão e veio ter um contato pessoal e direto com o público. E mais que isso – deu-se o encontro do autor com o personagem. O criador de ‘Vestido de Noiva’ invade o mundo da ficção e passou a viver, ele mesmo, no a carne e na alma, todos os problemas e todas as angústias do personagem.

Note-se: Nelson Rodrigues não tem, como ator, nenhum lastro, nenhum ‘metier’, nada. jamais representou. Caberá a pergunta: foi bem sucedido nessa sua primeira e última experiência? Ele próprio respondeu ‘que não é nem quer ser ator’, e argumento que ‘a técnica é uma inconveniência, porque o ator diz bem, articula bem demais, anda, sente, ri e chora bem demais’. Mas, ‘essa correção’, continua, ‘retira do seu trabalho a indispensável verossimilhança vital e então sentimos que apenas representa sem viver

(...)

Que impulso fatalista teria levado o autor a unir sua sorte à da obra? É como se Nelson Rodrigues, ao aparecer no palco, numa obra sua, se submetesse, pessoalmente, ao julgamento do público. Não há dúvida, de fato, que esse julgamento aconteceu – com aplausos e vaias como num estranho tribunal. E o grande público, unindo-se ao público chamado ‘de elite’, num movimento espontâneo e forte, superou os apupos com suas palmas.

É que o teatro de Nelson Rodrigues, através dos anos, tem constituído um apaixonado centro de debates. Muitos confundem sua dramaticidade com sensacionalismo, e só agora começa-se a ver em sua obra, com mais isenção e lucidez, compreendendo o sentido de tragédia grega que ela contém – aquela que provoca o horror para purificar. Isso acontece também com ‘Perdoa-me por me traíres’, ou melhor, com mais intensidade ainda, pois nela está, sem contemplações, com monstruosa crueza, uma realidade vital (que somente a hipocrisia procura esconder). E com a agravante de não mascarar com bom humor nem ternura (à guisa de justificativa) a miséria escatológica de determinada ‘condição humana’, para que todos a vejam em sua deprimente verdade e a evitem com o faziam os antigos com a lepra ou a peste negra.

(...)

Estou certo de que o ser ou não ser grande peça, em ‘Perdoa-me por me traíres’, é matéria superada – está acima dos julgamentos frenéticos. É uma obra de arte maciça que, retomando e desenvolvendo o tema da fidelidade, empreende uma revisão fundamental de certos valores da vida, da nossa vida. E a vida não se bitola em crítica literária ou teatral – contempla-se, tirando dela os ensinamentos que elas nos dá.

(...)”

Com o escândalo, no dia seguinte, a peça foi proibida. Entretanto, devido aos pleitos do próprio Nelson, de Gláucio Gil e de Léo Jusi, que, inclusive, solicitou a ajuda do bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara, conhecido por suas atitudes bastante liberais à época, Perdoa-me Por me Traíres foi liberada no mesmo dia. O escândalo, obviamente, também chamou a atenção do público que lotou o Teatro Municipal durante toda a temporada. Como adendo, a temporada da peça, que duraria somente duraria dez dias, “para nunca mais” estendeu-se para mais dois meses, agora no teatro Carlos Gomes.

Só que sem Nelson Rodrigues. Para nunca mais.

Um comentário:

andreaspmontini disse...

sou filha de Dalia e discordo que ela não tenha feito carreira...pode ter sido uma breve carreira porém foi brilhante!!!!