Tudo levava a crer que seria uma temporada sem maiores contratempos ou aborrecimentos; a peça, com o provocante título Perdoa-me Por me Traíres, apesar das taras e perversões que sempre habitaram o universo de Nelson Rodrigues, não tinha palavrão, fora liberada com contratempos, é verdade, mas sem cortes pela censura e recebera grande cobertura antes de sua estreia. Nelson, com seu senso de publicidade, aparecera em reportagens em praticamente todas as revistas semanais, com grandes reportagens nas duas mais importantes, O Cruzeiro e a Manchete. Todas elas exploravam o fato, inusitado, de que o autor participaria pela primeira vez (e última) como ator de uma peça, abrindo seus espaços para que ele explicasse sua visão do que o público poderia esperar dessa montagem, que seria levada no Teatro Municipal, em uma temporada de dez dias, sob a direção de Léo Jusi, com um elenco que contaria, entre outros, com Sônia Oiticica, Abdias do Nascimento, Gláucio Gil (também produtor da peça juntamente com o próprio Nelson), Dália Palma, a espetacular Léa Garcia, Maurício Loyola e Roberto Batalin.
O repórter Mário de Moraes (famoso por ter conseguido a única entrevista concedida pelo assassino de Leon Trotski, Ramón Mercader), assinou ótima reportagem, laudatória, obviamente, no O Cruzeiro (01.06.57) sobre a montagem, sob o título Nelson Rodrigues Ator. É um primor de propaganda gratuita:
“Os meios teatrais cariocas foram surpreendidos por uma notícia: Nelson Rodrigues seria intérprete em sua nova peça. Na verdade, o conhecido cronista da imprensa diária, não satisfeito em ser autor de grandes peças de teatro, como ‘Vestido de Noiva’, ‘Anjo Negro’, ‘Senhora dosAfogados’ e outras, viverá um dos personagens de ‘Perdoa-me Por me Traíres’. Jornalista desde os treze anos de idade, vibrante cronista esportivo e figura que se tornou famoso com o pseudônimo feminino de Suzana Flag, Nelson Rodrigues nos explica o porquê de sua atitude: - ‘a todos está parecendo estranha a minha resolução. Nada mais simples, porém. Meus companheiros, aqueles que irão trabalhar comigo, acharam que eu sou o tipo ideal para o tio Raul, um dos personagens centrais de mina nova peça. Concordei e acabei me transformando em ator em ‘Perdoa-me Por me Traíres’. Aliás, nós desejamos mesmo fazer um teatro diferente, onde haja autenticidade, onde cada intérprete viva realmente o seu papel. Nada da costumeira técnica teatral, do gesto e da atitude certa. O importante é criar vida. Em geral, nossas companhias teatrais giram em torno da atriz principal e de seu elenco. As peças têm que ser criadas para essa gente. Um grande papel para a atriz e outro menores que se adaptem ao elenco. Nós, a exemplo do que se faz na Broadway, invertemos as coisas: procuramos adaptar o elenco à peça. Para cada papel, um ator que possa representá-lo bem’.
Assistimos a alguns ensaios e acreditamos que o desempenho de Nelson Rodrigues no palco venha a tornar-se uma surpresa para os que o conhecem. Integrado completamente no seu difícil papel, ele vem se esforçando o máximo para obter uma boa atuação. A nova peça de Nelson Rodrigues (que já está escrevendo a décima (‘Viúva Porém Honesta’), como quase todas as outras de sua autoria, tem bastante realismo, abordando um tema profundamente humano e brutal. Será levada ao palco do Teatro Municipal de 19 a 29 de junho próximo, com uma ‘avant-première’ de gala no dia da estréia. Serão, como nos disse seu autor, ’11 dias para nunca mais’, pois não voltara a ser encenada. Alem de Nelson Rodrigues, os outros papéis importantes de ‘Perdoa-me Por me Traíres’ foram entregues a artistas por demais conhecidos em nossos meios teatrais, como Sônia Oiticica, Abdias do Nascimento e Léa Garcia. Entre os novos, podemos destacar Dália Palma, jovem, mas promissora atriz, Maria do Nazareth e Gláucio Gil, que além de ator é o produtor da peça.”
Perdoa-me por me Traíres, montagem integral pelo grupo Novos Candango.
Perdoa-me Por me Traíres tem um enredo que pode ser
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sintetizado: Glorinha (Dália Palma, atriz que não fez carreira) é uma garota de 16 anos que mora com seu tio Raul (Nelson Rodrigues) e sua tia Odete (Sônia Oiticica), uma mulher um tanto quanto amalucada, que vive repetindo sempre a mesma frase: “está na hora da homeopatia”, além de nunca se sentar. Ela é o perfeito retrato de uma mulher dominada pelo marido, uma mulher fraca que, diante da difícil realidade que a cerca, se fecha à realidade feia e ameaçadora; seu mundo é de fantasia. Tem presença marcante na montagem, caminha para lá e para cá ao longo do palco, insinuando-se através da sua sombra que é refletida na parede. Sua fragilidade comove e sua aparente loucura é mágica e hipnótica, graças a uma grande atuação de Sônia Oiticica. Violentamente reprimida pelo tio Raul, que tenta, a todo custo, manter sua castidade, Glorinha, não encontra sentido em sua vida, vendo-se prisioneira em um universo que detesta e onde se sente deslocada. Ela então, mesmo amedrontada, entra em um bordel (o famoso “bordel denormalistas”, que tanto po
voava o imaginário coletivo masculino na década de 50) em companhia de Nair (Yara Texler), uma colega de escola. Só que, em virtude de toda uma vida reprimida, Gloria, fica nervosa e assustada com tal lugar, sentindo-se insegura perante madame Luba (também interpretado por Sônia Oiticica) e, após ser ameaçada pela cafetina de revelar ao tio sua visita ao lugar, quando vai ter sua primeira experiência com seu primeiro cliente, o deputado negro Jubileu de Almeida (Abdias do Nascimento), velho caquético que só conseguia ficar excitado recitando, aos gritos, pontos de Física para as garotas, implorando também para ser chamado de “A Reserva Moral da Nação”, ela, dessa primeira vez, não consegue, fugindo então do deputado, que, trôpego a persegue, enquanto ela o chama de indecente. Ao se encontrar com Nair, a amiga lhe comunica de sopetão que está grávida e querendo abortar; pede-lhe para acompanhá-la a um médico aborteiro (Roberto Batalin). Porém, o aborto desanda e Nair fica entre a vida e a morte. Agonizante, delira, implorando para que em sua casa ninguém soubesse nunca que ela não era virgem. Ela então pede um beijo a Glorinha, que nega o pedido da amiga, correndo para sua casa apavorada. A amiga, mesmo em estado lastimável a ameaça. Tio Raul, no outro dia, dissimuladamente, pergunta à sobrinha se ela esteve com sua colega Nair na tarde passada. Quando Glorinha nega, ele fica possesso e lhe diz que ela era uma mentirosa, que ele já sabe de tudo, pois o médico havia ligado para sua casa atrás dela, e ele fora se encontrar com a prostituta à beira da morte. Lá ele ficara sabendo de tudo sobre a vida da sobrinha, que ela era uma falsa, que já cheirara lança-perfume e tinha até frequentado um bordel. Vingativamente, ele então resolve contar à sobrinha toda a verdade sobre a história de sua família.
Glorinha sabia que uma tragédia acontecera com sua família: sua mãe tinha se matado, e seu pai morrido de desgosto pouco tempo depois. Todavia, tio Raul desmente essa história e diz à sobrinha que, na realidade, seu pai, Gilberto (Gláucio Gil), e sua mãe Judite (Maria de Nazareth) eram um casal feliz, viviam em eterna lua-de-mel havia dois anos, tendo o costume de tomarem banhos juntos todos os dias. Até que um dia, Judite se recusa a abrir a porta do banheiro na hora do banho. A quebra dessa espécie de pacto do casal desperta a suspeita do marido; ele começa a suspeitar da infidelidade da esposa. Ficou com a convicção de que ela tinha um amante. Ele então desenvolve um ciúme doentio da mulher, o que o leva a ter um colapso nervoso. Sua neurose e obsessão se revelam, fazendo com que ele se interne, por sua livre e espontânea vontade, em uma casa de repouso. Ao mesmo tempo resolveu ficar incomunicável e, durante seis meses, não quis receber sequer um telefonema.
Quando resolve voltar para sua casa sem avisar à esposa, encontrou-a, porém, muito bem vestida e maquiada, pronta para sair de casa. Judite, mesmo surpreendida pela chegada repentina do marido, tem bastante presença de espírito e lhe diz que está saindo para cumprir uma promessa. Gilberto não desconfia de nada até que, no mesmo dia, chega sua família para visitá-lo. Raul, seus outros dois irmãos (Weber de Moraes e Namir Cury) e a mãe de ambos (papel também vivido por Sônia Oiticica) trazem-lhe a notícia de que Judite era uma mulher infiel, que ela tinha uma amante e que até sabiam seu nome e a freqüência com que os amantes se encontravam. Pasmado, ele não acredita, mas Judite, confrontada, sem meios termos, confessa que era verdade, que ela tinha não um, mas vários amantes, que transava até por um “bom dia”, dando preferência até a garotos que tinham espinhas. Gilberto então diz que, se ele era traído, a culpa era dele e perde perdão à mulher pelo fato de ela o estar traindo, daí o título da peça, Perdoa-me Por me Traíres. Raul, entretanto, não aceita tal situação: prepara um copo de veneno e obriga a cunhada a tomar. Judite, contente, viu no veneno sua libertação e o toma sem hesitação.
Um comentário:
sou filha de Dalia e discordo que ela não tenha feito carreira...pode ter sido uma breve carreira porém foi brilhante!!!!
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