15.9.06

“O HOMEM DO SPUTNIK”: O ÚLTIMO SUSPIRO DA ATLÂNTIDA

O final da década de 50 estava assistindo ao estertores de uma era em, praticamente, todos os campos da cultura do entretenimento. Os novos tempos trazidos pela política desenvolvimentista e transnacional do governo de Juscelino Kubitschek colocavam em cheque toda uma maneira de fazer cultura de massas, possibilitando que novos atores da cena cultural surgissem com propostas mais ousadas, mais bem elaboradas, mais modernas em última instância. O surgimento da bossa nova, por exemplo, ao lado do fortalecimento da televisão e da popularização do rock and roll, que segmentou o público, pela primeira vez, em “público jovem” e “velha guarda”, sepultaria toda uma geração de cantores da música popular brasileira, principalmente aqueles que não conseguiram se adaptar aos novos tempos. Dessa forma, com as exceções dos cantores que aderiram à bossa nova (cantoras em sua maioria, dentre as quais se salientavam Sylvia Telles, Maysa Matarazzo, Claudete Soares e poucas outras) ou aquelas que eram adoradas pela crítica especializada que fazia ou destruía carreiras (cujos exemplos podem ser encarnados em Elisete Cardoso e Dóris Monteiro), ou mesmo as que se transformaram em fenômenos devido à voz (Ângela Maria e Nelson Gonçalves), estavam em uma caminhada irreversível rumo ao ostracismo, que se acentuaria quando a década de 60 seguiu seu inexorável curso. Dessa forma, ao longo dessa década, nomes como Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Dircinha Batista, Linda Batista, Zilah Fonseca, Julie Joy, Carminha Mascarenhas, Ademilde Fonseca, Blecaute, Sílvio Caldas, Orlando Silva, Marlene, Emilinha Borba (que se encastelaria nas músicas carnavalescas, tornando-se, nos anos sessenta, a grande vencedora dos concursos patrocinados pelo poder público), Nora Ney, Bill Farr, Francisco Carlos, Carlos Galhardo e praticamente todos os outros, começaram a cair nas brumas do esquecimento, enquanto surgiam novos nomes, novos ídolos, novos ritmos. O repentino estrelato de uma nova cantora paulista – Celly Campelo – veio demonstrar que a nova década que se aproximava, seria um divisor de águas na indústria do entretenimento brasileiro.

O cinema brasileiro também se encontrava em um beco sem saída; os estúdios paulistas, por exemplo, não agüentaram os novos ventos e praticamente saíram de cena. Todos fecharam suas portas ou produziam de forma esporádica. Os filmes que ainda eram produzidos e lançados, com raras exceções, eram toscos e sem imaginação. O público não mais suportava películas de tão péssima qualidade, numa época em que, devido à abertura do mercado brasileiro posta em prática por Juscelino, as grandes produções norte-americanas praticamente dominaram a cena cinematográfica, com suas imagens coloridas em Cinemascope, sistema esse desenvolvido nos Estados Unidos como resposta ao irresistível fortalecimento da televisão que estava destruindo o sistema de estúdios e, em suma, o sistema de estrelato, até então absolutamente dominante.

O que acontecia, na realidade, é que as comédias musicais produzidas pela Atlântida e similares começaram a envelhecer pela repetição de fórmulas, artistas e linguagem que não mais respondiam aos telespectadores nesses novos tempos desenvolvimentistas. O filme Rio Quarenta Graus, de Nelson Pereira dos Santos inaugurara no país uma maneira nova de se fazer cinema, colocando, pela primeira vez, o povo como protagonista, com seus problemas familiares e econômicos, seus anseios e lutas contra um cotidiano opressor. Não era à toa que esses novos filmes – onde a denúncia social era a tônica dominante –, refletiam uma maior consciência do que se passava com os despossuídos do país, onde o deboche das chanchadas não mais teria vez. Dentro de muito pouco tempo, o Cinema Novo seria uma realidade, o que sepultaria de vez as comédias – tornadas anacrônicas – dos estúdios Atlântida e de outros mais.

Não que as chanchadas, repentinamente, deixassem de fazer sucesso. Neste ano mesmo de 1959, diversas chanchadas foram lançadas com imenso sucesso popular, ainda enchendo as salas de cinema, principalmente das cidades do interior, onde elas ainda teriam uma maior sobrevida. Dentre essas, podemos listar Minervina Vem Aí – que desenvolve a história da garota Minervina (Dercy Gonçalves) que chega ao Rio de Janeiro para trabalhar na casa de uma família decadente, à espera da salvação econômica com o casamento de uma sobrinha com um milionário, que se encanta, na verdade com Minervina, casando-se com ela, para desespero de seus patrões –, dirigida para a Cinedistri (Cinelândia Filmes) por Eurides Ramos, contando no elenco com Magalhães Graça, Zezé Macedo, Norma Blum, Catalano, Wilson Grey, Rosa Sandrini e outros mais; Dona Xepa, também dirigida por Eurides Ramos, com a espetacular comediante Alda Garrido no papel principal de uma feirante “xepeira” que sonha em ver o sucesso do filho cientista, secundada por Odete Lara, Herval Rossano, Zezé Macedo, Colé, Kilo Nelo e outros mais; Maria 38, de Watson Macedo, com Eliana Macedo no papel de uma vigarista, integrante de uma banda de delinquentes, que é designada para se empregar como babá de uma casa, visando a sequestrar uma criança. Tudo começa a se complicar quando ela, conquistada pelo garoto, decide abortar a trama, sem o conseguir. No final, após ter sido presa, ela é inocentada, sendo feliz para sempre. Também integram o elenco John Herbert, Afonso Stuart, Annabela, Herval Rossano, Zilka Salaberry, Augusto César Vanucci entre outros.

Cena do filme Minervina Vem Aí.
















Trio Irakitan em cena do filme Minervina Vem Aí


 

















Cena do filme Maria 38.




















Moreira da Silva em cena do filme Maria 38.













 




Podem-se citar ainda outras chanchadas que fizeram sucesso: Garota Enxuta, dirigida por J. B. Tanko, cujo enredo conta a história de Popó (Ankito) que trabalha como servente nos estúdios da TV Carioca, no Rio de Janeiro. Logo descobre que um diretor da emissora pretende organizar um show em homenagem ao presidente da República, vendo aí a oportunidade de conseguir uma chance para que seu grupo musical possa se apresentar. Em São Paulo, a bela Nelly (Nelly Martins), filha do patrocinador do evento, também deseja uma oportunidade para cantar. Acontece que o pai da garota é absolutamente contra suas pretensões, fazendo com ela fuja para o Rio de Janeiro em busca de sues sonhos. Após ter seu carro roubado no caminho da capital, ela recebe ajuda de Popó que, ao descobrir os dotes musicais da moça, a convida para fazer parte de seu conjunto, também formado pelo cantor Rafael (Agnaldo Rayol) e pelos violonistas Cosme (Zequinha) e Damião (Quinzinho). O talento da garota deixa Popó encantado. Ele então decide voltar à TV Carioca, levando seu grupo, agora com a garota, para um novo teste. No entanto, um mal entendido acaba envolvendo todos em uma enorme confusão. Completam o elenco Grande Otelo, Agnaldo Rayol, Renato Restier, Renata Fronzi e Carlos Imperial; Massagista de Madame, direção de Victor Lima, veículo para Zé Trindade na pele de um massagista de madames que tem uma noiva dona de uma academia de capoeira. Após alguns problemas com suas clientes, em virtude de suas investidas amorosas, ele acaba tendo como única alternativa ser massagista dos capoeiristas da academia de sua noiva. Completam o elenco Renata Fronzi, Costinha, Nancy Wandeley, Aída Campos, Rildo Gonçalves, Íris Bruzzi, Wilton Franco, Estelita Bell, Milton Carneiro, dentre outros; pode-se citar, ainda, o filme Pintando o Sete, dirigido por Carlos Manga para a Atlântida, narrando a história do palhaço Catito (Oscarito) que se esconde dentro de um carro para fugir de um casamento forçado numa cidade do interior; chegando ao Rio de Janeiro, é descoberto, hospedando-se na casa do próprio dono do carro, Dr. Cláudio (Cyll Farney), que lhe impõe uma condição: ele teria que se passar por um pintor famoso de nome Picanssô, vindo da Europa a convite da grã-fina Silvia (Ilka Soares), noiva do dono da casa, uma dondoca chegada a um alpinismo social. Acontece que Catito leva verdadeiramente a sério sua nova profissão e logo toda a elite local está comprando seus quadros. O sucesso é retumbante.

Trio Irakitan iterpretando Touradas em Madrid no filme Garota Enxuta.

















Com o passar do tempo, Pintando o Sete, um filme irreverente e irônico, ganhou certa importância crítica devido ao tom de deboche com que trata certa parcela da população e setores da intelectualidade que vivem de aparências e de valores superficiais. Oscarito dá um show de interpretação na pele do falso pintor, encabeçando um elenco que, além de Ilka e Cyll, também conta com a impagável presença de Sônia Mamede, Antônio Carlos, Maria Pétar, Grijó Sobrinho, Zélia Hoffman, Ema Dávila, Abel Pera e Vera Regina.

Todavia, nem só de chanchadas viveu o cinema brasileiro nesse ano de 1959; apesar dos problemas por que passava o cinema paulista, algumas boas produções (ao menos numa perspectiva histórica) saíram dos seus estúdios, alguns com certa receptividade do público e de crítica. Três filmes de temáticas completamente diferentes se sobressaíram dentre as dezenas de produções canhestras e mal acabadas: Cidade Ameaçada, de Roberto Farias (lançado em 1960), Moral em Concordata, de Fernando de Barros e Ravina, estreia na direção do crítico de direita Rubem Biáfora.

Cidade Ameaçada, filmado nos estúdios da Vera Cruz para a Inconfidência Filmes, foi a primeira incursão de Roberto Farias (1932 - 1918) no cinema policial, após suas experiências como assistente de direção em Maior que o Ódio, de José Carlos Burle, em 1950, e ter aprendido quase tudo sobre a sétima arte com mestres dos estúdios Atlântida como Watson Macedo, o próprio Burle, J.B.Tanko, os fotógrafos Edgar Brasil e Amleto Daissè, entre outros, além de ter realizado duas chanchadas nesse estúdio, Rico Ri à Toa (1957) e No Mundo da Lua (1958), duas experiências razoavelmente bem sucedidas que o capacitaram para um voo maior. Devido a esse aprendizado, ele se tornou um competente artesão e um diretor de primeira linha.
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O filme, baseado em um argumento do “chanchadeiro” Elinor Azevedo, com roteiro de Norberto Nath, ambos baseados no noticiário policial dos jornais, conta a história de um famoso assaltante de nome Promessinha (Passarinho no filme), o qual, com cerca de 20 anos, já se transformara em um nome conhecidíssimo das crônicas policiais, devido aos seus mais de 40 assaltos, na realidade, terminando por ser morto pela polícia, seria dirigido por Roberto Santos (1928 - 1987), que abandonara o projeto pouco antes do início das filmagens, o que possibilitou essa boa oportunidade para o cineasta carioca. Obviamente, ele não a desperdiçou, o que resultou em um filme um pouco descosturado, mas forte, que acabou por se transformar em uma crítica direta ao açodamento da imprensa em sua ânsia de sensacionalismo à custa da miséria humana.
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Com elenco encabeçado pelo irmão mais novo do diretor, Reginaldo Farias, e pela atriz Eva Wilma, o filme ainda contaria com pesos pesados da cena teatral paulista, dentre os quais Jardel Filho, Lélia Abramo, Dionísio Azevedo, Vera Gertel, Augusto Boal, Eugênio Kusnet, Miriam Mehler, Mosael Silveira, Nelson Xavier e vários outros. Em 1960, por esta sua segura direção, Roberto Farias seria recompensado pela crítica cinematográfica, ao ganhar dezenas de prêmios, dentre eles o prêmio Governador do Estado de São Paulo como Melhor Diretor do ano, o prêmio Governador do Estado do Paraná também como o Melhor Diretor, além de a película ter sido considerada o Melhor Filme no Festival de Marília. Era o começo de uma carreira brilhante que perduraria ao longo do século vinte, adentrando o seguinte. Cidade Ameaçada foi o filme que representou, em 1960, o Brasil no Festival de Cannes.

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Moral em Concordata, dirigido por Fernando de Barros, baseado na muito bem sucedida peça homônima de Abílio Pereira de Almeida (1906 - 1977), foi um filme de temática ousada para a época: a prostituição nos segmentos médios da população. Os executivos por detrás da produção, com receio da reação do público frente a um tema tão pesado, inclusive, houveram por bem iniciar o filme com uma citação de Rui Barbosa, narrada por Rubens de Falco, acerca da falta de vergonha de ser honesto, ao mesmo tempo em que nega a imoralidade do filme, deixando claro que ele apenas retrata uma situação comum no país. O roteiro assinado por Carlos Alberto de Souza Barros, conta a história de Estrela (Odete Lara), uma mulher casada com Raul (Jardel Filho), marido violento e casca grossa que não a respeita, e que, devido à falta de dinheiro, tem de fazer bicos para ajudar no sustento da família. Sua irmã Rosário (Maria Della Costa), que vive em sua casa, leva uma vida totalmente diferente, já que, além de solteira, é linda, independente e cortejada por diversos admiradores. Seu estilo de vida, completamente diferente da irmã, desperta comentários maldosos dos vizinhos, todos intuindo que Rosário é uma vigarista, uma “reles” prostituta. Após ser abandonada pelo marido, que levou consigo o filho, Estrela se convence de que sua vida era uma farsa, resolvendo, então, entrar para o mundo da prostituição, para desgosto da irmã. Um dos destaques do filme foi o figurino, a cargo do então mais famoso costureiro do país, Denner.

Quando fez Moral em Concordata, dividindo a tela com Maria Della Costa, a paulista Odete Lara (1929 - 2015) já era uma estrela desde sua brilhante atuação em Absolutamente Certo, filme de estreia de Anselmo Duarte na direção. Sua vida, entretanto, nunca fora um mar de rosas. A tragédia sempre a rondou. Filha de imigrantes italianos, tinha apenas seis anos quando a mãe, Virgínia, cometeu suicídio. O pai Giuseppe não teve sorte melhor. Atacado pela tuberculose, também se mata, quando Odete tinha apenas 18 anos. A essa altura, ela já trabalhava fora, atuando como secretária e datilógrafa. Sua beleza, porém, já nessa época, causava espanto, chamando a atenção de meio mundo.

Incentivada por uma amiga, Odete entra para um curso de modelo no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Foi a oportunidade para ela fazer história, ao participar de um histórico desfile de modas realizado no próprio MASP. Foi graças à sua beleza que Odete teve sua grande oportunidade de se relacionar com a cultura de massas: impressionado pelo porte da modelo, Pietro Maria Bardi, fundador e diretor do MASP, a indicou para a recém-inaugurada TV Tupi de Assis Chateaubriand. Primeiramente ganhou experiência e desenvoltura como garota-propaganda, até conseguir sua primeira experiência na telinha. Foi no TV de Vanguarda, programa idealizado por Cassiano Gabus Mendes que adaptava textos teatrais para a televisão; nesse programa, ela participou de montagens históricas como A Carta (1953), ao lado de Lia Aguiar e José Parisi; Hamlet (1953), com Lima Duarte no papel principal, secundado por Lia de Aguiar, Flora Geny, Dionísio Azevedo e outros; A Jaula, com um elenco só de mulheres, com destaque para Wilma Bentivegna, Marly Bueno, Lia de Aguiar, Bárbara Fazio e Márcia Real; Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, em que contracena com Fernando Baleroni, Jaime Barcelos, Heitor de Andrade, Guiomar Gonçalves e diversos outros. Logo ela também estava na série televisiva As Aventuras de Red Ringo (1954), veículo para os astros da TV Tupi, Vida Alves e Lima Duarte.

Em 1957, sua carreira toma novo impulso e a projeta para todo o país ao participar de quatro filmes em que sua presença se destaca: Gato de Madame, onde atua ao lado de Mazzaropi; Uma Certa Lucrécia, filme de Fernando de Barros com elenco encabeçado por Dercy Gonçalves: Absolutamente Certo, estreia de Anselmo Duarte como diretor que efetivamente a projetou definitivamente; e Arara Vermelha, também de Anselmo Duarte, filme em que atua, pela primeira vez, como real protagonista da história.

Com Moral em Concordata, Odete Lara ganhou o status de grande estrela, tornando-se, desde então, uma das mais brilhantes atrizes do Brasil, com atuação na televisão, teatro, cinema e música. Seu brilho maior, entretanto, estava ainda por vir. Ela se tornaria um ícone de uma nova escola de cinema que estava sendo gestada nessa mesma época. O Cinema Novo, dentro de muito pouco tempo, seria uma realidade que mudaria, para sempre, a história da cinematografia brasileira.
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Exatamente porque o Cinema Novo estava em vias de se tornar uma realidade cultural, o filme Ravina, do crítico Rubem Biáfora, com seus maneirismos e classissismos, pode soar, hoje, extemporâneo e fora de propósito. Paulistano, crítico de filmes desde longa data, atuando em jornais e revistas, como A Plateia e O Dia, em 1940; revista Inteligência, em 46; O Jornal de São Paulo, 1947; A Folha da Tarde, a partir de 1948 e, algum tempo depois, no jornal O Estado de São Paulo, Biáfora, um dos fundadores do Clube de Cinema local, em 46, que depois se tornaria a Cinemateca Brasileira, odiava o cinema brasileiro, principalmente as chanchadas cariocas. Seus modelos de cinema, nessa época, eram King Vidor, Ingmar Bergman e William Wyler, adorando o cinema mais clássico e conservador. Ravina foi assim a oportunidade que ele teve de colocar suas ideias sobre o que ele entendia ser um cinema de qualidade. Quando o Cinema Novo se tornou uma realidade, ele foi um de seus maiores opositores, o que não importava muito para Glauber Rocha e companhia, que desprezavam o crítico, considerando-o o modelo a ser desconsiderado pela nova realidade cinematográfica. Glauber chegou a classificá-lo como "burro" e "quadrado".
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Ravina, com roteiro do próprio Biáfora, em parceria com Walter Guimarães Motta, e contando no elenco com a deusa da Vera Cruz Eliane Lage, o galã do mesmo estúdio Mário Sérgio, Carlos Alberto, Milton Amaral, Sandra Amaral, Hélio Ansaldo, Tito Livio Baccarin, Lola Brah, Navarro Brito, Gilberto Chagas, João da Cunha, Maria Teresa Dantas, Ruth de Souza, Celso Faria, Gilda Nery, Luigi Picchi e outros, fracassou espetacularmente nas bilheterias, não obstante ter recebido boas críticas de parcelas da crônica cinematográfica (Paulo Emílio, entretanto, detestou o filme). O público, não obstante, realmente ignorou seu lançamento. Visto hoje, é um filme meio rococó, com seus ambientes num claro/escuro tão caros aos antigos filmes da Vera Cruz. Foi chamado por Salvyano Cavalcanti de Paiva como “um filme para iniciados”. Quer dizer, um filme para a elite, daí o desprezo do pessoal do Cinema Novo.
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Fernão Ramos, em seu texto Os Novos Rumos do Cinema Brasileiro (1955 – 1970), sintetiza exemplarmente o que significou o filme e seu contexto à época de seu lançamento:
“A boa receptividade do crítico não deixa de ser um indicador da singularidade dessa obra na produção imediatamente anterior à eclosão do movimento cinema-novista. Biáfora distingue-se em toda a década de 1950 como um crítico admirador do norte-americano William Wyler e de seu cinema com longas panorâmicas e movimentos de câmara. Em 1959 Biáfora tenta pôr em prática suas ideias, filmando Ravina, obra lançada no ano seguinte, com péssima recepção de público e também de crítica. Filme de grande orçamento, era ironicamente citado como o grande “elefante branco” do cinema brasileiro pelos diretores do Cinema Novo. Sua estória (sic) gira em torno de uma família destruída pelo vício do jogo de um de seus membros. Numa mansão nas montanhas decorre o drama dentro dum estilo de cenografia e interpretação acentuadamente clássico. Tem-se a impressão de que Biáfora tentou reproduzir no Brasil o ambiente de um dos maiores filmes de Wyler, O Morro dos Ventos Uivantes. Apesar de conter momentos interessantes em termos de estilo (principalmente pelo preciosismo excessivo), o filme é exageradamente carregado de “descobertas” de crítico, que, agora na direção, quer concretizá-las em cinema. É a obra ambiciosa de um espectador com preferências marcadas que tenta concretizar o que considera como “bom cinema”, mas esquece-se de itens fundamentais como direção de atores e desenvolvimento de roteiro. O mais surpreendente na fita é seu anacronismo com o momento histórico em que foi produzido e daí talvez seu maior charme quando visto hoje. No estilo típico das grandes produções da Vera Cruz do início da década (a começar pela utilização de Eliane Lage e Mário Sérgio, dois antigos astros dos estúdios), Ravina insiste no preciosismo clássico, quando o momento era de intensa impregnação de idéias neo-realistas sobre um cinema mais próximo da vida cotidiana, feito com baixos ornamentos”.
Apesar de seu fracasso de público, Ravina abocanhou a maioria dos prêmios Saci desse ano de 1959, ganhando como Melhor Filme, Produtor do Ano (Flávio Tambellini), Melhor Diretor (Rubem Biáfora), Melhor Ator (Pedro Paulo Hatheyer), Melhor Atriz (Eliane Lage) e Melhor Fotografia (Henry Fowle).

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Acontece que, de todos os filmes de 1959, o que ficou na história do cinema brasileiro e que brilha até hoje foi exatamente uma chanchada da Atlântida, o divertidíssimo filme O Homem do Sputnik, considerado o “canto do cisne” do referido estúdio, uma de suas grandes contribuições à sétima arte no Brasil.

O filme, com direção de Carlos Manga, baseado em um roteiro desenvolvido por Cajado Filho, e contando no elenco com Oscarito, Zezé Macedo, Cyll Farney, Norma Bengell, Neide Aparecida, Jô Soares (estreando no cinema), Hamilton Ferreira, Alberto Perez, Heloísa Helena e grande elenco, começa mostrando, em clima de suspense, uma noite chuvosa e relampejante; o cenário é uma casa que, logo saberemos, está localizada na zona rural do Rio de Janeiro. Um “travelling” parte de uma tabuleta em que é anunciada a venda de “ovos recensaidos da fonte produtora (sic)" e chega até um quarto – cuja janela fora aberta pelo vento – onde está recolhido o casal Anastácio (Oscarito) e Cleci (Zezé Macedo).


De repente, o casal ouve um grande barulho, causando grande alvoroço nas galinhas do proprietário. Curioso, Anastácio enfrenta a chuva, dirigindo-se ao galinheiro, deparando-se com um estranho objeto redondo de metal. Ele não consegue identificar o objeto que matara algumas de suas galinhas. Na manhã seguinte, o casal tem a certeza de que foram bafejados pela sorte grande: um Sputnik caíra exatamente em seu terreno. Como ele seria todo revestido de ouro, a fortuna lhes sorria, o satélite a oportunidade de se tornarem ricos e famosos. Anastácio não demora a tentar penhorar o objeto, sendo atendido por uma garota (Neide Aparecida) que, sabendo da importância do achado, imediatamente liga para seu namorado Nelson (Cyll Farney), titular de uma coluna social, que ele detesta, em que assina com o pseudônimo de Jacinto Pouchard.
Assim que o editor-chefe do jornal de Nelson toma ciência do que se passou, transforma o fato em espetáculo, dando-lhe destaque de primeira página. A notícia corre mundo e Nelson, preocupado com suas consequências, aconselha Jacinto a esconder o satélite. Ele tinha toda a razão: Não demora e espiões russos e americanos chegam ao Rio de Janeiro interessados no objeto. Os russos são severamente caricaturados, o mesmo acontecendo com os espiões norte-americanos, exemplificado em Jô Soares, em sua estreia no cinema, que só aparece em cena mascando chicletes e gingando o corpo ao som de seus dedos estalados. A França, também querendo tirar proveito da tecnologia por trás do objeto, envia uma delegação em que sua arma mais poderosa é a espiã BB, papel interpretado por Norma Bengell, em atuação impagável que a elevou definitivamente ao estrelato, ficando famosa a cena em que ela, de maiô e meias de seda, canta para o caipira, em um show de talento e sedução, visando a levar o precioso objeto não identificado para a França.

Cena do filme O Homem do Sputnik.


 














Ou seja, a guerra fria se transfere para o Brasil, carnavalizando a questão que envolvia as grandes potências. Anastácio, como todo matuto esperto também quer levar suas vantagens. Ele deseja, por exemplo, um galinheiro novo. Cleci, cujas ambições vêm à tona assim que o sonho da riqueza 
começa a rondá-la, almeja entrar para a alta sociedade; A confusão aumenta: jornalistas disputam as manchetes mais estapafúrdias; Anastácio, alucinado por BB, fica na iminência de ser seduzido por ela. Mas, uma pergunta fica no ar: afinal de contas, onde está esse tão falado Sputnik? Os acontecimentos se precipitam. Cleci, se indigna ao perceber o cerco amoroso da espiã francesa e fica indignada com o despudor de Brigitte, logo se desencantando com o “high society”, enquanto russos e americanos lutam entre si, disputando o valioso troféu, que ninguém sabe onde está. Com pressões por todos os lados, o casal não suporta a situação, terminando por revelar o esconderijo de tão disputada prenda. Todos se dirigem à casa do casal, em cujas imediações uma multidão se aglomera.

Cena do filme O Homem do Sputnik.


















De repente, surge um português montado em uma mula; segundo ele, aquele globo foi achado por ele, inclusive colocando-o em seu devido lugar, ou seja, o Sputnik era falso, um mero objeto com duas setas atravessando-o, apontando, na realidade, os pontos cardeais; um falso objeto não identificado.
A desilusão toma conta de todos, menos do jornalista Nelson, que de tudo sabia, aproveitando-se da mirabolante história para abandonar de vez sua coluna e seu pseudônimo de Jacinto Pouchard. Russos e americanos desiludidos com o auto-engano, somem de vez. O casal Cleci e Anastácio, finalmente, volta para casa para curtir novamente a paz do campo e deixar aquele pesadelo para trás. Finalmente sós, repentinamente eles ouvem um barulho. Outro objeto não identificado cai do céu exatamente em cima do mesmo galinheiro. Dessa feita, seria mesmo um Sputnik de verdade. O casal, perplexo, percebe que tudo iria se repetir novamente. Desgostosos, os dois decidem mudar-se da vila, a tabuleta que aparece no início do filme novamente aparece, indicando o fim da película, mas ficando no ar que nova intriga internacional estava em vias de novamente acontecer.
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O Homem do Sputnik foi o primeiro filme de Norma Bengell (1935 - 2013). Antes porém, já se destacava pela sua beleza o que a tornou uma das vedetes mais desejadas do Rio de Janeiro. Depois, ao longo da década de 60, ela se tornaria, junto com Odete Lara (com quem contracenaria, em 1964, no famoso Noite Vazia, de Walter Hugo Khoury), um mito, a mais famosa estrela de cinema do Brasil, indo, posteriormente, filmar na Itália, onde, apesar de sua beleza e talento, sua carreira não deslanchou. A estrela também entraria para a história do cinema ao protagonizar o primeiro nu frontal do cinema brasileiro, no filme Os Cafajestes, de Ruy Guerra, em 1962, onde contracena com Jece Valadão e com o posterior todo-poderoso diretor de novelas da TV Globo, Daniel Filho.

Nascida no ano de 1935 no Rio de Janeiro, atriz, cantora, compositora e cineasta, Norma, já aos 16 anos, entrou para o mundo da moda, desfilando para a famosa Casa Canadá. Destacando-se por sua beleza, logo foi contratada pelo empresário da noite Carlos Machado, atuando, como vedete do teatro rebolado, de vários shows na boate Night and Day, uma das melhores casas noturnas do Rio de Janeiro. Por sua beleza e tipo físico, foi contratada para o importante papel de BB na produção de O Homem do Sputnik. Sua atuação deixou a crítica estupefata, lançando-a imediatamente ao estrelato.
Também nesse ano de 1959, Norma seria a protagonista de uma estranha história relacionada com a música popular brasileira. E tudo por causa da capa de um disco. A gravadora Odeon utilizou uma foto da atriz na capa de um LP sem a sua autorização. Norma Bengell ameaçou a gravadora com um processo, sendo dissuadida de sua intenção em troca da gravação de um Long Playing somente seu, onde ela poderia inclusive escolher o repertório.
Com o nome OOOOO! Norma!, o disco tem um espetacular repertório nacional e internacional, com destaque para os “standardsFever (Jack Davenport/Eddie Cooley), That Old Black Magic (Johnny Mercer/Harold Allem), This Can’t Be Love (Richard Rogers/Lorenz Hart) e clássicos do pessoal que estaria umbilicalmente ligado à nascente bossa nova, caso de Eu Sei Que Vou Te Amar (Antônio Carlos Jobim), Eu Preciso de Você (Aloysio de Oliveira/Tom Jobim), Sente (Chico Feitosa/Ronaldo Bôscoli) e Oba-La-La (João Gilberto), música que compôs o segundo 78 rpm de João Gilberto com Desafinado.


Norma Bengell interpretando Fever.

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Norma Bengell interpretando That Old Black Magic. 












  





Norma Bengell interpretando This Cant't Be Love.







 













Norma Benguell interpretando Eu Sei Que Vou te Amar.






 














Norma Bengell interpretando Eu Preciso de Você.



 
















Norma Bengell interpretando Oba-la-la.















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Pedro Lima, o crítico cinematográfico da revista O Cruzeiro (15.08.1959), chegou a noticiar que a exibição de O Homem do Sputnik ficou ameaçada devido ao deboche com que tratou autoridades dos países envolvidos na guerra fria. Em suas próprias palavras:

“O último filme da Atlântida, O Homem do Sputnik, quase não foi exibido, por escarnecer de outros países, principalmente os Estados Unidos. O fato é que temos visto, em filmes estrangeiros, a ridicularização de cidadãos de outros países. Focalizaram até aspectos pouco lisonjeiros sobre outros estados. O Brasil tem sido vítima de tais filmes e nem por isso eles são proibidos. Mas, no caso de O Homem do Sputnik, o deboche vai além, porque visa a elementos oficiais de países amigos procedendo como ‘gangsters’. No melhor dos casos, acreditamos que o procedimento da Atlântida não seja senão fruto de ignorância (...)”

Também, o crítico cinematográfico Sérgio Augusto, mais tarde, identificaria que, por detrás da trama rocambolesca de O Homem do Sputnik, existia uma crítica acerba à
“morosidade de nossas repartições públicas, à futilidade da alta burguesia, à cupidez das grandes potências, aos absurdos da guerra fria, aos concursos de miss (...) uma sátira ao poder americano, usando as mesmas armas de sedução e manipulação da comédia clássica americana.”

Ainda seriam feitas, até meados da década seguinte, diversas chanchadas, mas seus dias de glória e esplendor estavam mesmo contados. A realidade, as novas condições objetivas, a nova mídia televisiva, ajudaram a enterrá-las, muitos de seus humoristas migrando para a televisão, onde os programas humorísticos logo se tornaram um fenômeno de popularidade. A década de 60 foi a coveira das chanchadas brasileiras.

3 comentários:

Anônimo disse...

Ufa!!! Como ninguém comentou??? Excelente post! Acabei de ter uma "senhora" aula. Sou super fã dos filmes da Atlântida com Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade e toda a grande turma. Ainda assisto no Canal Brasil.
Parabéns!
Abraços, Patrícia
(apareça no meu blog)

Anônimo disse...

Excelente!!
Gostei muito do blog. É uma pena que os jovens de hoje não valorizam como devia nossa história. Principalmente história de nossa arte. Música, teatro, cinema....
Um abraço.
Ivo

Anônimo disse...

Adorei foi uma otima leitura. Uma verdadeira aula de cinema, pena ter acabado...