16.8.06

O TBC SE PROFISSIONALIZA

Profissionalizado o TBC em meados de 1949, a companhia teatral entra em 1950 com um corpo técnico bastante competente e com um elenco fixo sem a menor sombra de dúvidas. Também, pela primeira vez, uma companhia teatral brasileira não seria dominada por seus atores de primeira grandeza. Adolfo Celi, o primeiro diretor do TBC, era muito consciencioso de seu trabalho, um tanto rústico, e, praticamente, fez escola ao exigir que os atores executassem exatamente o que ele queria.
Segundo Décio de Almeida Prado, a escolha do repertório e a orientação geral partiam sempre de Zampari e dos diretores, sendo o repertório escolhido tendo em vista não a adequação ator/personagem, mas levando-se em conta seu valor literário, artístico e comercial. A escolha do elenco era uma etapa posterior. Aliás, um dos grandes problemas do teatro brasileiro era exatamente esse: elenco. Coincidentemente, em 1948, no mesmo ano de criação do TBC, Alfredo Mesquita funda a EAD – Escola de Arte Dramática, ligada à Universidade de São Paulo e com a pretensão de formar artistas não diletantes para suprir um mercado que se ampliava.

Além de noções de ética e de como lutar contra um forte preconceito ainda existente com relação aos artistas teatrais, aprendia-se a desenvolver o corpo, o uso da voz e a dicção apropriada; mas, mais importante, o curso de formação de ator era rigoroso em termos acadêmicos, ensinando aos jovens pretendentes todas as facetas relacionadas ao teatro, a cenografia, a crítica, a dramaturgia, noções de esgrima, história da arte no geral e do teatro em particular etc.

Pesos pesados ligados ao teatro foram os primeiros professores da EAD: Sábato Magaldi, Décio de Almeida Prado, Cacilda Becker, Paulo Mendonça, Alfredo Mesquita, Vera Janacopoulos e vários outros. A pretensão do EAD se tornou realidade, saindo de seus quadros artistas que logo se transformariam em grandes astros e estrelas, entre eles, Araci Balabanian, Berta Zemmel, Leonardo Vilar, Jorge Andrade, Francisco Cuoco etc. Décio de Almeida Prado não era só professor da EAD. Na verdade, ele pode ser considerado a própria alma do teatro paulista. O crítico mais respeitado, o crítico mais temido.

Nascido em São Paulo (14.08.1917), formou-se aos 21 anos em Filosofia e Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e em Direito um pouco mais tarde (1941) também pela USP. Desde muito cedo se juntou a grupos interessados em influir nas questões culturais da cidade, tendo participado, já aos 18 anos, da revista Movimento criada por um de seus mais constantes e fieis amigos, Paulo Emílio Salles Gomes, que teve vida curta , aliás, curtíssima, só um número, o bastante para que conhecesse e se entrosasse com a nata da intelectualidade paulistana, mais precisamente a elite modernista (Mário de Andrade, Oswald de Andrade). O golpe do Estado Novo abortou esse início de movimento, com a prisão de Paulo Emílio e sua posterior viagem para a França. E não demora, logo Décio também parte para Paris.

Em Paris, toma contato com o que de mais moderno existia em termos de teatro, encarnados nas figuras de Louis Jouvet, Charles Dullin, Gaston Baty e Georges Pitoeff, os quais, cada qual à sua maneira, estavam contestando o “velho teatro”, a comédia ligeira, o teatro de boulevard, considerados por Décio como “muito codificado... um cenário só, uma peça de fundo realista, geralmente numa sala, em três atos (...)"

Com sua volta para o Brasil, é convidado para ser o crítico teatral da revista Clima, fundada por seu futuro colega na EAD, Alfredo Mesquita; o que aconteceu de verdade é que Décio logo se tornou a alma da revista, sua casa logo se transformando na redação e ponto de encontro dos jovens intelectuais da paulicéia. A publicação, no entanto, teve também vida curta, somente três anos, publicando 16 números, tempo suficiente para influenciar toda uma geração de entusiastas do teatro.

Sua participação como crítico teatral da revista, porém, rendeu frutos; Alfredo Mesquita, pouco tempo depois, cerca de 2 anos, chama Décio para exercer sua nova profissão de crítico teatral no jornal O Estado de São Paulo, em um momento muito especial, já que o teatro, àquela altura, passava por grandes transformações, deixando de lado a poderosa figura do ator principal para se fixar no espetáculo propriamente dito e onde o diretor se torna a figura chave da encenação.

Imediatamente, suas críticas, profundas e elegantes (porém demolidoras) a favor da modernidade do teatro chamam a atenção dos leitores jovens, que logo o transformam em ídolo. Décio era o tipo de crítico que, não obstante sua elegância, fazia com que os artistas não dormissem às vésperas da publicação de seus artigos. Suas críticas a Pedro Bloch, por exemplo, ficaram na história. Não perdoava os chavões morais e psicológicos do aclamado autor de As mãos de Eurídice, uma unanimidade do Brasil de então. Quando escreveu que


"Pedro Bloch, embora não destituído de habilidade nem de senso teatral, é primordialmente um autor de público, à cata de bilheteria, pronto a negociar com a vulgaridade sempre que necessário”,


foi um pequeno escândalo nacional. Como Bloch era carioca, e o teatro que se praticava na Capital Federal era aquele do tipo abominado por Décio (com as excessões já apontadas das montagens de grupos como Os Comediantes), suas críticas àquele teatro ligeiro representado por Jayme Costa, Procópio Ferreira, Eva Todor, Dulcina e outros eram demolidoras, temidas e odiadas.


Nesse ano de 1950, com o provável desdém de Décio, várias companhias teatrais cariocas aportaram em São Paulo. Dulcina (atualmente em processo de reabilitação por parte da crítica) encena O Sorriso da Gioconda (Huxley) e As Solteironas dos Chapéus Verdes (Acrement), execrados pela crítica, mas com público cativo.

Olga Navarro, uma atriz de primeira grandeza, também aportou em terras paulistanas e encanta o público com a peça de Karl Schonherr A Endemoniada, tendo a crítica paulista de se curvar diante de seu belíssimo desempenho. Olga também protagoniza Nina, de Roussin, tendo como companheiros Fregolente e Luiz Linhares. Mas, sucesso mesmo faz Bibi Ferreira no espetáculo de Chianca de Garcia Escândalo 1950, com cenários do grande Pernambuco de Oliveira e figurinos de Alceu Pena, famoso por suas páginas de moda na revista O Cruzeiro. Apesar de ser teatro de revista, abominado pela crítica, esta teve que se curvar diante da beleza e elegância do espetáculo da grande atriz carioca. Bibi sempre foi Bibi.


Décio considerava sua missão colocar em cheque esse tipo de teatro que ele considerava ultrapassado. E para isso, ele não media conse qüencias. Quando Eva Todor, já um ídolo nacional, veio com seu teatro ligeiro para uma temporada em São Paulo, o crítico não perdoou e simplesmente arrasou com o espetáculo.

Eva se sentiu pessoalmente atingida e exigiu explicações a Júlio de Mesquita , o patrão. Décio não
se curvou, argumentando que era favorável a um teatro diferente que então surgia, um teatro renovado, completamente diferente daquele representado por Eva e sua companhia. Obviamente ele ganhou a parada.


***
Para abrir a temporada de 1950, foi escolhida pelo TBC a peça do filósofo, romancista, e teatrólogo francês Jean Paul Sartre, Entre Quatro Paredes, traduzida pelo poeta modernista Guilherme de Almeida, dirigida por Celi e interpretada por Sérgio Cardoso (recém contratado após ser considerado pela crítica o mais promissor ator de sua geração), Cacilda Becker e Nydia Lícia. Como complemento a tão pesado espetáculo, seria também montada a peça de Tchekhov Um Pedido de Casamento, com Cacilda encabeçando o elenco.

A escolha da peça, a princípio, parecia inadequada; Sartre estava naquele momento entre dois fogos: de um lado, o Partido Comunista, que não via com bons olhos o existencialismo do polêmico autor; de outro, a poderosa Igreja Católica, que considerou a peça indigna de ser assistida por católicos. Com a polêmica, a censura entra em cena, patrocinando um dos mais hilariantes episódios jamais acontecidos no teatro brasileiro: a de um oficial de justiça levando ao teatro uma intimação dirigida a… Jean Paul Sartre (!!!). No entanto, após uma apresentação para as autoridades da censura, a peça foi liberada e se constituiu no primeiro grande triunfo do TBC, agora profissionalizado.

Claude Vincent, crítico do Tribuna da Imprensa, assim viu o episódio:


“O TBC conseguiu reunir naquela mesma noite os artistas, os diretores do teatro e três funcionários da Censura e da Segurança Pública. Assisti a esse ensaio. Não havia roupas nem cenário completo. Os artistas estavam exaustos, depois de vários ensaios durante o dia, e nervosos por saberem que desse espetáculo improvisado dependeria a estréia no dia seguinte. A angústia geral era contagiosa. (...) Foi inesperado. Ao cair do pano, os três representantes das autoridades civis bateram palmas! O censor acrescentou que era católico praticante. Proibiram, porém, para menores de 18 anos.”


Após essa montagem tão polêmica, o pessoal do TBC optou por montar, em seguida, com muito sucesso deve ser dito, Os Filhos de Eduardo, um boulevard menor de Sauvajon, em que, além de atuar, Cacilda também dirigia, em duo com Ruggero Jaccobi, pela primeira vez. Só que novos problemas se avizinhavam.
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Para a próxima montagem, escolheu-se a mais do que polêmica peça A Ronda dos Malandros, adaptada por Ruggero Jaccobi da Ópera dos Mendigos, de John Gay, estrelada por Cacilda Becker e Sérgio Cardoso; apesar de seu grande sucesso, foi retirada de cartaz, abruptamente, por Franco Zampari, ato objeto de celeuma até hoje. Segundo alguns, Zampari não teria gostado da montagem, não por problemas estéticos, mas, sim, ideológicos: a peça teria alcançado sucesso com público popular, pouco habituado às montagens “aristocráticas” do TBC, o que confundiu a crítica e horrorizou aquela parcela de público mais conservadora. Inconformado, Ruggero Jaccobi pediu demissão, espalhando aos quatro ventos que fora alvo de veto ideológico por parte de Zampari. Não obstante esse contratempo, ninguém na companhia se abalou, confiando na solidez do grupo que muito ainda tinha que mostrar.
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Após estas primeiras experiências, as montagens se sucedem no TBC: A Importância de Ser Prudente, de Oscar Wilde, dirigida por Luciano Salce e, encabeçando o elenco, Cacilda, Nydia Lícia e Sérgio Cardoso. O espetáculo rendeu outra divertida história dos bastidores do teatro brasileiro. Cacilda usava um vestido comprido como mandava a moda de então e, em determinado momento, pisou na saia, continuando, porém, a andar em cena. Enquanto andava, a saia ia diminuindo e abaixando, o que fazia o elenco rir em cena. Como tinha muitas falas, além de ter o famoso “mijo solto”, Cacilda não podia rir e então começou a urinar em cena, deixando um rastro de urina por onde passava.
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Logo após, o grupo entra nos eixos e é encenada O Anjo de Pedra, do jovem maldito do teatro americano Tennessee Williams, autor mais quente da atualidade, apesar de seus temas audaciosos, abundantes de taras e perversões. Alguns críticos consideraram tão portentoso o trabalho de Cacilda nessa peça que, daí em diante, ela se transformaria, confirmando todos os prognósticos, na estrela absoluta do teatro brasileiro. Essa peça também se notabilizou por ser a estréia (em substituição a Nydia Lícia) de uma outra atriz de primeira grandeza, cujo sucesso perdura até hoje: Cleyde Yáconis, a irmã caçula de Cacilda Becker. Aliás, a história dessa substituição merece entrar nos anais das casualidades teatrais.

Com a saída de Nydia Lícia, com a peça fazendo sucesso, o grupo se viu de repente sem uma de suas principais atrizes. O pior era que não havia ninguém naquele momento para substituí-la, assim, sem delongas. Cleyde dirigia o guarda-roupa do TBC e assistia a todos os ensaios para verificar a adequação das roupas com os artistas. Desta forma, como, segundo ela própria dizia, tinha uma memória de elefante, acabava por decorar praticamente todos os papéis das peças encenadas pela companhia. Ao ver que o grupo não encontrava solução para tão grave problema, Cleyde, se oferece para entrar em cena. Obviamente, um silêncio constrangedor foi a resposta inicial; depois, os comentários críticos e confusos. Mas Cleyde, com o fogo da juventude, simplesmente disse:

"Ué, não basta repetir tudo o que a Nídia fazia? Não é só dizer o que ela dizia? Andar de um lado para o outro, sentar no banco, levantar, vir mais pra cá e ir mais pra lá?.

Para quebrar o silêncio que se seguiu a suas palavras, a futura atriz arrematou: "tudo o que ela fazia, eu posso fazer".


Cleyde estreou na noite seguinte e, durante o espetáculo, o nervo tomou conta de toda a companhia, muitos esquecendo o papel, os atores gaguejando. A encenação naquele dia foi um horror. Somente uma artista brilhava no palco: Exatamente Cleyde Yáconis, calma, segura, atenta e achando graça naquilo tudo.

Naquele dia também os palcos brasileiros ganhavam uma estrela.

Vieram a seguir as montagens de O Homem da Flor na Boca (Pirandello), Lembranças de Gente (Tennessee Williams), Electra e os Fantasmas (Eugene O’Neill), O Banquete (Lúcia Benedetti), Rachel (Lourival Machado) e Pega-Fogo, outro triunfo espetacular de Cacilda Becker.

Um ano após sua fundação, delineou-se o que seria a marca registrada do TBC até o início dos anos sessenta: O teatro europeizado, com montagens razoavelmente suntuosas e sem nenhuma preocupação com o homem, enquanto ser de uma sociedade de classes, o que aconteceria somente no início dos anos sessenta, ou seja, o teatro era pensado apenas como arte, a estética sobrepujando a ética, aliás exatamente como pensava grande parte da intelectualidade brasileira. “Qualidade”, esta era a palavra de ordem, não interessava se a montagem fosse de um clássico, ou se fosse meramente de um texto comercial. O importante era manter economicamente o grupo. E isso o TBC demonstraria, ao longo dos anos, que conseguiria, apesar de todos os pesares.




Um comentário:

Anônimo disse...

Se é fato que o TBC significou renovação no panorana teatral brasileiro, também o é, afirmar, que afastou o grande público das salas de espetáculo. Ainda em uma visão pragma´tica: o que acabou perdurando na memória coletiva foram - justo - as comédias "leves" e os autores e atores que as eternizaram: Pedro Bloch, Procópio e Bibi Ferreira, Eva Todor, Dulcina Moraes etc. Um erro foi fatal para o TBC - o querer impor os próprios conceitos de estética, interpretação e temáticas etc, ao grande público. Em boa verdade, o teatro de comédia, com sua leveza, foi sempre um veículo mais eficaz e atraente de abordar temas importantes do cotidiano.
Renovados parabéns!
Fco. Patrício