18.8.06

INTRIGAS NO SET

Com o sucesso popular do ano anterior de Carnaval no Fogo, os estúdios Atlântida não quiseram jogar para perder e lançam nesse ano de 1951 um de seus títulos mais famosos e grande sucesso de bilheteria, Aviso aos Navegantes, que, praticamente, repetia a fórmula utilizada no filme anterior: muita confusão, muito humor, romance açucarado e, como não podia deixar de ser, muita música, tanto aquelas chamadas de “meio de ano”, como vários lançamentos para o carnaval que se aproximava.

Oscarito e Eliana Macedo em uma cena de Aviso aos Navegantes.



Com direção de Watson Macedo, argumento/roteiro de Alinor
Azevedo, fotografia de Edgar Brasil, música de Osvaldo Alves, com a regência do competente maestro Lindolfo Gaya e contando com praticamente todo seu elenco estelar, Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Adelaide Chiozzo, José Lewgoy, Ivon Curi e muitos outros, o filme é, como sempre, uma farsa, uma paródia dos filmes hollywoodianos em tons chanchadeiros: uma companhia brasileira de revistas se despede de Buenos Aires rumos ao Rio de Janeiros em um transatlântico; aproveitando a oportunidade Frederico (Oscarito) embarca clandestinamente, sendo descoberto por Azulão (Grande Otelo), o cozinheiro mestre-cuca, que, para não denunciar o clandestino, o obriga a trabalhar em seu lugar. Alberto (Anselmo Duarte), oficial do navio, namora Cléia (Eliana), a estrela da companhia, que, por seu lado, desperta a paixão de um príncipe pra lá de duvidoso, papel desempenhado por Ivon Curi, considerado por José Amádio, crítico de O Cruzeiro de “ingrato e comprometedor”, uma vez que, como seria de costume, o ator/cantor interpretaria o personagem de uma maneira obviamente gay. E para não decepcionar seus admiradores, José Lewgoy representa um mágico realmente muito suspeito, mas que, na verdade, é um espião internacional.


Grande Otelo em cena no filme Aviso aos Navegantes.



Os números musicais são vastos e variegados: Adelaide Chiozzo
(com Eliana) canta seu maior sucesso,
Beijinho Doce; Cuquita Carballo, uma vedete cubana que causou um certo furor aqui no Brasil no início dos anos 50, a música A Quebrar los Cocos; e mais: Eliana (Bate o Bombo, Sinfrônio), Dalva de Oliveira (Ave Maria), Emilinha Borba (Tomara Que Chova), Jorge Goulart (Sereia de Copacabana), Oscarito(Toureiro de Cascadura), Bené Nunes (Ciúme), Francisco Carlos (Meu Brasil), Jorge Goulart (Que Será) Oscarito (Marcha do Neném) Quatro Ases e Um Coringa (Marcha do Caracol), Ruy Rey (Candelária) e diversos outros.


Adelaide Chiozzo e Eliana Macedo interpretando Beijinho Doce (Nhô Pai)



Oscarito interpretando Marcha do Neném (Kécius Caldas/Armando Cavalcanti).



Eliana Macedo interpretando Bate o Bombo, Sinfrônio (Humberto Teixeira).



Ruy Rey em cena no filme Aviso Aos Navegantes.



Em sua crítica, José Amádio chama o
filme de “
dispersivo”, carecendo de “concatenação
”. Porém reconhece:

“a película preenche suas finalidades. Está fazendo dinheiro para o produtor e divertindo o público. E está muitos pontos acima de obras nacionais congêneres onde tudo é improvisado e com muito mau-gosto e pornografia”.

***

Enquanto isso, em São Paulo, dois filmes foram realizados pela Vera Cruz em 1951: Terra é Sempre Terra e Ângela, este último, baseado no conto de Augusto Hoffmann Sorte no Jogo.

A realização desses dois filmes não estava exatamente nos planos de Cavalcanti. Ele planejava, isso sim, filmar a vida de Noel Rosa, com o título de O Escravo da Noite. Com a saída de Ruggero Jacobbi da companhia, desorganiza-se a produção. O cineasta, travestido de produtor, porém, não desiste e encarrega Adolfo Celi de continuar trabalhando na história. Mas Celi tinha outros planos relacionados com seu trabalho no TBC e, inclusive, apoiado pelos executivos dos estúdios, recusa o trabalho. Sentindo que as coisas estavam indo muito mal, pressionado por todos os lados e tendo que apresentar outra história para ser filmada no mais breve espaço de tempo, Cavalcanti se vê obrigado a aceitar um argumento de Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida – Terra é Sempre Terra –, baseado na peça desse último, Paiol Velho, aquela mesma posteriormente montada por Ziembinski, para ser a próxima produção da Vera Cruz.

Tom Payne, segundo Cavalcanti, cheio de ambições e, além de tudo, noivo da principal estrela dos estúdios, Eliane Lage, apesar de sua inexperiência, é escolhido para dirigir o filme, provando sua total incapacidade. O argumento seria simplesmente infilmável, tendo Cavalcanti, em conjunto com Guilherme de Almeida, que remendá-lo às pressas, devido aos seus enormes defeitos.

O caso de Ângela foi diferente. Cavalcanti já vinha pensando há anos em filmar a história. Só que não com tanta pressa. De qualquer maneira, o filme foi realizado pari passu com Terra é Sempre Terra, geralmente em momentos alternados, contando com a seguinte equipe técnica: na produção, Alberto Cavalcanti; direção de Tom Payne; argumento de Gustavo Nonemberg ("um vulgar intrigante de esquina e mesa de café", segundo Cavalcanti); diálogos de Aníbal Machado; roteiro de Nelly Dutra; fotografia de Chick Fowle; montagem de Osvaldo Haffenrichter e música de Francisco Mignone. O elenco estelar contava com Eliane Lage, Mário Sérgio, Ruth de Souza, Alberto Ruschel, Inesita Barroso, Luciano Salce, Nídia Lícia, Abílio Pereira de Almeida e um grande elenco de suporte que logo se destacaria no panorama cinematográfico nacional e em outras áreas, como Carlos Thiré, Milton Ribeiro, Maria Clara Machado, Renato Consorte, Sérgio Hingst, Xandó Batista etc.


Segundo Cavalcanti, a história de Ângela - a destruição dos laços matrimoniais em virtude do vício do jogo – como fora escrita sob sua orientação - tinha ficado razoavelmente dentro de suas expectativas; porém, após sua tumultuada saída da companhia, Abílio Pereira de Almeida e Tom Payne, que substituíram o diretor já escalado, Martim Gonçalves, não compreenderam o espírito da história, transformando-a "numa intriga pueril e inconseqüente".


Realmente. O enredo desenvolvido por Cavalcanti conta a história de Gervásio, um jogador inveterado que, pouco a pouco vai perdendo tudo, até sua última propriedade, a mansão onde vive com a mãe, a enteada e a esposa doente. O vencedor do jogo é Dinarte, que insiste em ver a propriedade naquela mesma noite. Durante a visita Ângela, a enteada, comunica o falecimento da esposa. Dinarte acaba se envolvendo com Ângela, com quem termina por se casar, depois que ele abandona sua amante Vanju (Inesita
Barroso, em grande forma como atriz), uma cantora popular. O casal, no início do relacionamento, vive bem, viajando às Missões e ao Rio de Janeiro. Entretanto, Dinarte continua jogando, o que atrapalha o relacionamento do casal. Com o nascimento da filha, Dinarte promete parar de jogar, não o fazendo, contudo. E assim, em todo o tipo de jogatina – bilhares, cavalos e brigas de galos –, vai perdendo todo o seu patrimônio, semelhante ao que acontecera com Gervásio. A família se dissolve, nada mais restando a Ângela do que cuidar da criança e mergulhar nas recordações dos bons dias de outrora.


***

Terra é Sempre Terra, baseado, como visto, na peça Paiol Velho, de Abílio Pereira de Almeida, foi o texto escolhido para se constituir na primeira produção da Vera Cruz neste ano de 1951.

Produzido por Alberto Cavalcanti, dirigido por Tom Payne, considerado pelo produtor ambicioso e incapaz por nunca ter dirigido um filme em toda a sua vida, tendo sido, no máximo, segundo assistente de direção na Inglaterra, o filme teria como astros principais Mário Sérgio, Marisa Prado, Eliane Lage (recém saída de Caiçara, aqui em minúsculo papel), Célia Biar, Ruth de Souza, Lima Barreto, Ricardo Campos, o próprio Abílio Pereira de Almeida e grande elenco. Como Eliane Lage e Mário Sérgio já estavam, mais ou menos, lançados após o sucesso de Caiçara, além de já estarem escalados para a nova produção da companhia - Ângela - a publicidade do filme se concentrou na nova estrela da companhia, a belíssima morena Marisa Prado.


Datilógrafa nos escritórios da Vera Cruz, depois assistente de montagem, trabalhando com Haffenrichter, Marisa, aliás, Olga, uma lindíssima morena nascida no interior paulista (Araçatuba) e ora trabalhando em São Bernardo do Campo, assim como milhares de outras moças, também sonhava com o estrelato, principalmente estando tão perto de artistas famosos no Brasil inteiro. Como a companhia não encontrava uma protagonista à altura para o filme, várias atrizes e aspirantes de atrizes ambicionavam o papel. Marisa, assim como várias outras participaram de um teste de aptidão cinematográfica. Aprovada, ganhou o papel.

A máquina publicitária dos estúdios, então, entra em cena; e logo as redações dos jornais, outra vez, a exemplo do que acontecera quando do lançamento de Eliane Lage, são inundadas com reportagens sobre como uma mocinha simples do interior, meiga e bonita encantara Cavalcanti, assim que este a viu nos sets de filmagens. Impressionado com seu porte e beleza bem brasileiros, o veterano diretor a convida para um teste. Do teste, sai a mais nova estrela brasileira, a "Cinderela da Vera Cruz". Batizada com o nome de Marisa Prado pelo entãojovem roteirista José Mauro de Vasconcelos (Meu Pé de Laranja Lima), a jovem estrela está pronta para uma carreira de sucessos.

Entrementes, as relações entre a Vera Cruz e Alberto Cavalcanti se deterioram em tempo recorde. Primeiro, ele teve que aceitar a realização de Terra é Sempre Terra com a direção de Tom Payne, por ele considerado sem qualidades para dirigir um filme vindo de uma companhia que ambicionava até vôos internacionais e que serviria de referência para toda uma futura cinematografia. Depois, as brigas e confusões com Zampari chegaram a níveis insuportáveis por diversos motivos, dentre eles o fato de Cavalcanti ser considerado um gastador incontrolável, com manias de perfeccionismo, o que se mostrou um falso argumento, porque, desperdício mesmo aconteceria nas filmagens de, por exemplo, Tico-Tico no Fubá, quando ele já estava longe da Vera Cruz. Cavalcanti, entretanto, credita sua desgraça devido ao clima de animosidade criado contra ele pelos "italianos".

A se dar créditos, porém, ao depoimento de Gini Brentani, mulher de Jacques Deheinzelin, Cavalcanti tinha mesmo que desconfiar de todo mundo. Depois de elencar uma série de fatores e problemas que, segundo ela, ajudaram a prejudicar as relações interpessoais e profissionais do pessoal contratado pela companhia, e, conseqüentemente todo o filme, Brentani parte para o ataque frontal. Em um famoso depoimento, importante pela crueza, diz textualmente:


“(...) E havia os pederastas, naturalmente; você pode imaginar que, em se tratando de gente contratada por Cavalcanti, eles eram bastante numerosos. Hoje, histórias de homossexualismo se tornaram muito chãs; naquele tempo, pelo menos, ser homossexual era original, hoje nem isso é mais. Então nem vou contar o que acontecia, era simplesmente grotesco. E não se tratava de homossexualismo apenas, havia de tudo; bebedeiras, casos escandalosos envolvendo gente conhecida, orgias primárias. Um bando de depravados. As bichas não eram os piores, alguns dos estrangeiros não eram bichas, mas eram sujeitos repulsivos, sob todos os pontos de vista, intratáveis no convívio e no trabalho (...)"


A contratação pela Vera Cruz de um outro produtor, Fernando Barros, ironizado virulentamente por Cavalcanti, a quem chamava de "aquele maquiador português dos produtos Coty", rompendo um acordo existente entre ele e os magnatas da companhia, foi, nas palavras do famoso cineasta, a gota d'água que faltava. Julgando-se prejudicado e incompreendido, Cavalcanti, que antes já ameaçara sair, desta vez não se conteve e abandona os estúdios Vera Cruz para sempre. Os críticos e estudiosos consideram sua saída como o fim da primeira fase da companhia paulista.

Aos trancos e barrancos, entretanto, as filmagens de Terra é Sempre Terra continuam, mas tudo estava errado; a temática rural do filme não era bem entendida pelos estrangeiros engajados na produção. Se a história do filme se passasse no sul dos Estados Unidos, nada mudaria no entendimento de grande parte dos técnicos estrangeiros partícipes da elaboração do filme. O diretor encarregado nada entendia de Brasil (nem de cinema, segundo Cavalcanti) e de suas contradições. O resultado foi um filme fraco, defeituoso e um pastiche de vários filmes que nada acrescentou à cinematografia brasileira.


O enredo do filme é sobre a decadência, coisa que Abílio Pereira de Almeida conhecia muito bem: João Carlos tem uma fazenda de café em estado de pura decadência, o Paiol Velho do título original da peça. Sua vida se resume em gastar o resto do dinheiro que possui em divertimentos mundanos, o jogo principalmente. Tonico, imigrante italiano, é que tenta administrar a fazenda da melhor maneira possível. Na cidade, a dona da plantação decide mandar seu filho, jogador e mulherengo, cuidar da fazenda. No vilarejo vizinho, conhece várias pessoas, iniciando novamente uma vida de jogatina. Não demora a perder tudo, inclusive o dinheiro guardado para o pagamento de seus peões. Paralelamente, seduz a mulher do capataz, que fica grávida dele. Está armada a trama: enquanto o herdeiro dissipa sua fortuna, o italiano trabalha de sol a sol. O resultado também é previsível. José Carlos decai de maneira definitiva, enquanto o imigrante enriquece, fruto de seu trabalho ardoroso e de tramóias, roubando, inclusive, nas colheitas; e seu sonho não é de todo impossível: substituir seu antigo empregador na elite cafeeira.. Tonico então se oferece para comprar-lhe a plantação e, assim, pagar-lhe as dívidas de jogo.


Durante a festa em que comemora a compra da propriedade, fica sabendo que sua mulher terá um filho do jovem, sofrendo com isso, um ataque. Chegam então a viúva e seu irmão para recusar a venda, mas Tonico, negando-se a desfazer do negócio, se exaspera e mostra sua esposa grávida, ameaçando provocar um escândalo sobre o fato. O jovem tenciona pegá-lo e, desta vez, o ataque é mortal. Depois do enterro, a viúva de Tonico muda-se para a "Casa Grande" da plantação, para ali ter seu filho; assim a terra seguirá sempre pertencendo à família.

O filme mostra que, apesar da crise do café – novos tempos, os tempos da industrialização e seus novos barões, prenunciando um novo Brasil – Tonico, o italiano, através de seu labor, traz novo alento e riqueza ao Paiol Velho, deixando clara a mensagem de que a decadência da lavoura cafeeira se verifica devido à inércia de antigos proprietários; mãos novas e laboriosas alteram esse estado de coisas, proporcionando para quem trabalha riqueza e poder.


O mais interessante, porém, estava por vir. O jornal O Estado de São Paulo (comenta-se que por influência da própria Vera Cruz), resolve criar neste mesmo ano de 51 um prêmio de incentivo e reconhecimento do que de melhor fosse feito nas artes cinematográficas, um Oscar à brasileira. Esculpido por Bracheret, o símbolo escolhido em concurso foi o Saci, e a premiação já aconteceria neste mesmo ano.


Dos 30 filmes realizados no Brasil nesse ano, (18 no Rio de Janeiro, 10 em São Paulo, 1 em Belo Horizonte e 1 em Curitiba), e das 4 categorias, instituídas, Terra é Sempre Terra ganhou 3 delas, Melhor Filme, Melhor Diretor (exatamente para Tom Payne) e Melhor Atriz (Marisa Prado), estreando no dia 2 de abril de 1951 no cine Marabá e em mais 14 cinemas.


Ângela estreou em 15 de agosto do mesmo ano, também no Marabá e em mais 11 cinemas, permanecendo duas semanas em cartaz, fazendo bonito dentre os filmes lançados nesse ano.


A despeito das intrigas e dificuldades, nossa Hollywood italianada ainda daria muito o que falar.

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