Antes mesmo de tomar posse, a 31 de janeiro de 1951, Getúlio Vargas teve uma pequena mostra do que o esperava nesse novo mandato. A UDN, Aliomar Baleeiro à frente, tenta impedir-lhe a posse, argüindo, frente ao Tribunal Superior Eleitoral, que Getúlio não alcançara a maioria absoluta dos votos (acima de 50%), conforme poderia ser interpretado o que estava disposto sobre a matéria na Constituição de 1946. O argumento do matreiro udenista era o de que "a Carta de 1945 não dizia, taxativamente, que a eleição do presidente da República deve ser por maioria absoluta. Mas pode-se compreender assim". Estillac Leal, assim que se instala a polêmica, parte, destemidamente, em socorro do amigo. Aproveitando uma ocasião cívica, o 15 de novembro, dia da Proclamação da República, em sessão solene, discursa, e aproveita para mandar mais recados aos golpistas de sempre:
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"(...) A soma de representantes de tantas lutas pela manutenção da legalidade republicana é um conforto e um estímulo aos que hoje se mantêm decididos a sustentar a República, e a respeitar a vontade do povo, fonte geradora do bem público e da legalidade.
Nos dias de hoje, circulam rumores agourantes que visam a solapar os princípios em que se assenta a legalidade, isto, é, o voto e a sua legítima representação. Chegam mesmo tais provocações ao despautério de levantar dúvidas à legitimidade do pleito de 3 de outubro último, proclamado como o mais livre , o mais honesto e o mais regular que já se realizou em nossa terra.
(...)Toda a vez que a República periclitou - e ela está em perigo neste momento - as forças militares souberam, com desassombro, defender a legitimidade republicana. As gerações republicanas aqui presentes , desde os mais velhos aos mais jovens, estavam e estão convencidas desta verdade. E que agora, mais do que nunca, nesta encruzilhada, devemos todos ficar vigilantes e atentos, porque, repito, o regime periclita diante do uma onda de especuladores solertes que, sob a capa de protegê-lo, pretendem asfixiá-lo Sofismas grosseiros, a serviço de interesses inconfessáveis, buscam destruir os fundamentos legítimos das instituições republicanas que exprimem a formação democrática do poder. Contra esses sofismas e seus autores, devemos nos manifestar clara e meridianamente.".
Nessa contenda, Aliomar Baleeiro e seus companheiros udenistas se deram mal; e, assim, com o aval dos militares, com o declarado apoio do PSD e do PTB ao seu governo e a confirmação pelo TSE de sua vitória (18.01.51), Getúlio toma posse, recebendo a faixa presidencial das mãos do general Dutra, seu antecessor. Tão logo é que empossado, Getúlio discursa pela primeira vez como presidente da República:
"Brasileiros!
Ao deixar o recinto do Congresso Nacional, onde (...) prestei o compromisso legal de servir ao Brasil, às suas instituições livres e aos seus interesses supremos, o meu primeiro desejo foi dirigir-me ao povo para participar do seu contentamento e comungar das suas esperanças. Eleito a 3 de outubro como o candidato do povo, aspiro e espero governar como o presidente do povo.
Os profetas de calamidades, como aves agoureiras, andaram anunciando a aproximação das horas de cataclisma. Outros, como falsos pastores, pretendiam assumir uma espécie de curatela da opinião popular, porque ainda não estávamos amadurecidos e preparados para os prélios cívicos e os embates ideológicos que fortalecem e vivificam o exercício e a prática da democracia. Os seus prognósticos lúgubres e as suas previsões funestas não se confirmaram. A eleição de 3 de outubro desmentia os seus presságios e também os argumentos engendrados que apenas escondiam os receios duma competição livre que permitisse ao povo exprimir a escolha e a preferência. A ordem não foi perturbada.(...)O povo brasileiro ofereceu um exemplo vivo de maturidade política, cultura cívica e aprimoramento coletivo. Não reagiu às provocações, nem se deixou emaranhar nas ciladas da traição Não se deixou vencer pelo engodo das promessas ou pelas tentações da corrupção.(...)Não venho semear ilusões, nem deveis esperar de mim os prodígios e os milagres do messianismo retardatário. Não vos aceno com a idade da plenitude e da abundância como fabricante de sortilégios. Não vos quero enganar com projetos ambiciosos e programas grandiosos, imaginativos e irrealizáveis. Tendes direito a uma vida melhor e uma participação gradual e eqüitativa nos produtos do trabalho, na comunhão da riqueza e nos frutos e benefícios do progresso, do conforto e das amenidades da existência. A todos, sem exceções odiosas e discriminações irritantes, devem ser assegurados a igualdade das oportunidades, o acesso das facilidades educacionais, a participação efetiva nos conselhos da administração pública, a remuneração compensadora do trabalho, os cuidados e os desvelos do Estado nas horas de infortúnio, a segurança econômica, o bem estar coletivo e a justiça social”.
Getúlio Vargas deixava absolutamente claro suas pretensões, ao mesmo tempo em que tornava óbvio o que pretendia fazer nesse seu novo governo.
Entrevista de Darcy Ribeiro ao Roda Viva - Parte 1.
Entrevista de Darcy Ribeiro ao Roda Viva - Parte 2.
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Entrevista de Darcy Ribeiro ao Roda Vida - Parte 4.
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Entrevista de Darcy Ribeiro ao Roda Viva - Parte 9 - Final.
O novo presidente brasileiro, no entanto, logo saberia, se já não o sabia, de que o Brasil de agora já não era mais o mesmo do período compreendido entre a Revolução de 30 e a redemocratização; a oposição agora, liderada pela UDN, muito mais articulada e ainda mais à direita, com posições ferozmente antigetulistas, prometia não deixá-lo em paz. A esquerda era vista com desconfiança pelo getulismo, desconfiança recíproca, uma vez que considerável parcela dela não acreditava em um Getúlio democrata. Também, junto ao empresariado, a figura do antigo caudilho, ao contrário do que acontecera em seu governo anterior, despertava um certo temor, diante de suas atuais promessas nacionalistas, ou seja, a burguesia temia que as teses da esquerda, com forte cunho nacionalista e antiimperialista, fossem realmente encampadas por ele, conforme prometido, contrariando seus interesses.
A guerra fria instalada entre os Estados Unidos e a União Soviética, lançando seus reflexos por todos os países, o Brasil incluído, é claro, incomoda esse primeiro ano do governo trabalhista e conturba as relações entre as duas nações americanas. E para piorar as coisas, essa época coincide com um período de real enfrentamento com os americanos do norte, especialmente na candente questão do envio de tropas brasileiras para lutar ao lado dos americanos na guerra da Coréia, prontamente recusado por Getúlio, a questão do estímulo do Estado ao processo de industrialização, a sustentação dos preços do café, a implantação do Plano Nacional de Carvão e, por último, mas a mais explosiva, o projeto de criação da Petrobrás.
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Sob esse pano de fundo é que Getúlio forma seu ministério. Devedor de favores por todos os lados, desde Adhemar de Barros, passando pelo PSD e pelo PTB, o ministério formado por Getúlio reflete esses compromissos de campanha. E assim, um governo comprometido com conquistas populares, termina por parir um gabinete nitidamente conservador, sendo que, até a UDN fora sondada para dele participar, obviamente que recusado, já que ela, na verdade, se preparava para exercer uma oposição sistemática ao governo getulista.
O PSD, como esperado, abocanha o maior número de pastas, conforme já esperado: Fazenda (Horácio Lafer), Justiça (Negrão de Lima), Educação (Ernesto Simão Filho) e Relações Exteriores (João Neves da Fontoura). Para Adhemar de Barros e seu PRP coube o disputadíssimo Ministério da Viação e Obras Públicas (Álvaro Pereira de Souza Lima), abarrotado de dinheiro, além de emplacar outra mina de ouro, a presidência do Banco do Brasil, na figura de Ricardo Jafet. Ou seja, Adhemar estava com tudo. Ao PTB (Danton Coelho, amigo e homem de confiança de Getúlio) coube, como esperado, o Ministério do Trabalho, vindo com ele os sindicatos, o que possibilitaria ao getulismo controlá-los, ao mesmo tempo em que se fortaleceria perante esses mesmos sindicatos.
Mesmo se recusando a se aproximar do governo trabalhista, a UDN não pôde impedir que João Cleofas, cabeça do partido em Pernambuco, e que apoiara Getúlio a despeito das posições contrárias de seus correligionários udenistas, é contemplado com o Ministério da Agricultura, num gesto interpretado por alguns como uma tentativa, por parte de Getúlio, de conciliação com inimigo tão poderoso quanto a UDN, os rancores acumulados esquecidos em nome da governabilidade. Mesmo assim, Cleofas – chamado, juntamente com seus seguidores, de "Chapas Brancas" – quase é expulso do partido, o que não acontece devido à intervenção da UDN paulista (Waldemar Ferreira), que defendeu a tese, segundo a qual Cleofas seria um udenista no governo, sem representação ou responsabilidade da UDN. É de se destavar também que Getúlio, em um gesto de desprendimento e sabedoria, nomeou Gustavo Capanema líder da maioria, graças à reconhecida habilidade política do prócer do PSD e, mais ainda, devido ao seu bom relacionamento com a UDN, principalmente com o líder da minoria na Câmara, Afonso Arinos de Melo Franco, que diria depois que Getúlio, em outro gesto para não alijar o principal partido oposicionista das questões governamentais, constituiu uma comissão interpartidária para discutir o projeto da reforma administrativa, cujos relatores foram justamente ele e Capanema. Finalmente, à frente dos ministérios militares, são escolhidos Nero Mourão (Aeronáutica), Renato Guilhobel (Marinha) e Estillac Leal, da corrente nacionalista, para o importante cargo de Ministro da Guerra.
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Concluída a formação do ministério (31.01.51), Getúlio começa efetivamente a governar, logo se deparando com inúmeros problemas, a maioria relacionados com a política externa brasileira, até então atrelada até a medula às posições americanas. Assim é que, pouco depois da nomeação de Góis Monteiro para a chefia do Estado Maior das Forças Armadas, acontecida em 12 de fevereiro de 51, verificou-se o primeiro incidente de vulto com os Estados Unidos.
Em seu conflito particular na Coréia, os ianques solicitam que o Brasil participe da contenda, também enviando tropas para lutar contra as forças inimigas. Parte da oficialidade, formada ideologicamente exatamente pelos norte-americanos, é totalmente a favor. Mas, Estillac Leal rechaça prontamente a idéia, o que lhe traz inimigos poderosos dentro da imprensa antigetulista.
Por outro lado, logo Getúlio teria que se haver com as contradições vindas à tona com sua eleição. Obviamente, uma delas seria a reorientação do Estado liberal deixado por seu antecessor; Vargas certamente teria que colocar o poder público desempenhando um papel muito mais efetivo na economia brasileira, isso porque o governo Dutra, atrelado ideologicamente com uma política antiintervencionista do Estado, era o fiador da garantia de propiciar as condições de funcionamento (e do lucro, é claro) das empresas capitalistas internacionais aqui instaladas.
No entanto, também devido às contradições existentes dentro da composição de forças que lhe dão suporte, porquanto parcelas do grande capital também o apoiaram, inclusive participando de seu governo, Getúlio, nos primeiros meses de seu governo, não consegue modificar a contento a política posta em prática por seu antecessor, deparando-se, por isso, com diversos desafios: inflação crescente, desequilíbrio na balança de pagamentos, energia elétrica insuficiente para garantir um novo processo de industrialização, poucas e ruins estradas asfaltadas em um país de dimensões continentais, pouca oferta de gêneros alimentícios para a população urbana etc. Para vencer tantos desafios, Getúlio sabia pela experiência que somente um Estado comprometido e engajado com políticas públicas poderia possibilitar a alteração desse estado de coisas.
E Getúlio teria que colocar essa máquina para desenvolver uma política desenvolvimentista, além de ter que resolver um problema muito mais complicado e explosivo: como tratar a participação estrangeira na economia nacional, especialmente nas áreas mais cobiçadas, a do minério e a do petróleo?
Enquanto isso, Getúlio vai tomando medidas importantes em seu primeiro ano de governo: cria a Comissão de Desenvolvimento industrial - CDI - presidida por Horácio Lafer e composta por técnicos do governo Federal e por representantes da iniciativa privada, com a incumbência de estudar a viabilidade de implantação da produção de veículos automotores no país, considerando-se a indústria de autopeças já aqui instaladas. Partiriam do CDI as orientações técnicas no que concernia aos investimentos nas áreas industriais, hierarquizando os investimentos na indústria em busca da realização do "possível" prometido por Getúlio. Para tal, as atividades industriais foram divididas em três segmentos mais importantes, quais sejam, de infra-estrutura, básicas e de transformação. Paralelamente, também coube ao CDI recomendar os investimentos necessários nos setores energéticos, metalúrgicos, químicos, mecânicos, de alimentos e de borracha; Getúlio também incentiva os trabalhadores a se organizarem em sindicatos (01.05.51); propõe a criação do Plano Nacional do Carvão (08.08.51) e, em mensagem enviada ao congresso, do Serviço Social Rural; e finalmente, no fim do ano, com forte impacto junto à população, a criação do Programa do Petróleo Nacional, o que possibilitaria o surgimento da Petrobrás; e, como culminância desse primeiro ano de governo, já um tanto conturbado, a 24 de dezembro de 1951, anuncia o aumento do salário mínimo, sem reajustes desde 1943, passando de CR$380,00 para CR$1.200,00, um substancial aumento para as classes trabalhadoras, mas que desagradou amplas parcelas do empresariado nacional e multinacional.
Discurso de Getúlio Vargas no Dia do Trabalho (primeiro de maio de 1951).
Ao mesmo tempo em que começa a reorganizar o Estado em outras bases, Getúlio se cerca de uma assessoria técnica competente, dentre eles Rômulo de Almeida, Jésus Soares Pereira, Ignácio Rangel, Cleanto de Paiva Leite, Tomás Pompeu e outros mais, a maioria deles desenvolvendo projetos industriais de acordo com a atual filosofia getulista, ou seja, uma política desenvolvimentista que procuraria utilizar-se do poder do Estado, ao mesmo tempo em que pudesse atrair capitais privados e estrangeiros para a consecução de suas metas. Para isso, apesar de ser, oficialmente, do PTB, seu amparo será o PSD conservador, paparicado por Getúlio pelo seu cacife político. Só que a pergunta que não queria calar era como fazer reformas, tendo como principal base de apoio um partido como o velho PSD. Não admira que a revista O Cruzeiro, ainda em posição um tanto quanto ambígua, chegou a estampar em manchete, logo no início de 1951, o slogan “Todo o Poder a Lafer”.
Em fins desse ano de 51, acompanhando a elevação da temperatura mundial, relacionada com a guerra da Coréia e com a questão do petróleo, a situação política brasileira entra em campo minado. Porém Getúlio não está disposto a ceder mais do que pode. Em discurso proferido exatamente no apagar das luzes do ano (31.12.51), ele deixa claro o seu pensamento:
"Fala-se muito em colaboração do Brasil, em solidariedade americana (...). Não a negamos. Mas, não se deve exigir do Brasil colaboração e sacrifício, distribuindo aos outros os benefícios. Temos importantes e urgentes problemas a resolver. O petróleo é um deles.".
Tal discurso, em plena Guerra Fria, acirra os ânimos da direita antigetulista, deixando claro aos trabalhistas e aliados, e aos setores de esquerda ligados basicamente ao Partido Comunista, que 1952 poderia ser um ano de lutas e combates. Só não se sabia quem seria o vencedor.
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