27.8.06

"DE VENTO EM POPA"


Por ironia do destino, enquanto os sonhos da Vera Cruz iam para as calendas gregas, a Atlântida atingia seu apogeu, com a realização nesse ano daquela que é considerada pela crítica a melhor chanchada realizada pelos estúdios cariocas e um dos mais importantes filmes brasileiros de todos os tempos: Nem Sansão Nem Dalila.

Chanchadas brasileiras.



1954 foi, na realidade, um ano esplendoroso para a Atlântida, ano em que realiza, além do mais, desde um filme "de prestígio" (A Outra Face do Homem), até chanchadas diversas, Carnaval em Caxias (junção de carnaval, velho oeste e Tenório Cavalcanti, o famoso homem da capa preta, uma espécie de bandido e político, temido por meio mundo), Malandros em Quarta Dimensão e a também já clássico Matar ou Correr.



A Outra Face do Homem, com direção de J. B. Tanko; argumento de José Laponte (auxiliado por Glauco Mirko Laurelli); fotografia de Giulio de Luca; elenco contando com Eliana Macedo, Renato Restier, Jackson de Souza, Ludy Veloso, Sadi Cabral, John Herbert, Inalda de Carvalho (estreando no cinema) e outros, foi realizado em co-produção com a paulista Multifilmes de Mário Civelli, a essa altura em grandes dificuldades financeiras. Com cacoete de filme paulista, para infelicidade dos orgulhosos técnicos e companhia que gravitavam em torno da Vera Cruz, além de trazer a marca da achincalhada rival, ainda ganha praticamente todos os principais prêmios Saci, Melhor Filme, Melhor Direção (J. B. Tanko), Melhor Atriz (Eliana Macedo) e, de rebarba, Melhor Ator Coadjuvante (John Herbert). Uma humilhação para quem viera para destruir esse estúdio chanchadeiro.


Outro filme arrasado por Bresser Pereira. Em sua crítica no jornal O Tempo (21.12.54) sobre essa premiadíssima produção, ele não poupou nada, excetuando parcos elogios à atuação de alguns artistas, Eliana Macedo, John Herbert e Jackson de Souza. Segundo ele:
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"Com 'A outra face do homem' evidencia-se mais uma vez a precariedade do cinema nacional. Esta é a realidade, que muitos procuram ocultar, só lembrando da crise econômica, seja por interesse próprio, seja por sentimento de nacionalismo. Produzida pela Atlantida, uma das maiores companhias nacionais, rodada nos estúdios da Multifilmes, e nitidamente ambiciosa em seus objetivos, esta película fracassou redondamente. J. B. Tanko, o realizador de "Areias ardentes", confirmou plenamente sua incapacidade, embora certos críticos tenham descoberto "qualidades" nessa sua fita anterior.


O filme é pretensioso. Como seu nome sugere, propõe-se ser a descrição da verdadeira personalidade de um homem comum, daquela personalidade que ele esconde sob a capa da mediocridade cotidiana de um funcionário há longos anos em uma mesma firma. O filme tem início com um locutor dizendo essas coisas. Mas a forma de resolver o problema já é bastante simplista. Tudo não passa de um sonho, que leva, a abandonar a esposa e os filhos, a abrir uma casa de jogo, a assassinar, roubar ,traficar com maconha.

A história é de J. O. Loponte, e Tanko a adaptou. Sem qualidades especiais, não se pode dizer no entanto que se situem no roteiro os maiores defeitos da fita. O trabalho é relativamente limpo, embora demonstre ainda alguma insegurança e incapacidade criadora. Foi, porém, na direção, que Tanko pôs tudo a perder. Realizou um filme falso, ridículo, superficial. Já tinha uma história fraca e um roteiro infeliz. Na direção, deu ao filme o tom de dramalhão e pieguismo.
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Absolutamente incapaz de qualquer aprofundamento psicológico, pretendeu ingenuamente superar essa falha através da dramaticidade, com caretas dos atores, cortes inesperados, montagem atabalhoada, primeiros planos lamentáveis. E o pior é que não podemos dizer que Tanko seja inseguro ou inexperiente. Pelo contrário, ele dirige com certa firmeza, que possivelmente impressionou algumas pessoas, mas que revela apenas que ele não progredirá mais.
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É difícil analisar o setor da interpretação, pois com um diretor assim, os atores não podem ser responsabilizados pelos seus lamentáveis desempenhos. Salientamos, porém, os nomes de John Hebert, Ludy Velose e Jackson de Sousa e também Eliana, que conseguiram manter-se com certa dignidade. Fotográfica muito ruim de Giulio De Lucca e música razoável de Lírio Panicalli."


Matar ou Correr, sátira engraçadíssima ao clássico faroeste Matar ou Morrer (direção Fred Zinnemann, com Gary Cooper e Grace Kelly), roteirizado por Vítor Lima, dirigido por Carlos Manga e com um dos melhores elencos da Atlântida, onde se destacam Oscarito, Grande Otelo, José Lewgoy, Wilson Grey, John Herbert, Julie Bardot e Inalda Carvalho, brinca com todos os chavões do faroeste, o valentão sanguinário, o patrão vigarista e seus capangas, a mocinha recatada, a bailarina de Can-Can de bom coração, o Saloon, o mocinho corajoso etc. Seu enredo conta a história de City Down (uma brincadeira com o termo "sit down", sente-se, em inglês), cidade dominada pelo facínora Jesse Gordon (José Lewgoy), que espalha o terror por toda a região, matando quem se interpõe em seu caminho. Até que chega à cidade uma dupla de pequenos vigaristas, Kid Bolha (Oscarito) e Ciscocada (Grande Otelo), que vendem elixir falsificado pelo velho oeste. Mesmo sendo dois cagões, conseguem, em um golpe de sorte, prender Jesse Gordon, sendo Kid Bolha, por isso, nomeado Xerife da cidade.

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Só que o bandidão consegue escapar, deixando o recado de que voltaria de trem às duas horas da tarde para o derradeiro ajuste de contas. Em uma das mais engraçadas cenas do filme, Kid Bolha, apertado com o passar das horas, vendo se aproximar o momento do confronto, vai até o relógio de parede e o atrasa. Mas, de nada adiante: o facínora chega e os dois se encontram debaixo do escaldante sol das duas horas.


A cidade cenográfica de City Down, construída em Jacarepaguá, é um dos pontos altos do filme. De acabamento esmerado, nada fica devendo àquelas dos filmes americanos. Também, a cena da disparada da diligência, quando do início do filme, foi tão impressionante, que muitos acharam que ela fora roubada de um seriado norte-americano. O sucesso foi espetacular.


Matar ou Correr, como a maioria das chanchadas da Atlântida, foi pessimamente mal recebido pela crítica colonizada brasileira. Outra vez no jornal O Tempo, Bresser Pereira, por exemplo, considerou-o "fraco", chamando o período por que passava o cinema nacional de "sombrio":

"Se formos analisar "Matar ou correr" sob o ponto de vista de crítico, sob o prisma cinematográfico e artístico, concluiremos que se trata de um péssimo filme. Entretanto, quem não tem essa preocupação, se divertira francamente com a fita. E não é para menos. O filme não possui grandes piadas, nenhuma originalidade maior, mas só a presença de Grande Otelo e Oscarito, com a sua comunidade de pastelão, obriga-nos a rir. E por mais mal feita e malograda que seja a comédia, saímos satisfeitos do cinema, pouco nos importando que tudo aquilo não ultrapasse a palhaçada vulgar. E se alguém objetar que um filme dessa ordem não poderá divertir pessoas de bom gosto, porque ficaram com a sensibilidade ferida, teremos que concordar que esse alguém, ou é muito sofisticado, ou muito bilioso. O sucesso de público de "Matar ou correr" provará o que estamos afirmando.

Mas pensando melhor, temos que dizer: pobre cinema nacional. Atravessando uma crise das mais sérias, a única coisa que consegue êxito é uma fita dessa espécie. É desanimador. Nesses momentos o futuro do nosso cinema torna-se sombrio. "Matar ou correr" possuía uma inicial interessantíssima. Poderia constituir-se em brilhante sátira ao "western" norteamericano. Mas acabou limitando-se a revelar a mediocridade dos nossos cineastas.

Pretendia-se satirizar um gênero cinematográfico e o que se fez foi realizar-se mais um filme desse gênero e bastante ruim. A intenção de sátira só permaneceu nos nomes Cisco Kada, Jesse Gordon, Kid Bolha, City Down. A comicidade do filme derivou dos recursos da chanchada e nunca da ironia inteligente. Carlos Manga revelou progressos, mas continua um mau diretor. O nível de produção da Atlantida permanece fraco. No elenco os melhores foram Grande Otelo, John Herbert e Renato Restier. José Lewgoy tinha um papel ingrato, mas se saiu a contendo. Oscarito faz-no rir realmente não tem recursos de ator cinematográfico. Altair Vilar e Julie (Bardot) revelaram-se péssimos. Temos, no entanto que saudar uma nova e linda estrela do cinema nacional, Inalda (de Carvalho). Teve um trabalho regular, mas poderá melhorar muito ainda, e, indiscutivelmente, possui uma beleza fora do comum."


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Sátira muito bem estruturada do épico Sansão e Dalila, de Cecil B. de Mille, ao mesmo tempo também parodiando a situação política do Brasil, a essa altura governada por Getúlio Vargas, Nem Sansão Nem Dalila termina por se constituir em uma metralhadora giratória de críticas, da incivilidade notória dos brasileiros à demagogia, do autoritarismo ao populismo, não deixando passar ao largo a situação de indigência do próprio cinema brasileiro.


Já no início do filme, a incivilidade do brasileiro é mostrada de maneira a não deixar dúvidas, quando um suposto empregado de uma fábrica de fogos de artifícios estaciona tranqüilamente seu jipe em local proibido. Esse mesmo indivíduo, ao pedir uma informação sobre uma barbearia a um cara forte como um touro de nome Sansão (Wilson Viana), recebe um sonoro "não sei". E quando ele está entrando na barbearia, dá um brusco esbarrão em outra pessoa, continuando a entrar, como se nada tivesse acontecido.



Nessa barbearia, de nome "Barbearia Dalila", trabalham Dalila (Eliana Macedo), Míriam (Fada Santoro) e Horácio (Oscarito), apaixonado por Dalila e desejado por Míriam, sempre repreendido pelo chefe, "seu" Artur, por chegar atrasado e sempre ter uma desculpa na ponta da língua. Ou é doença, ou é o telefone que não funciona ou é o lotação que não anda em virtude dos buracos que tomam conta do Rio de Janeiro.



Quando Horácio se prepara para trabalhar, Sansão chega à barbearia e se senta em sua cadeira; acaba por descobrir que o freguês é careca, usando uma cabeleira para disfarçar. Nervoso por seu segredo ter sido descoberto, Sansão persegue Horácio, tentando espancá-lo, mas ele consegue fugir para fora do estabelecimento, entrando no jipe do fogueteiro. Só que Sansão também entra e os dois continuam a briga dentro do carro. Desgovernado, o jipe colide com a parede de uma casa, no momento em que o professor Incognitus (Werner Hammer) está na iminência de colocar em funcionamento sua mais portentosa criação, uma máquina do tempo.


Acordando após a colisão, Horácio, mais o professor e um freguês da barbearia chamado Hélio (Cyll Farney), apaixonado por Dalila, se vêem em uma terra estranha que, segundo o professor, é o reino de Gaza no ano de 1.153 antes de Cristo. Horácio responde: "isso é Jacarepaguá no duro!!" (as locações foram realizadas em Jacarepaguá).

Enquanto o professor e Hélio vão desbravar a área, acabando sendo presos por alguns guardas do reino, Horácio também se defronta com um (o mesmo Sansão da briga), que, em troca de um isqueiro ("legítimo contrabando"), lhe propõe sua cabeleira mágica, que o tornaria o homem mais forte do mundo. Assim é feito e Horácio descobre que efetivamente a cabeleira tem poder, tornando-o forte como um touro.



Como os dois companheiros tardam a aparecer, Horácio, agora Sansão, parte atrás deles, indo parar em casa de Dalila (a mesma Eliana) e Míriam (a mesma Fada Santoro), essa última logo dando em cima dele ("você é aparecida!!"). Logo fica sabendo da prisão dos companheiros no Castelo de Gaza ("Castelo de esparadrapo"), salvando-os do calabouço. Ao demonstrar sua força, Sansão se torna o poderoso do reino e, em um golpe populista, se autonomeia o novo governador da província.

Assim que toma o poder, Sansão começa a colocar em prática seu programa de governo: acabar com os buracos do reino; inventar aparelhos como o rádio e o telefone; escolha direta dos representantes do povo; declarar feriados em todos os dias da semana, menos no Dia do Trabalho; instituir a burocracia no reino, além de criar a letra "o" para os cargos públicos; diminuir o preço do pão e do farelo e assim por diante.



Tantas medidas contrárias a seus interesses desagradam aos poderosos de Gaza, que, aliados aos militares, iniciam uma conspiração para tomar o poder. Mas, como fazê-lo, diante de tão poderoso ser? Enquanto isso, aproveitando-se de suas novas invenções, especialmente o rádio, Sansão, começa sua pregação política para as novas eleições diretas. Não demora, sua voz alcança todo o reino através das ondas da Rádio Gazeteira, que também veicula seus slogans de campanha: "Votai em Sansão que faz o que promete!". "Aguardai a televisão. Votai em Sansão"... E assim por diante.



Aproveitando uma festa nos salões do reino, os conspiradores envenenam sorrateiramente uma taça de vinho, enviando-a a Sansão. Porém Míriam, preocupada em mantê-lo sóbrio, sempre o impede de beber, para desespero dos cortesãos que aguardam impacientemente aquele momento. Em uma seqüência hilária, aproveitando o ensejo, ele discursa (imitando Getúlio Vargas):



"Trabalhadores,


A situação política nacional...está uma pouca vergonha!


A mamata anda solta por ai, e todos querem se defender!


Por isso, exijo nos camelos, tacômetros.


Vou criar a aposentadoria de quem trabalha e de quem não trabalha.


Vou criar a indústria do cinema e o Banco do Estado.


(...)"


Após a frustrada tentativa de envenenamento, e receosos das novas medidas governamentais, os poderosos obrigam Dalila a descobrir o segredo de Sansão em troca da libertação de Hélio, preso no calabouço pelos militares. Isso feito, os conspiradores se apossam da cabeleira, que passa para a cabeça do chefe militar (que vem a ser Artur, o chefe de Horácio na barbearia), tornando-o o mais poderoso do reino. Dalila, ao mesmo tempo, é obrigada a se casar com ele.


Na festa de casamento, quando os noivos estão perante o sacerdote, Míriam, que há pouco conseguira visitar os prisioneiros e ensinada como proceder, consegue pescar a cabeleira da cabeça do militar, a qual, na confusão, cai em um recipiente em chamas, sendo imediatamente consumida. Instalada a confusão, no auge da luta, Horácio (que fora levado junto com Hélio para a cerimônia, conseguindo fugir) entra com o jipe no salão de festas, terminando por bater contra o suporte do ídolo que encimava a cerimônia, que, com o impacto, cai sobre o carro, deixando Horácio desacordado.


Quando volta a si ("que cabeçada!"), e vê Hélio, Dalila e Míriam, se assusta ("Uai, vocês não fugiram do templo?"). E mais assustado fica quando vê os padioleiros (os carrascos do calabouço) e o médico (Wilson Grey, o soberano sem poder de Gaza). Apavorado, Horácio entra no jipe e foge, acompanhado de Míriam, enquanto Hélio e Dalila se abraçam, felizes para sempre.


Fim.

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Com Nem Sansão Nem Dalila, Carlos Manga, então com 26 anos, que, antes fora de tudo um pouco na Atlântida - de varredor do estúdio a assistente de contra-regra, passando a ajudante de maquinista a ajudante de almoxarifado, até ter sua chance como assistente de direção de Jorge Ileli em Amei um Bicheiro e, posteriormente, dirigindo a seqüência musical de Alguém Como Tu, com Dick Farney, no filme Carnaval Atlântida - se torna o mais importante diretor de cinema do estúdio, o que o capacitaria, bem mais tarde, a se tornar um dos mais poderosos pilares da Rede Globo de Televisão.

Um comentário:

M. Exenberger disse...

Bresser Pereira prestou um desserviço ao cinema nacional. Felizmente, ele não conseguiu afastar o público do cinema, mas suas duras críticas à atuação de Julie Bardot e Altair Vilar não procedem. Eles formaram um belo casal.