27.8.06

CENAS TEATRAIS

Efetivamente, não se pode dizer que 1954 foi um ano perdido ou sem novidades na cena teatral brasileira; importantes eventos aconteceram, montagens brilhantes foram produzidas e os bastidores fervilharam ao longo de todo o ano. São Paulo teria que brilhar, já que, nesse ano, uma data histórica seria comemorada com festas e fogos de artifícios, o IV Centenário de São Paulo.
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O TBC, como o grupo mais organizado e com o elenco mais estelar do país, obviamente se destacou, apesar dos problemas insanáveis de sua co-irmã, a Vera Cruz; além de criar um grupo para atuar de forma contínua no Rio de Janeiro, foram montados diversos espetáculos, dos mais variados estilos, dentre as quais Leito Nupcial, de Jan Hartog, direção de Luciano Salce, e contando no elenco com a mesma dupla explosiva do filme Floradas na Serra, Cacilda Becker e Jardel Filho, este em sua estréia no TBC, o que não evitou, não obstante, que o espetáculo fracassasse redondamente nas bilheterias; Mortos Sem Sepultura – de Jean Paul Sartre (que aborda a história de seis elementos da resistência francesa presos em um quarto prontos para serem interrogados, através da tortura, por três elementos da polícia política, também franceses, mas, colaboradores da Alemanha). A peça foi dirigida por Flamínio Bollini, estando no elenco Cleyde Yáconis, Paulo Autran e Luiz Linhares; Assassinato a Domicílio (fracasso de crítica sucesso estrondoso de público), de Frederic Knott, direção de Adolfo Celi, estrelado por Cleyde Yáconis, Jardel Filho (ganhando o Saci, como melhor ator do ano), Benedito Corsi, Paulo Autran, Carlos Vergueiro e Walmor Chagas; Cândida, de Bernard Shaw, com direção de Ziembinski, estrelando Tônia Carrero, Jardel Filho, Margarida Rey e Luiz Calderaro; Leonor de Mendonça, de autoria de Gonçalves Dias, dirigida por Adolfo Celi, que obteve enorme êxito, basicamente pelo desempenho primoroso de Cleyde Yáconis, e que trazia no elenco, além de Paulo Autran, a presença luminosa de Sérgio Cardoso.

Montagem de Cândida dirigida por Zé Henrique de Paula. Elenco: Bia Seidl, Sergio Mastropasqua, Thiago Carreira, João Bourbonnais, Fernanda Maia e Thiago Ledier - São Paulo - Brasil.



Vinheta criado por WL para o espetáculo Leonor de Mendonça da Cia Encena de Teatro em 2006.




Várias outras peças, com maior ou menor êxito, também foram levadas à cena pelo TBC: Um Dia Feliz (de Emile Mazaud), Uma Mulher do Outro Mundo (de Noel Coward), ... E o Noroeste Soprou (de Edgard da Rocha Miranda), Negócios de Estado (de Louis Verneuil), O
Pedido de Casamento (de Tchecov) e outras mais.


Cena de O Pedido de Casamento.



Nesse ano, Maria Della Costa inaugurava seu teatro – o Teatro Maria Della Costa, um ótimo teatro de 450 lugares – com a montagem de O Canto da Cotovia, de Jean Anouilh, peça que lhe traria não somente êxito financeiro, mas, também, artístico, já que abocanhou a maioria dos prêmios Saci do ano: Melhor Espetáculo, Melhor Diretor (Gianni Rato), Melhor Atriz (Maria Della Costa), e Melhor Cenógrafo (também Gianni Rato). Também, o Teatro de Arena, criado um anos antes e que teria, futuramente, importância fundamental na historiografia do teatro brasileiro, montaria Uma Mulher e Três Palhaços, lançando como profissional uma atriz que ainda daria muito que falar, a lindíssima Eva Wilma.

Aproveitando os festejos do IV Centenário de São Paulo, diversas companhias do Rio de Janeiro (como também do exterior), aportaram na cidade, a maioria com repertório de gosto duvidoso, comédias ligeiras e maliciosas, mas que faziam muito sucesso junto ao público paulistano. Assim, chegam Bibi Ferreira (com a Companhia de Comédias do Teatro Municipal, montando Sonho de Uma Noite de Luar, de Roberto Gomes, A Casa Fechada, também de Roberto Gomes e A Ceia dos Cardeais, de autoria do português, Júlio Dantas, com elenco encabeçado por Jayme Costa e Sérgio Cardoso, um repertório pobre, principalmente se comparado com o do TBC), Dulcina (que trouxe O Imperador Galante, de Raymundo Magalhães Júnior, uma peça que, segundo Décio de Almeida Prado objetivava “encher o coração do público de ardor patriótico ou sentimental e os seus olhos de assombro e encantamento pela riqueza e pompa do espetáculo, obrigatório em tais evocações do passado”); Rodolfo Mayer, ator chegado num dramalhão, trazendo a montagem de Obrigado pelo Amor de Vocês, de Edgard Neville, um teatrólogo e cineasta espanhol virulentamente anticomunista, aliás, tido como a figura que inaugurou o cinema como panfleto contra as esquerdas, e, como não poderia deixar de ser, Dercy Gonçalves, Eva Todor e Madame Marineau.

Contudo, no campo teatral, o ano de 1954 será para sempre lembrado, não pelas inúmeras peças encenadas em São Paulo, nem pela montagem no Rio de Janeiro do espetacular sucesso Dona Xepa, de Pedro Bloch, na interpretação considerada impressionante por parte da crítica de Alda Garrido, mas pelo maior escândalo teatral da temporada, a montagem no Teatro Municipal de Senhora dos Afogados, com direção de Bibi Ferreira e com Nathalia Timberg (em sua estréia no teatro profissional) e Sônia Oiticica encabeçando o elenco, proibida desde 1948 e liberada, segundo consta, graças à intervenção de Getúlio Vargas (através de Tancredo Neves), do para sempre maldito Nelson Rodrigues.

A peça, na verdade, quase fora montada pelo TBC em 1953; ela seria dirigida por Ziembinski e, provavelmente contaria com Cacilda Becker no elenco. Porém, após algumas semanas de preparação do elenco, com a leitura da peça, o projeto foi abandonado; nunca se soube o real motivo da desistência, mas, retrospectivamente, muitos dos integrantes do grupo paulista ainda vivos argumentam que era comum um projeto de montagem ser abandonado sem motivo aparente. O que fica patente é que, à época, a peça deve ter sido considerada muito ousada para a mentalidade paulista, impossível mesmo de ser encenada. A pista pode ter sido dada pela crítica teatral Ilka Marinho Zanotto. Segundo ela,
"Nada se iguala às tétricas imagens alucinatórias de Senhora dos Afogados que fariam inveja a um Buñuel ou a um Bergman. Nunca foi tão violenta a criação rodriguiana ao plasmar personagens na massa da hipérbole. Tragédia lírica, poética, belíssima, com ecos de Lorca e de Synge, na qual se mesclam sonhos e realidade em fronteiras imprecisas. Diálogo poderoso, sincopado como nas tragédias urbanas, mas em muitíssimas falas de um lirismo derramado; momentos boschianos, visões incríveis; concepção como de afresco, grandes pinceladas com o som e a fúria das autênticas obras-primas”.

Com efeito, Senhora dos Afogados conta a história de uma família, a família Drummond, formada por cinco pessoas, o casal dona Eduarda e Misael, os filhos Paulo e Moema e a mãe louca de Misael, que, devido a uma promessa, estão sempre de luto fechado. A outra filha do casal, Clarinha, a caçula, exatamente no dia em que o casal comemora 19 anos de casado, morre afogada, a exemplo de uma outra irmã, Dora, e é no seu velório que se desenrola toda a ação.

A casa onde mora a família é de frente para o mar e as relações que ali se estabelecem são incestuosas, extremadas e perturbadoras. Moema é noiva, mas apaixonada pelo pai, com quem tem uma relação incestuosa; este, por outro lado, não gosta mais de dona Eduarda porém, cultivando uma adoração excessiva pelas filhas. Paulo, o filho mais velho, é apaixonado pela mãe, sempre lhe exigindo amor e fidelidade. A mãe de Misael, por seu lado, odeia dona Eduarda, adorando, porém, a neta; Moema odeia a mãe, prometendo ficar de luto até sua morte, procurando evitá-la sempre que possível; ter as mãos comparadas com as dela lhe causa uma repulsa difícil de suportar. Dona Eduarda, por seu lado, sabe do amor excessivo do filho – que também odeia o pai, exatamente por possuir a mãe –, não o alimentando, porém.

A causa motriz da história, entretanto, está no passado: Misael teve um caso com uma prostituta que, quando exige seus direitos, é assassinada a machadadas, assassinato esse assistido pela mãe de Misael e motivo de sua loucura. O noivo do Moema (não nomeado na peça), que não desperta nenhum amor na menina, é na verdade o filho que Misael teve com esta prostituta. Para se vingar da morte de sua mãe, elabora um plano diabólico: corteja e fica noivo de Moema, paquerando e se tornando amante, ao mesmo tempo, de dona Eduarda. Sua finalidade é destruir a família Drummond.

Misael termina por descobrir a ligação entre o noivo da Moema e dona Eduarda, ocasião aproveitada por Moema para por fim ao noivado, já que ela suportava o noivo somente para aproveitar a oportunidade de obter provas contra a mãe e demonstrar ao pai que dona Eduarda não prestava, era uma falsa.

No desenrolar do drama, fica-se sabendo que, na realidade, fora Moema, através de sua confissão, quem afogara as duas irmãs, enciumada pela atenção que o pai lhes dava. Dona Eduarda, ainda sem saber a verdade, foge com o noivo da filha, escondendo-se num cais de porto – um prostíbulo – local onde morara a mulher morta por Misael.

Assim que Paulo toma conhecimento da fuga da mãe, transtornado pelo ciúme, parte à cata dos amantes, terminando por matar o noivo da irmã. A vingança de Misael é maligna: corta as mãos de dona Eduarda que morre em virtude da amputação. Desesperado pela morte da mãe amada, Paulo caminha em direção ao mar e se suicida.

A morte da mãe é recebida com júbilo por Moema; sua alegria é incomensurável; veste, pela primeira vez, um vestido todo branco, com esperanças de ter agora o pai para sempre, o que não acontece porque Misael também morre misteriosamente, sem que o enredo da peça explique a causa.

No último quadro, Moema estabelece um diálogo com as próprias mãos, que considera iguais às da mãe. No final da peça, o que se vê é ela afastando-as do corpo horrorizada, como se quisesse se ver livre delas. Porém, a partir daí, a imagem da mãe se tornará onipresente em sua mente, sua imagem obsessiva que nunca mais a abandonará.

Dirigida por Bibi Ferreira, cenários fabulosos de Santa Rosa e contando no elenco com Sônia Oiticica e com a estreante Nathalia Timberg, Senhora dos Afogados, foi caracterizada por Nelson como uma tragédia, fazendo parte de suas “tragédias cariocas”. O autor a concebeu com três atos e seis quadros, tudo acontecendo praticamente em um só dia e em um só local, exceto a parte que se desloca para o cais do porto, o prostíbulo.

Montagem teatral de Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, levada aos palcos em 2000, pelo Grupo Paidéia de Teatro, com direção de Lúcia de Lellis.

Com: Drica Bavagnoli, Guilherme Cruz, Mariana Dantas, Eduardo Poyares, Celso Pontara e grande elenco.

Senhora dos Afogados - Cena I.



Senhora dos Afogados - Cena II.



Senhora dos Afogados - Cena III.



Senhora dos Afogados - Cena IV.



Senhora dos Afogados - Cena V.



Senhora dos Afogados - Cena VI.



Senhora dos Afogados - Cena VII.



Senhora dos Afogados - Cena VIII.



Senhora dos Afogados - Cena IX.




Senhora dos Afogados - Cena X.



Senhora dos Afogados - Cena XI - Final.



Vários críticos e historiadores, escrevendo sobre a peça, destacam a fuga da realidade da narrativa, o que teria ocasionado seu impacto; tempo e lugar são abstrações, sendo o mar a única referência efetiva no desenrolar da peça. Da mesma forma, foi destacada a presença do coro na peça; segundo o site do curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, em que vida e obra de Nelson Rodrigues são analisadas de forma brilhante,

“Um diferencial significativo de Senhora dos Afogados é a presença do coro. Nesta peça, o grupo adquire uma importância ímpar na obra de Nelson Rodrigues. Acumulando múltiplas funções, o coro de vizinhos faz comentários triviais, usa lugares-comuns, repassa informações importantes à platéia e carrega o cenário. Em determinadas cenas, o coro conversa com as personagens e chega até mesmo a tentar convencer Moema da personalidade esquisita de seu noivo. Em outro momento, o coro de vizinhos tampa o rosto com as mãos para mostrar que não está participando da cena. Quando Misael e a mulher vão para o leito, por exemplo, o coro coloca um biombo para resguardar a intimidade da alcova. Não demora muito e eles sobem em cadeiras para espiar a cena, como os tantos fofoqueiros retratados pelo dramaturgo. Outro dado curioso do grupo é que o rosto original deles é uma máscara. Quando tiram, dona Eduarda pede para eles mostrarem suas faces reais.

A reação da platéia na noite de estréia da peça – 1º de junho de 1954 – não poderia ter sido mais paradoxal: Todo mundo no teatro já conhecia o universo de Nelson Rodrigues; diversas peças de sua autoria já haviam sido montadas, causando reações indignadas nos moralistas de plantão. Enfim, o público freqüentador de teatro sabia muito bem o que estava por vir.

Mas o que veio deixou parte do público atordoada: aquela sucessão de relações incestuosas, aquele acúmulo de ódios, traições, assassinatos, mortes, diálogos muito fortes foram demasiados para ela. E nem bem baixara a cortina, o teatro lotado de personalidades, dentre os quais o ministro da Justiça de Getúlio, Tancredo Neves, começou uma autêntica batalha de vaias e aplausos – mais vaias do que aplausos, de fato – entre os espectadores. Uma verdadeira histeria coletiva, com gritos de “tarado”, “gênio” e outros que tais.

Obviamente, até pela experiência, Nelson sabia que sua peça não seria recebida somente com festas e fogos de artifício; mas, aquela reação extremada, os insultos, o deixou zonzo, aborrecido e descontrolado. Num ímpeto inesperado, adentrou o palco e vociferou contra a platéia, aos berros de “burros”, “burros” até ser retirado por parte do elenco. Por pouco não houve agressão física. O acontecido, como não poderia deixar de ser, foi o assunto da cidade no outro dia.

De qualquer forma, tudo voltaria ao normal durante as outras apresentações. E o episódio seria somente mais um na atribulada carreira do teatrólogo. Muitas coisas ainda aconteceriam com relação às suas futuras peças.

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