16.8.06

CARNAVAL NO FOGO: O FILME PARADIGMA

Parte da crítica simplesmente odiou. Moniz Viana, que desprezava as chanchadas, escreveu que “(…) é a coisa mais idiota que o cinema nacional já produziu (…)”. Segundo ele, as cópias eram malfeitas e defeituosas, frutos que eram da pressa em seu lançamento. Em contraposição o jornal O Globo comentou que o filme era superior à maioria dos filmes americanos então em cartaz e que pela primeira vez existia um filme brasileiro onde a história superava a parte musical. Também Pedro Lima, outro colonizado, pontuou que, não obstante, o filme era “(…) limpo, sem pornografia, sem cheiro de suor”.

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Mesmo assim, além de ter arrasado nas bilheterias, o filme em questão, Carnaval no Fogo, dos estúdios Atlântida (3 dos 32 filmes produzidos no Brasil em 1950, sendo 20 no Rio de Janeiro, 4 em São Paulo, 1 em Minas Gerais, 1 em Pernambuco e 3 co-produções Rio/Berlim, Rio/Paris, Rio/Roma), acabou por se tornar um filme emblemático do cinema carioca nacada de 50, paradigmático, segundo alguns, por ser o lançador de um modelo de se fazer cinema ainda inédito no Brasil, e que ligava nos argumentos cinematográficos, de maneira simples e engenhosa, os elementos "policial/carnaval/pitadas de crítica social/comicidade". Como resultado, o filme foi a consagração da fórmula "ação/confusão/canção" que permearia quase toda a produção cinematográfica dos anos 50.
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Parênteses: a fundação dos estúdios Atlântida em 1941 nasceu de um sonho do mineiro de Muriaé, Moacir Fenelon, que tentava continuar sua carreira cinematográfica, após o incêndio que destruiu a Sonofilmes, para a qual Fenelon dirigira seu primeiro filme, O Simpático Jeremias (1940).

Natural da cidade mineira de Patrocínio (1903 - 1953), Moacir Fenelon acabou por se tornar pau para toda a obra do cinema carioca; foi engenheiro de som de Luís de Barros em seu filme de estréia, Acabaram-se os Otários, de 1929. Em 1930, foi assistente geral de produção e direção e também o encarregado da sonorização do filme-revista Coisas Nossas, projeto da dupla Wallace Downey/Alberto Byington.
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Como conseqüênci
a de seu refinamento técnico, Fenelon não mais parou. Fez o som para Estudantes (1935), filme dirigido por Wallace Downey, com roteiro da indefectível dupla João de Barro/Alberto Ribeiro; elaborou os números musicais de Alô, Alô, Carnaval (1935/1936), cuidando também da parte técnica de diversos outros filmes, Maria Bonita (Julien Mandel), João Ninguém (José Carlos Burle), Futebol em Família e Banana da Terra (Byington/Downey/Ruy Costa), Aves Sem Ninho (Raul Roulien) e de diversos outros.Tal experiência o capacita para ser o engenheiro de som da versão dublada dos dois primeiros desenhos de longa metragem de Walt Disney lançados no Brasil, Pinocchio (1938) e Branca de Neve e os Sete Anões (1940).

Cena do filme Branca de Neve e os Sete Anões.





Fenelon, então, decide fundar seu próprio estúdio cinematográfico. Lança ações populares, cooptando para seu intento os irmãos Burle, Paulo e José Carlos. Este último, trabalhando no Jornal do Brasil, convence seu patrão, o Conde Pereira Carneiro, para participar do projeto. Assim, a 20 de agosto de 1941, estava fundada a Atlântida.
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O primeiro filma realizado pela nova companhia cinematográfica foi um documentário de 23 minutos denominado Astros em Desfile (1942), dirigido por José Carlos Burle, um média-metragem musical, que contava com a participação de vários artistas em vias de se tornarem famosos (Emilinha Borba, Luiz Gonzaga) ao lado de outros já consagrados, como Grande Otelo Ciro Monteiro, Quatro Ases e Um Coringa, Déo Maia, dentre outros. O filme (com cerca de 20 minutos) era exibido em seção dupla, junto a um documentário feito pelos estúdios sobre o IV Congresso Eucarístico, que fora realizado em São Paulo.
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A partir de uma
reportagem de Joel Silveira e Samuel Wainer, que serviu de mote para que Alinor Azevedo desenvolvesse um argumento e um roteiro nela baseados, Moleque Tião (1943) foi o primeiro longa-metragem rodado nos estúdios da Atlântida. Dirigido por José Carlos Burle, o filme é, mais ou menos, a verdadeira história de um jovem negro à beira de atingir o estrelato, Grande Otelo. Tião (Grande Otelo) um jovem negro do interior tem um sonho quase impossível: ir para o Rio de Janeiro e se tornar um astro do teatro de revistas, o máximo para qualquer artista naquela época . Chegando à cidade grande, depara-se com a crueldade da metrópole, sofre as desilusões de praxe até que surge a oportunidade de mostrar seu real valor.
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O filme, o
primeiro sucesso da Atlântida, trazendo ainda no elenco, além de Grande Otelo, Lourdinha Bittencourt, Custódio mesquita, Sarah Nobre, Nelson Gonçalves, Teixeira Pinto e outros, importante por ter uma temática diferente das comédias e dramas até então lançadas no mercado brasileiro por retratar a realidade social do país, não tem mais cópias à disposição dos cinéfilos (sabe-se de uma, em mau estado de conservação, em poder de um abnegado colecionador), demonstrando o descaso com que é tratado o fazer cultural no Brasil.
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Baseado em uma sinopse desenvolvida pelo próprio Fenelon, que também o dirigiu, o próximo filme lançado pela Atlântida foi É Proibido Sonhar (1943), com argumento e roteiro de Ruy Costa, fotografia do mestre Edgar Brasil, filme esse em que Mesquitinha é Acácio, um jovem que é surpreendido por manobras de um parente que lhe toma todos os bens, deixando-o sem nada. Fica sem rumo na vida até conhecer uma garota pobre e honesta (Lourdinha Bittencourt), cantora recém formada, que o ajuda com a colaboração do pai a recuperar tudo que lhe pertencia e por quem acaba por se apaixonar. Completam o elenco Nilza Magrassi, Mário Brasini, Oswaldo Louzada, Sandro Polônio e outros. O filme foi premiado como a melhor produção de 42 pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, de Lourival Fontes.
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Tristezas Não Pagam Dívidas
(1944) foi o projeto seguinte da jovem companhia cinematográfica; com direção de José Carlos Burle, com a co-participação de Ruy Costa, também responsáv
el pelo argumento, roteiro e cenografia, a película narra a bizarra história de um marido e seu testamento, Após sua morte, qual não foi a surpresa de todos, quando, aberto o testamento, soube-se que ele havia determinado que sua esposa devesse brincar o carnaval o mais intensamente possível, mesmo não gostando das festividades. Um malandro, interessa do em seu dinheiro, se oferece para ajudá-la, ao sabê-la inexperiente nessa questão. No entanto, acaba por se apaixonar verdadeiramente por ela.


Contando com diversos números musicais, Atire a Primeira Pedra (Ataulfo Alves/Mário Lago), samba interpretado pela jovem Emilinha Borba, quase pronta para estourar, Clube dos Barrigudos (Cristóvão de Alencar/Haroldo Lobo), com Linda Batista, Embolada de Pulga (Manezinho Araújo), com o próprio compositor, Laura (Ataulfo Alves), com Silvio Caldas e outros mais, e com Jayme Costa como ator principal, a importância histórica desse filme reside no fato de ter sido o primeiro de Oscarito na Atlântida, atuando junto a Grande Otelo, com quem formaria a dupla mais famosa do cinema brasileiro.

Nelson Gonçalves, interpretando Atire a Primeira Pedra (Ataulfo Alves/Mário Lago)
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A Companhia Produtora Atlântida Cinematográfica Ltda. entra então em um ritmo frenético de produção. Até 1949, são realizados dezenas de filmes, com maior ou menor sucesso: Gente Honesta (1944), direção de Moacir Fenelon, com Oscarito já encabeçando o elenco, que também conta com Vanda Lacerda, Mário Brasini, Lídia Matos, Catalano, Mary Gonçalves e outros; Romance de um Mordedor (1944), filme que se distingue por trazer, talvez pela primeira vez, a figura de um malandro como o protagonista da história; foi dirigido por José Carlos Burle, trazendo Mesquitinha, Modesto de Souza e Sarah Nobre nos papéis principais; Não Adianta Chorar (1945), primeiro filme dirigido por Watson Macedo na Atlântida, com Oscarito, Grande Otelo, Mary Gonçalves e outros, dentre eles, mestre Ziembinski; Vidas Solitárias (1945), direção de Moacir Fenelon, elenco contando com Mário Brasini, Mary Gonçalves, Wanda Lacerda dentre outros, filme que ganhou, nesse ano, os prêmios de Melhor Diretor para Fenelon, Melhor Ator (Mário Brasini) e Melhor Atriz (Mary Gonçalves) da Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos do Rio de Janeiro; Gol da Vitória (1945), direção de José Carlos Burle, grande sucesso de público, com Grande Otelo no papel principal, secundado por Ribeiro Martins, Restier Júnior, Ítala Ferreira e outros; Segura Essa Mulher (1946), outra comédia musical dirigida por Watson Macedo que trouxe Mesquitinha e Grande Otelo como os intérpretes principais; (Sob a ) Luz do Meu Bairro (1946), drama dirigido por Moacir Fenelon, com Milton Carneiro, Cléa Marques, César Ladeira, Alma Flora, Catalano, a vedete Zaquia Jorge e outros mais; Fantasma por Acaso (1946) – único filme salvo do incêndio que consumiu os estúdios Atlântida em 1952 – direção de Moacir Fenelon, trazendo, mais uma vez, Oscarito e Grande Otelo como os astros principais, secundados por um competente elenco, dentre eles, Mário Brasini, Mary Gonçalves (futura Rainha do Rádio que, pelo visto, era a estrela dos estúdios Atlântida nessa época), Wanda Lacerda, Luiza Barreto Leite, Renata Fronzi (futura estrela dos estúdios), a estonteante vedete Mara Rúbia, Zaquia Jorge e Bidu Reis.

Em colaboração com o Serviço de Proteção ao Índio, em 1947, a Atlântida ainda realizou o documentário Brasil Desconhecido, um relato sobre a segunda expedição Roncador-Xingu-Tapajós, mostrando a rotina e as tradições de diversas tribos indígenas, os Turunas, os Bororós, os Umutinas, os Kalapalos, os Cuicurús, os Carajás, dentre outras. O filme, entretanto, somente seria lançado em 1951, em São Paulo, e em 1952, no Rio de Janeiro.


1947 seria também o ano da realização de um dos maiores sucessos da Atlântida da década de 40 – Este Mundo é um Pandeiro – outra comédia musical de Watson Macedo, responsável também pelo roteiro, e um dos filmes que ajudaram a formatar o estilo que seria a marca registrada dos estúdios, a criar uma estética cinematográfica brasileira, que seria denominada, pejorativamente, pela crítica intelectualizada e colonizada de "chanchada". Seria a mistura de ingredientes tão díspares como paródias do cinema norte-americano, muita música, muita vedete, muita confusão, pitadas de crítica social e muita pancadaria, marcando um final feliz. Quase nada se sabe sobre o enredo do filme, que pereceu no incêndio que praticamente acabou com o acervo da Atlântida. Sérgio Augusto escreveu que se lembrava vagamente de Oscarito como um lutador de boxe e que se faz passar de marido de Olga Latour, de José Vasconcelos como locutor dessa lutas, da tristeza de vários integrantes do filme quando do fechamento dos cassinos por ordem do presidente Eurico Gaspar Dutra e de pouca coisa mais. Historiadores há que dizem que o ponto alto do filme é uma famosa seqüência em que Oscarito se transforma na Rita Hayworth de um dos maiores sucessos do cinema da década, o filme Gilda, dirigido por Charles Vidor. Este Mundo é um Pandeiro, recheado de números musicais, com destaque para Emilinha Borba, cantando um dos grandes sucessos de 47, a rumba Escandalosa, que a elevou, definitivamente, ao estrelato, Casado não Pode (Rutinaldo/Alcebíades Nogueira), com os Namorados da Lua, Eu Quero é Rosetar (Haroldo Lobo/Milton de Oliveira), com Bob Nelson, Que Mentira que Lorota Boa (Luiz Gonzaga), interpretada pelo próprio autor e outras mais, traz no elenco Oscarito, Grande Otelo, Adelaide Chiozzo (estreando no cinema), Olga Latour, o galã gaúcho Alberto Ruschel, Marion (cantora que se especializaria em imitar Carmen Miranda), Catalano e grande elenco.

Luiz Gonzaga interpretando Que Mentira Que Lorota Boa.




Emilinha Borba interpretando Escandalosa.




Seguem-se, em ordem de produção, Luz dos meus Olhos (1947), melodrama dirigido por José Carlos Burle, fracasso de público, mas que ganhou da crítica o prêmio de Melhor Filme do ano, trazendo no elenco Cacilda Becker (em sua estréia no cinema), Celso Guimarães, Grande Otelo, Heloísa Helena Luiza Barreto Leite e outros; Asas do Brasil (1947), refilmagem de uma produção de Raul Roulien, realizada em 1940, destruída em um incêndio antes de lançada, filme de aventura com direção de Moacir Fenelon, com Celso Guimarães, Alma Flora, Mary Gonçalves, Oscarito, Lourdinha Bittencourt, dentre outros; Falta Alguém no Manicômio (1948), direção e roteiro de José Carlos Burle, com Oscarito encabeçando o elenco que ainda traz Vera Nunes, Modesto de Souza, Luiza Barreto Leite, Ruth de Souza, Rocir Silveira e outros; É Com Esse Que Eu Vou (1948), outra comédia dirigida por José Carlos Burle, sobre irmãos gêmeos, um pobre e outro rico, que não se conhecem, recheada de sucessos musicais, dentre eles Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), com Luiz Gonzaga, Tico-Tico na Rumba (Haroldo Barbosa e Peterpan), com Emilinha Borba, La Ultima Noche, bolero interpretado por Grande Otelo em paródia, Zé Carioca no Frevo (Geraldo Medeiros), com Moacir Ferreira Diniz e outros, e com um elenco contando com Oscarito, Grande Otelo, Marion, Catalano, Heloísa Helena, Mara Rúbia, Solange França, Madame Lou, Alberto Ruschel (que se tornaria astro, mais tarde, na Vera Cruz) e outros mais;

Luiz Gonzaga interpretando Asa Branca, música cantada no filme Este Mundo é um Pandeiro.
















E mais: E o mundo se Diverte (1948), comédia musical dirigida e roteirizada por Watson Macedo, filme elogiado pela crítica que marca a estréia da futura estrela maior da Atlântida, Eliana Macedo, contando, também, no elenco, com Oscarito, Grande Otelo, Alberto Ruschel, Catalano, Modesto de Souza, Adelaide Chiozzo e outros. Caçula do Barulho (1948), um filme dirigido pelo cineasta italiano Riccardo Freda, com a estrela italiana Gianna Maria Canale no papel principal, secundada por Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Luís Tito, Pérola Negra, a futura estrela do teatro Beyla Genauer, dentre outros; Não me Digas Adeus (1948), co-produção com a San Miguel Filmes de Buenos Aires, dirigida por Luis Moglia-Barth, famoso na Argentina por ter dirigido o primeiro filme sonoro do país – Tango –, no elenco Anselmo Duarte, Vera Nunes, Sarah Nobre, Darcy Cazarré, a vedete Nélia Paula e outros; Terra Violenta (1949), direção do norte-americano Edmond Francis Bernoudy, filme baseado no romance homônimo de Jorge Amado, interpretado por Anselmo Duarte, Celso Guimarães, Graça Melo, Heloísa Helena, Grande Otelo, Mário Lago, Modesto de Souza, Maria Fernanda, Ruth de Souza e outros; A Escrava Isaura (1949), primeiro filme dirigido na Atlântida por Eurides Ramos, baseado no romance homônimo de Bernardo Guimarães, com Fada Santoro no papel principal, secundada por Cyll Farney, em sua estréia na Atlântida, Graça Melo, Déa Selva, Sady Cabral etc.; Também Somos Irmãos (1949) melodrama de José Carlos Burle abordando o preconceito racial, com Grande Otelo, Vera Nunes, Jorge Dória, Ruth de Souza, Agnaldo Rayol (estreando no cinema com doze anos), Agnaldo Camargo e outros mais, dentre eles, um que, mais tarde, ficaria famoso, Jece Valadão.
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Após 1947, a maior acionista da Atlântida é a UCB – União Cinematográfica Brasileira, de Luís Severiano Ribeiro Jr., que, entre outras coisas, era a maior exibidora de filmes do Brasil, além de operar no sistema de distribuição, o que permitia a exibição dos filmes da companhia em praticamente todo o país. Com este aparato, a Atlântida produziu seus três filmes em 1950: A Sombra da Outra (roteiro de Watson Macedo e Alinor Azevedo, baseado no romance Elza e Helena de Gastão Cruls, adaptado de uma novela radiofônica de grande sucesso popular; música de Lírio Panicalli e Léo Peracchi; direção de Watson Macedo; elenco: Anselmo Duarte, Eliana, Rocyr Silveira, Fregolente, Sérgio de Oliveira e, em pequeno papel, a futura estrela negra da Vera Cruz, Ruth de Souza); Não é Nada Disso (roteiro de José Carlos Burle e Alinor Azevedo; fotografia de Edgard Brasil; musica de Lírio Panicalli; direção de José Carlos Burle; elenco: Mara Rúbia Manoel Vieira, Catalano, Modesto de Souza, Marion, Fregolente e outros) e Carnaval no Fogo, (Salvyano Cavalcanti historia o filme como sendo de 1950; já Sérgio Augusto diz que o filme é de 1949), um a menos do que toda a produção de São Paulo no mesmo período.

Watson Macedo, escalado para dirigir Carnaval no Fogo, convida o galã Anselmo Duarte para protagonizar o filme, recebendo como resposta um sonoro não. Argumentando que seriam gastos somente uns 20 dias para as filmagens, Macedo consegue atrair o galã para participar do filme, aceitando, como condição, que Anselmo fizesse o argumento, roteirizado por Alinor Azevedo. O elenco incluiria verdadeiras preciosidades já lapidadas ou que o seriam ao longo dos anos 50: Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Eliana, Adelaide Chiozzo, José Lewgoy, Modesto de Souza e, em início de carreira, o futuro vilão/mocinho Jece Valadão. O destaque do filme acabou sendo José Lewgoy, que, como Peter Lorre em M. O Vampiro de Dusseldorf, impregnou sua interpretação com uma atmosfera maligna, utilizando seus olhos esbugalhados como elemento de caracterização de seu sinistro personagem.

Tributo a Peter Lorre.

















Filme completo Carnaval no Fogo.








O mais curioso é que Lewgoy, apesar de sua aparência malévola, mais apropriada para filmes americanos classe B, era uma pessoa culta e refinada, com larga experiência nas rodas internacionais.

Filho de pai russo, dono de uma fábrica de casimira (um tecido de lã, encorpado, produto de grande sucesso à época), e mãe norte-americana, gaúcho da cidade de Alfredo Chaves, atualmente Veranópolis, Lewgoy nasceu em 17 de novembro de 1922, sendo o caçula de oito irmãos. Como sua família era razoavelmente abastada, pôde estudar em escolas sofisticadas, por isso, desde muito cedo, dominando tanto o inglês quanto o francês, o que lhe seria de grande utilidade um pouco mais tarde, após a falência da fábrica do pai.

Com 18 anos, já diplomado pela Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas de Porto Alegre, ganha seu sustento trabalhando nos correios e sonhando com vôos mais altos, muito mais altos. E pela sua experiência acadêmica e domínio da língua inglesa, não demora está trabalhando na Editora Globo de Porto Alegre, de grande prestígio intelectual, que editava livros de vários monstros sagrados da literatura mundial – Proust, Shakespeare, Thomas Mann, John Steinbeck, Hernest Hemingway etc. – e nacional, despontando Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana (que também trabalhava na Globo), Érico Veríssimo, Cecília Meireles e muitos mais.

Mais ou menos à essa época, o teatro começa a despertar seu interesse. Após traduzir a peça Topaze, de Marcel Pagnol, acabou por dirigi-la e interpretá-la no Teatro do Estudante do Rio Grande do Sul. A peça O Viajante Sem Bagagem, de Jean Anouilh, dramaturgo francês em grande evidência na década de 40, foi sua próxima empreitada. Acontece que esse último espetáculo foi visto por Érico Veríssimo, um escritor a essa altura mais do que consagrado, que, através de seus contactos, conseguiu-lhe uma bolsa de estudos para a conceituada Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Isso em 1947.
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Já de volta ao Brasil, em 1950, é chamado para atuar em um filme de Fernando de Barros, Perdida pela Paixão, que, mais tarde, teria seu nome alterado para Quando a Noite Acaba (1950), onde atuaria ao lado de Tônia Carrero, Nídia Lícia, Orlando Vilar, Roberto Acácio, Inês Valéria, Jackson Sousa e outros. Mais tarde, Lewgoy comentaria que Tônia Carrero, à época querendo montar sua própria companhia teatral, teria lhe garantido um lugar de destaque no novo empreendimento, mas que foi preterido pelo então novato Paulo Autran, mais bonito e mais apropriado para o papel de galã. Dessa forma, o teatro ganhou um de seus mais eternos ídolos e o cinema nacional, um verdadeiro ícone, com cerca de 100 filmes em seu currículo.

Em 1950, também participaria de outro filme – Katucha – de Geroge Dusek, com roteiro de Alinor Azevedo, onde contracenaria com a belíssima Ilka Soares, Jurema Magalhães, Milton Carneiro e Ângelo Labanca. Era o início da carreira de um ator que atravessaria as décadas, atuando em cinema (sem preconceito, participando de produções que iam das mais lamentáveis até as obras primas, como Terra em Transe, de Glauber Rocha) tanto em produções nacionais quanto estrangeiras, teatro e televisão. Sempre foi realmente o máximo como ator.
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O argumento de Carnaval no Fogo era, como deveria, simples: uma troca de identidades. Dele, Anselmo e Elinor Azevedo (sempre ele) desenvolveram a seguinte trama: Um diretor musical da boate do Copacabana Palace (Anselmo Duarte), depois de algumas peripécias, fica de posse de uma cigarreira pertencente a um bandido chamado “Anjo” (José Lewgoy), perigoso chefe de uma quadrilha que acaba de roubar três milhões de cruzeiros de uma joalheria, e que estava hospedado no referido hotel. Confundido com o vilão, o mocinho passa por uma série de situações e confusões, solucionadas, como sói, somente nos finalmentes. O recheio ficou por conta dos números musicais, as lutas envolvendo os bons contra os maus, as perseguições, as triangulações amorosas e o conseqüente final feliz.

As filmagens realmente foram bastante tumultuadas; a estrela, Eliana, sofre uma intoxicação, que a afasta do set de filmagens por vários dias. Também, paralelamente, uma tragédia se abate sobre Grande Otelo, um dos astros do filme. Sua mulher, depois de matar o filho, enteado de Otelo, se suicida, deixando-o em profunda depressão; a famosa cena do balcão em que ele e Oscarito parodiam Romeu e Julieta, no entanto, foi realizada sem que ele ainda soubesse do acontecido. A partir dessa data, ele filmou, quase sempre, embriagado. Apesar disso, cumpriu seus compromissos até o fim.

Oscarito e Grande Otelo na famosa cena do balcão como Romeu e Julieta.
 


 












A montagem do filme também não escapa de confusões. Segundo Moniz Viana, demonstrando uma fobia delirante, o filme fora feito na manhã de uma segunda-feira e estreado naquela mesma tarde, as cópias feitas num pardieiro prestes a pegar fogo. Na verdade, a montagem teve que ser feita mesmo às pressas, para que o filme fosse lançado antes do carnaval, principalmente porque várias músicas que já estavam na boca do povo, algumas cotadas para ganhar o carnaval, eram cantadas no filme, como, por exemplo, A Marcha do Gago (Oscarito), Balzaqueana (Jorge Goulart), Daqui não Saio (Vocalistas Tropicais), Meu Brotinho (Francisco Carlos), Serpentina (Jorge Goulart), Tico-Tico no Fubá (Eliana), entre outras. O encarregado da montagem, passadas três dias e três noites, pifa; logo, logo, Watson Macedo, após montar até o nono rolo, também baixa ao hospital. Coube ao próprio Anselmo terminar a montagem do décimo e último rolo. Não obstante todos estes problemas, o filme tem umas das mais clássicas seqüências do cinema brasileiro de todos os tempos, a clássica paródia de Romeu e Julieta protagonizada por Oscarito como Romeu e um Grande Otelo – mais Grande Otelo do que nunca – como uma impagável Julieta.

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Ouça Oscarito interpretando a Marcha do Gago.




Ouça Jorge Goulart interpretando Balzaqueana.




Ouça os Vocalistas Tropicais interpretando Daqui Não Saio.


 











Ouça Francisco Carlos interpretando Brotinho.
















Ouça Nelson Gonçalves interpretando Serpentina.





 













Tributo à estrela da Atlântida Eliana.










Carnaval no Fogo deve ser analisado sob o enfoque do sistema de estrelato, copiado de Hollywood. João Luís Vieira, escrevendo sobre a chanchada e o cinema carioca no livro “História do Cinema Brasileiro”, organizado por Fernão Ramos, comenta:


“(…) a importância de Carnaval no Fogo deve ser salientada exatamente por haver instaurado essa triangulação herói/mocinha/vilão entre atores que formariam o núcleo central da maioria das comédias posteriores, numa relação de redundância necessária a um esquema de produção ininterrupta praticado pela Atlântida pós-Severiano Ribeiro Jr. Tal triângulo criou os primeiros atores exclusivamente cinematográficos com os quais nosso público pôde ter uma identificação maior durante os anos seguintes, uma vez que a maioria dos outros astros e estrelas famosos do cinema brasileiro era proveniente (…) do teatro, do rádio ou do circo. O filme de Watson Macedo foi o primeiro a formar o modelo de par romântico dos filmes da Atlântida, na dupla Anselmo Duarte e Eliana, além de assinalar a estréia cinematográfica do eterno vilão José Lewgoy e consagrar definitivamente o sucesso da dupla Oscarito-Grande Otelo, a esta altura trabalhando juntos pela sétima vez, na seqüência, hoje clássica, da paródia de Romeu e Julieta (...)"
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O resultado desta história?: Carnaval no Fogo bateu recordes de bilheteria, ficando, só no Rio de Janeiro, 10 semanas em cartaz. Estava consolidado o estilo Atlântida de fazer cinema no Brasil, o que ganharia forma e conteúdo ao longo de toda a década.
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Outros filmes realizados em 1950: Aglaia (inacabado), direção e fotografia de Rui Santos, com assistência de Alex Viany, música de Radamés Gnatlali, elenco contando com Ruth de Souza, Ivon Cury, Fregolente e outros; Um Beijo Roubado, filme dirigido por Léo Marten com produção de Adhemar Gonzaga, estrelado por Cyll Farney, Marlene, Vera Nunes, Walter Dávila, José Policena e outros; Echarpe de Seda, com direção do desconhecido Gino Talamo, baseado em argumento de R. Magalhães Jr., trazendo no elenco, entre outros, Elvira Pagã, Ilka Soares, Olga Latour, Rodolfo Arena, Jackson de Souza e Hemílcio Froes; O Guarani, estranha produção da Universalia Filmes (da Itália) dirigida por Ricardo Freda, elenco contando com Antônio Vilar, Mariela Lotti, Aurélio Ribeiro e a presença da estrela italiana Giana Maria Canale; Katucha, direção de Roberto Machado, roteiro de Alinor Azevedo, elenco encabeçado por Ilka Soares e José Lewgoy; Não é Nada Disso, outra produção da Atlântida dirigida por José Carlos Burle, com elenco quase indigente, Marion, Catalano, Modesto de Souza, Mara Rúbia e outros; Quando a Noite Acaba, direção de Fernando de Barros, sob argumento de José Amádio, elenco estelar, despontando Tônia Carrero, Nídia Lícia, Orlando Vilar, José Lewgoy e Kackson de Souza; Estrela da Manhã, filme produzido com apoio do Partido Comunista, com argumento de Jorge Amado, roteiro de Ruy Santos, direção de Jonald Santos (do Partido Comunista) e no elenco Paulo Gracindo, Dulce Bressanel, Nelson Vaz, Dorival Caymmi, Sônia Kaliner, Fregolente e outros. As músicas e trilha originais foram compostas pelo maestro Radamés Gnattali e Dorival Caymmi, que canta, no filme, a música Nunca Mais.

Dorival Caymmi interpretando Nunca Mais.



3 comentários:

tati disse...

Parabéns!!
Este blog é perfeito.
Atenciosamente: Tatiana

Unknown disse...

Parabéns!!

Seu blog é um documentário de primeira.

Fernando

sergio disse...

Alguem poderia me indicar filmes antigos em que mostre as baterias de escola de samba. Conheço o Orfeu de Carnaval de 1959. Muito obrigado.