O carnaval de 1954 ficou na história pela grande quantidade de músicas
que denunciava nossas mazelas sociais. Ao lado dos temas recorrentes –
cachaça, juras de amor, Adão e Eva etc. -, a situação de penúria por que
passava as massas proletárias, ao lado dos péssimos serviços públicos
prestados por companhias privadas, são firmemente atacados pelos
compositores, como se o povão lhes outorgasse o direito de defendê-los. De
lamentar, porém, é o fato de que tais denúncias acabavam por não surtir os
efeitos esperados, em meio a tanta orgia, lança-perfumes, pierrôs e
colombinas.
Moreira da Silva, o Morengueira, o rei do samba de breque, apesar de
pouco aparecer durante o carnaval, lança para esse ano o samba
Diploma de Pobre, do trio Príncipe Veludo, José dos Santos e J. B.
da Silva, em que o destino dos despossuídos é descrito de forma
comovente:
"Diploma de pobre é marmita
O rico é quem vive em boca rica.
Enquanto o filho do rico
Vai estudar
Coitado do filho do pobre
Vai trabalhar.
Coitado do filho do pobre
Que mal ganha para se sustentar
Quatro ou cinco bocas
Que ficaram em seu lar.
Enquanto o filho do rico
Estuda e vai ser doutor
O filho do pobre
Nasce e morre trabalhador.”
Especial Moreira da Silva (1)
Especial Moreira da Silva (2).
Wilson Batista, de quem já se disse que não tinha consciência social,
mais uma vez desmente tal afirmação nesse carnaval, ao compor, junto com
Everardo de Barros, Uma Casa Brasileira, lançada por Ademilde
Fonseca, na qual, segundo ele, apesar de tudo, “tudo falta”. Por
seu tema, teve problemas com a censura:
“Você está vendo aquela casa ( ai! ai! ai)
Tem São Jorge na entrada
Tem retrato do mengo na parede
Tem rádio, tem cristaleira
Uma morena tipo violão
É assim uma casa brasileira.
Na panela, nem sempre tem feijão
Falta isso, falta aquilo
Falta tudo meu irmão
Mas se há festa, samba, mesa com cadeira
É assim uma casa brasileira.”
Ademilde Fonseca interpretando Uma Casa Brasileira.
Neste ano,até João de Barro, o Braguinha, entra na briga e compõe Acende a Vela, em que, sugere, nas entrelinhas, a privatização da Light, concessionária do serviço. Entende-se o motivo: elemento típico da pequena-burguesia carioca, iniciando, nesse momento, a aquisição de aparelhos elétricos, e não podendo, por isso, conviver com os constantes cortes no fornecimento de energia, Braguinha não deixou de fazer sua crítica. Quem poderia pensar que, muitos anos depois, em pleno século 21, no governo de FHC que, pretensamente, viria acabar com a herança getulista, trazendo a modernidade para o país, a situação seria exatamente a mesma, a música podendo ser cantada no período FHC, quando o Brasil ficou na escuridão, sem tirar uma vírgula. O tempo é mesmo senhor da razão.
Mesmo sendo lançada pela favorita Emilinha Borba e ser uma das
melhores composições desse carnaval, não alcança, porém, o êxito
esperado:
“Acenda a vela, IaiáAcende a velaQue a Light cortou a luzNo escuro eu não vejo aquelaCarinha que me seduz.
Ó seu inglês da LightA coisa não vai all rightSe com uísque não vai não
Bota cachaça no ribeirão.”
No lado "B", Emilinha gravou o samba "Calúnia", de José
Gomes. A música parecia ter sido encomendada para responder
às revistas especializadas em escândalos, que não deixavam
Emilinha em paz, conforme narrado na postagem de 1952
"Escândalo - O Outro Lado da Fama". Ótimo samba, mas, que,
também não fez o sucesso esperado, em um ano com ótimos
sambas:
"Calúnia
É a arma do covarde
De quem falta com a
verdade
E ataca à traição.
Calúnia
Foi a arma que usastes
Sem ter razão.
Caluniaste
Por inveja e traição
Esquecendo que subistes
Quando eu lhe dei a mão".
.
Também crítica à falta de água e luz na Cidade Maravilhosa,
Vagalume, de Vítor Simon e Fernando Martins, uma
marchinha lançada pelos Anjos do Inferno (e por Violeta
Cavalcanti), foi uma das músicas mais interessantes desse
carnaval, embora também, inexplicavelmente, não tenha feito
sucesso popular:
Violeta Cavalcanti interpretando Vagalume.
.
Do mesmo Vítor Simon, agora em parceria com Ney Campos e
Luiz Martins, é o samba Panela Vazia, estranhamente
interpretada por Leny Eversong, mais conhecida por sua
poderosa voz de cantora de operetas e que seria uma das mais
comentadas intérpretes brasileiras dos próximos anos:“Meu Deus do céu
Que carestia
Falta de tudo na vida
Hoje em dia.
Falta gás no fogão
Falta luz no porão
Falta água na pia
Fogo apagado
Panela vazia."
Leny Eversong interpretando Panela Vazia.
Acostumado a denunciar, em todos os carnavais, a situação de
exploração e penúria em que vivia o povão, Luiz Antônio (em parceria
com Oldemar Magalhães), compõe Arranha-Céu, em que volta ao
tema do barracão, assunto enfocado no carnaval anterior, inclusive
aproveitando a mesma cantora, Heleninha Costa:
“Fala, arranha-céu da cidade
A sua voz na verdade
É a voz do povo, afinal.
Fala que o barracão está ouvindo
Embora quase caindo
É seu irmão social.
Fala, arranha-céu
Obra da mão do homem
Que fez você tão grande
E mora num barracão sem nome.”
“Monsieur”
Blecaute (1919 - 1983), cantor carnavalesco por excelência,
nascido
Otávio Henrique de Oliveira na cidade do Espírito Santo do Pinhal
(São Paulo), aos 18 anos já é um “habituê” dos programas de
calouros das rádios paulistanas, até que inicia uma carreira
regular na Rádio Difusora por um cachê de 30 mil réis. Ganha, a
essa época, do famoso humorista e compositor Capitão Fortuna o
apelido de Black-Out, mais tarde aportuguesado para Blecaute, com
o qual inicia sua verdadeira carreira no show-business.
Sua primeira chance aparece logo que chega ao Rio de Janeiro em
1942. Consegue ser contratado pelos cassinos Atlântico e Guarujá,
onde se destaca em meio a inúmeros artistas, o que não era pouco.
Entretanto, quando Eurico Gaspar Dutra, o presidente da República,
fecha os cassinos brasileiros, Blecaute fica vários anos
desempregado, sobrevivendo de bicos, até que Floriano Faissal o
leva para a Rádio Nacional. Pedreiro Valdemar, de Wilson
Batista, foi seu primeiro sucesso, ao qual se seguem
Rei Zulu, General da Banda,
Papai Adão e outras mais.
Destas, General da Banda foi a que mais se destacou com
o passar dos anos (até Elis Regina a regravou) e sua consagração
definitiva. Quando estourou no carnaval de 1949, certa feita,
vestido de...General da Banda, foi carregado em triunfo pelas
massas até o Teatro Municipal, o máximo para um artista à
época.
Blecaute interpretando Pedreiro Valdemar.
Nesse carnaval de 1954,
alcança ele outro
notável êxito com a
marcha
Piada de Salão,
da vitoriosa dupla
Klécius Caldas e Armando
Cavalcanti, a grande
vencedora, no quesito
marchinha, do
concurso de músicas
carnavalescas promovido
pela prefeitura do
Distrito Federal:
Blecaute interpretando Pedreiro Valdemar.
“É ou não é
Piada de salão
Se acha que não é
Então não conto não.
Um sujeito que era gago
Procurou um botequim
Chegou perto do gerente
Outro gago bem ruim
E disse assim:
Eu estou, tô, tô, tô, tô
Aonde é que está, tá, tá
Mas o outro gaguejou
Chi! tra, rá, rá, rá, rá.”
Blecaute interpretando Piada de Salão.
Outra marchinha, e que fez grande sucesso, premiada, foi
Saca-Rolha, de Zé da Zilda, Zilda do Zé e Claudionor
Santos, interpretada pela dupla Zé e Zilda, a mais cantada e
executada desse carnaval, e que despertou enorme polêmica por sua
melodia ter sido considerada plágio do bolero
Cancion del Alma:
“As águas vão rolarGarrafa cheia eu não quero ver sobrarEu passo a mão no saca, saca, saca-rolhaE bebo até me afogar.
Se a polícia por isso me prenderE na última hora me soltarEu pego a mão na saca, saca, saca-rolhaNinguém me agarra, ninguém me agarra."
Zé da Zilda e Zilda do Zé interpretando Saca-Rolha.
“Tenha piedade de mim
Não posso mais
Ó meu senhor
O meu amor não volta mais.
Meu sofrer é profundo
Eu já vi que o mundo
Me abandonou.
Quem me vê sorrir
Pensa que eu sou feliz
Mas feliz eu não sou.”
Outro grande sucesso nesse ano de Jorge Veiga foi a maliciosa
marchinha A História da Maçã, também dos mestres
Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, executada à exaustão pelas
rádios e uma das mais cantadas nos bailes carnavalescos. Ficou
famosa porque sua letra era trocada pelos foliões por uma bem mais
pesada ("A história da maçã/É pura safadeza/ Adão comeu a Eva/E a maçã
de sobremesa..."):
"A história da maçã
É pura fantasia
Maçã igual aquela
Papai também comia.
Eu li no almanaque
Que um dia de manhã
Adão estava com fome
E comeu a tal maçã.
Comeu com casca e tudo
Não deixando nem semente
Depois botou a culpa
Na pobre da serpente.”
Ouça Jorge Veiga interpretando A História da Maçã.
A música considerada a mais bonita desse carnaval, contudo, foi o
samba de Monsueto Meneses e Tufy Lauar A Fonte Secou.
Gravado por Marlene e por Raul Moreno, com uma maravilhosa melodia
e versos muito bem elaborados, talvez por ser pouco carnavalesca,
não fez o sucesso que merecia, entrando, porém na história como um
dos maiores sambas carnavalescos da música popular
brasileira:
"Eu não sou água
Pra me tratares assim
Só na hora da sede"Eu não sou água
Pra me tratares assim
É que procuras por mim
A fonte secou
Quero dizer
Que entre nós
Tudo acabou.
Teu egoísmo me libertou
Não deves mais me procurar
A fonte do meu amorsecou
Mas os teus olhos
Nunca mais hão de secar.”
Raul Moreno interpretando A Fonte Secou
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