22.8.06

AMBIGÜIDADES

Como era de se esperar, as forças antagônicas a Getúlio não lhe dariam tréguas, até mesmo quando, em tese, concordavam com seus atos e discursos. Tal foi o caso acontecido no banquete anual oferecido pela oficialidade das forças armadas em honra do presidente no restaurante dos estudantes, localizado na Ponta do Calabouço, logo no início de 1952, a primeira demonstração de hostilidade a ser digerida pelo chefe da nação em seu segundo ano de governo.

Na verdade, a hostilidade maior se concentrou em Estillac Leal, cuja eleição para a diretoria do Clube Militar ainda não fora engolida por importantes parcelas dos oficiais das três armas. E Estillac, ao contrário de Getúlio, mais munição dera aos seus poderosos adversários – Zenóbio da Costa à frente – ao proferir um discurso um tanto quanto ambíguo, onde chamava de “boateiras” as vozes de alerta de seus companheiros de armas contra o comunismo, o que acarretou uma fria e constrangedora recepção às suas palavras, segundo David Nasser, em reportagem para a revista O Cruzeiro (19.01.1952).

Getúlio Vargas, por outro lado, sabia muito bem com quem estava lidando. Em seu discurso, por sinal aplaudidíssimo, atacou o comunismo internacional, pregando o que sua platéia esperava dele, quer seja, a solidariedade americana contra a “solerte” ideologia. Em seu discurso, Getúlio extrapolou; as forças comunistas, segundo ele, e para gáudio da maioria dos militares presentes, que queriam ouvir exatamente o que ouviram, estariam


dentro de nossas fronteiras, infiltradas por toda parte. Aguardando o momento propício para disseminar sementes de desagregação a serviço de ideologias e de ambições que a maioria da nação repele”.


Todavia, apesar dos aplausos, e exatamente devido à sua já conhecida disposição de reorientar o Estado em direção a uma vertente nacionalista, Getúlio percebia que o setor militar continuaria a ser uma pedra em seu sapato, especialmente depois de constatadas as desafiadoras ausências no banquete, muito comentadas, de Juarez Távora, de Eduardo Gomes e do eterno inimigo general Canrobert Pereira da Costa. Só que não fazia parte da personalidade de Getúlio o receio de caras amarradas. E logo ele demonstraria sua disposição em dar outros passos em direção a uma política diametralmente oposta àquela implementada por seu antecessor, Eurico Gaspar Dutra.


Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (1ª parte)




















Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (2ª parte)
















Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (3ª parte)

















Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (4ª parte)














Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (5ª parte





Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (6ª parte).



Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (7ª parte).



Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (8ª parte)






Entrevista ao Roda Viva de Darcy Ribeiro (final)




Discurso de Getúlio Vargas (aumento do salário mínimo, 1952).





Com efeito, a relação entre o Estado e a economia no governo getulista, em conformidade com suas promessas de campanha e com suas realizações logo em seu primeiro ano de governo, mostraria nesse segundo ano uma óbvia mudança de rumos, o poder público desempenhando novas funções, com consequentes alterações no setor econômico-financeiro do país. E alterar uma política anti-intervencionista e simpática até a medula ao capital estrangeiro era um problema gigantesco que Getúlio Vargas teria que enfrentar, mesmo que de forma ambígua.

Assim é que, logo após assinar um decreto em que dispunha sobre o retorno do capital estrangeiro e criar a Comissão Federal de Abastecimento e Preços (ambos em janeiro/52), Getúlio propõe ao congresso a criação do BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – (efetivamente criado pela Lei nº 1.628, de 20 de junho de 1952), que teria como meta recolher recursos públicos para alavancar seus projetos desenvolvimentistas, dentre os quais pontuavam, sobremaneira, os setores siderúrgicos, energéticos e de transporte, todos, obviamente, sob o domínio do Estado. Os recursos viriam das receitas da Previdência Social, das reservas técnicas das companhias de seguros, de um percentual de depósitos da Caixa Econômica e de uma taxa do Imposto de Renda.

Além disso, para a implementação do Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico, um plano quinqüenal que, em síntese, propunha elevados investimentos em transporte, energia, modernização da agricultura, indústria de base etc., conforme proposto pelo então Ministro da Fazenda, Horácio Lafer, no ano anterior, o Congresso Nacional, ainda controlado pelos aliados de Vargas, autoriza que se criasse um Fundo de Reaparelhamento Econômico, exatamente para possibilitar a realização dos investimentos previstos no mencionado plano e que seria administrado pelo recém-criado BNDE, com a assistência técnica e financeira dos norte-americanos.

Nesse contexto, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos, criada ainda no governo Dutra, em 1950, com o intuito de superar possíveis barreiras impeditivas de maiores investimentos estrangeiros no país, ganha, contraditoriamente, importância de vulto, responsável que era pela elaboração dos projetos de obras e empreendimentos de maior peso (com previsão de gastos em torno de 100 milhões de dólares), a serem realizados com recursos americanos e adaptados às suas exigências, em virtude da grande disponibilidade de capital no pós-guerra, devido a uma nova fase de expansão econômica dos Estados Unidos, ainda sob o governo do presidente eleito pelo Partido Democrata, Harry Truman.

A falta de apoio de segmentos importantes dos militares, no entanto, perseguia Getúlio Vargas. A escolha de Estillac Leal, no ano anterior, para Ministro da Guerra acirrara os ânimos dessa parcela, que o identificava como o arquiteto da recusa de o Brasil não participar da guerra da Coréia, e como um dos pilares contra a participação do capital estrangeiro na economia brasileira. Assim, urgia uma reação por parte da direita das Forças Armadas. E essa veio através das novas eleições para a direção do Clube Militar.

Apesar de se ter demitido do Ministério da Guerra (março/52), em parte por questões políticas, em parte devido à formalização de um acordo militar firmado entre o Brasil e os Estados Unidos, com o qual ele não concordava, Estillac Leal, novamente em dobradinha com Horta Barbosa, se candidata, com o beneplácito de Getúlio, a um novo mandato para a direção do Clube Militar.
A oposição de direita, agora muito mais forte, e tendo como figuras de proa o extremado anticomunista General Zenóbio da Costa e, nos bastidores, Cordeiro de Farias, lança o General Alcides Etchegoyen e Nelson Melo para concorrerem contra Estillac e Horta Barbosa. A disputa transpõe os muros da caserna e se transforma em uma questão nacional, basicamente em virtude do tema mais candente ora em evidência em terras brasileiras: o petróleo.

Estillac Leal, nacionalista convicto, defendia a tese de que o Brasil deveria manter-se vigilante diante do interesse de forças alienígenas sobre seus recursos naturais, principalmente o petróleo, considerando sua exploração pelos brasileiros questão de soberania nacional.

Por outro lado, Etchegoyen, que desprezava o nacionalismo de viés “esquerdista” que, acreditava ele, aqui se implantava, e apoiado por praticamente toda a imprensa nacional e pelo seu sucessor no Ministério da Guerra, General Ciro do Espírito Santo Cardoso, mais pragmático, defendia o alinhamento incondicional com os Estados Unidos, a abertura de Brasil ao capital estrangeiro, sendo, todavia, e contraditoriamente, também favorável ao monopólio estatal do petróleo. Aliás, a campanha pela criação da Petrobrás, já estava nas ruas, conduzida pelas esquerdas e combatida ferozmente pelas forças policiais. “O Petróleo é Nosso”, slogan da campanha, cala fundo no coração dos brasileiros, ficando cada vez mais claro que sua criação era só questão de tempo e oportunidade.

Ao mesmo tempo, o chamado setor “entreguista” das forças armadas inicia uma campanha de intimidação contra a chamada “ala esquerdista” dos oficiais. Muitos são presos e expurgados, tachados que foram de subversivos. Outros sofrem sanções e perdem seus cargos, tudo sob a supervisão de Zenóbio da Costa e Canrobert Pereira da Costa, para quem se tornava imperioso “cortar as mãos dos comunistas que estão em todos os cantos”.


Realizadas as eleições (21.05.52), Etchegoyen vence com quase o dobro dos votos dos nacionalistas (8.228 x 4.489), cuja conseqüência mais imediata foi o aumento do enfraquecimento de Getúlio frente aos militares. E como os projetos de industrialização brasileira somente se tornariam factíveis com o apoio das tropas, conquanto, com a subida do candidato do Partido Republicano Eisenhower à presidência dos Estados Unidos, a ajuda aos países subdesenvolvidos sofre cortes profundos, Getúlio, tentando uma política de conciliação para não interromper seus projetos nacional-desenvolvimentistas, demite o General Espírito Santo, substituindo-o imediatamente pelo vitorioso Zenóbio da Costa, que, apesar dos pesares, tinha apoiado sua posse em 1950.
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Comercial de campanha do candidato republicano Eisenhower.



Comercial de campanha de Eisenhower.



De qualquer forma, e apesar das nuvens turbulentas que o encimavam, Getúlio continuava firme em seus propósitos modernizantes e em direção a uma política econômica nacionalista. Ao longo do ano, cria o Instituto Brasileiro do Café, o Instituto de Migração e Colonização, o Serviço de Bem-Estar Social, o Banco de Crédito Cooperativo, o Serviço Social Rural e o Banco do Nordeste do Brasil – BNB, que é criado como um banco de fomento e de investimento, com a função de incentivar a agropecuária nordestina e a propiciar o processamento industrial de lavouras mais resistentes às pragas e à falta de chuvas, como, por exemplo, o algodão-mocó, a oiticica, o sisal, a carnaúba etc., seus recursos advindo basicamente do orçamento federal, mais precisamente, de um fundo criado pela Constituição de 1946, o Fundo de Combate às Secas; e, mais importante, com a finalidade de promover um desenvolvimento autônomo do país, desenvolve seu Plano Geral de Industrialização, com função de dotar o Brasil de infra-estrutura capaz de possibilitar a implantação de indústrias no país, principalmente de bens de consumo.
E mais: Cria a Carteira de Acidentes de Trabalho, envia ao congresso projeto de lei dispondo sobre a instituição de salário adicional para os trabalhadores em situações de perigo ou insalubridade, implanta o Conselho Nacional de Pesquisas – CNPq, capacitando o Brasil a desenvolver uma política científica de acordo com seus interesses, cria o INPA – Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, com os mesmos pressupostos, reajusta o preço do carvão nacional, reivindicação dos mineiros catarinenses em greve e, finalmente, em janeiro do ano corrente, coloca em prática uma de suas mais veementes promessas de campanha: corrige o salário mínimo em 316%, que passou de CR$380,00 para CR$1.200,00, salário esse congelado desde janeiro de 1944. Obviamente pode-se imaginar o que significou esse aumento junto à classe trabalhadora e aos segmentos mais pobres do país, ao mesmo tempo em que, também, o ódio que deve ter despertado nos patrões por tão significativo aumento.

Em meados de agosto, o jornal norte-americano The New York Times, em editorial, ataca o nacionalismo na América Latina, em especial, o brasileiro; segundo o jornal, aparentemente em delírio, Getúlio Vargas não era efetivamente o culpado, mas sim os brasileiros, que se mostrariam “pouco dispostos a adotar as medidas de cooperação econômica e militar com os Estados Unidos, por motivos exclusivamente nacionalistas”. O presidente seria uma espécie de prisioneiro de forças antagônicas aos interesses americanos, curvando-se “à pressão de grupos nacionalistas – inclusive de comunistas”. Mas o jornal se mostrou, de certa forma, justo. Segundo o mesmo editorial, o fenômeno não seria, verdadeiramente, exclusividade dos latino-americanos, já que também ocorria no Oriente Médio.

Também em agosto, dando eco aos fortes boatos que corriam nos bastidores da política, os jornais oposicionistas denunciam uma suposta trama do ex-chanceler Oswaldo Aranha para que a UDN aderisse ao governo getulista, criando uma saia justa tanto nas hostes udenistas, quanto na atual base de apoio de Getúlio. Pressionado, Oswaldo Aranha nega ter proposto tal adesão e, em entrevista ao O Globo, afirma que nunca tinha aconselhado a submissão do partido ou de seus líderes ao governo trabalhista.

Apesar de todos os pesares, para quem se encontrava entre diversos fogos (Forças Armadas, Estados Unidos, UDN), Getúlio termina o ano com razoável confiança, o poder público muito mais engajado no sistema econômico do que durante o governo Dutra, o que pode ser consubstanciado pela sua mensagem ao Congresso Nacional, onde ele destaca com clareza os empecilhos ao real desenvolvimento econômico brasileiro e, mais importante, como resolvê-los:


“Essa intervenção do Estado no domínio econômico, sempre que possível plástica e não rígida, impõe-se como um dever ao governo todas as vezes que é necessário suprir as deficiências da iniciativa privada, ou acautelar os superiores interesses da nação, quer contra a voracidade egoística dos apetites individuais, quer contra a ação predatória dessas forças de rapina que não conhecem bandeira nem cultuam outra religião que não seja a do lucro.

(...)

Rejeitando o fácil recurso dos paliativos momentâneos, o governo preferiu voltar-se resolutamente para as soluções de conjunto e não de detalhe, permanentes e não transitórias, capazes de construir um conjunto homogêneo e estável, base firme para o desenvolvimento de todas as atividades econômicas nacionais.”
A doutrina liberal parecia encontrar, apesar das marchas e contramarchas getulistas, e de certas ambiguidades, um adversário à altura.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns, nota DEZ.