29.1.07

COPA DE 1954: CANSAÇO FATAL

Não obstante o fraco desempenho da seleção brasileira de futebol no Campeonato Sul-Americano de 1953, realizado na capital do Peru, Lima, em que fica em segundo lugar, perdendo para o time do Paraguai, e o ainda não superado trauma da derrota para os uruguaios em 1950, a participação do Brasil na Copa do Mundo de 1954 era esperada com certa ansiedade pelos torcedores brasileiros, acreditando que a renovação implementada pelo novo técnico, Zezé Moreira, em nosso escrete, era o caminho mais curto para a obtenção do almejado título de campeão mundial de futebol, o maior sonho de toda a população. Para ser justo, craques é que não faltavam: Na defesa, Djalma Santos, Pinheiro e Nilton Santos eram jogadores de alta categoria, talvez melhores do que seus similares na malfadada Copa de 50; o time ainda tinha o espetacular Bauer, o príncipe do meio-de-campo, Didi, em grande forma e também Rodrigues. Pode-se dizer que era uma seleção de respeito.


Mais otimistas ainda ficam os patrícios, quando, nos meses de fevereiro e março, iniciando a campanha para a guerra futebolística, o Brasil, nas eliminatórias, se classifica invicto, não sem certa dificuldade, é verdade, derrotando as seleções do Chile (2 x 0, em Santiago, ambos os gols de Baltazar, e 1 x 0, no Maracanã, também gol de Baltazar) e do mesmo Paraguai (1 x 0, em Assunção, gol de Baltazar, e 4 x 1, no Maracanã, gols do selecionado brasileiro de Julinho - 2 -. Baltazar e Maurinho). A vitória sobre o Paraguai em Assunção foi tão dramática, o goleiro Veludo se constituindo na melhor figura do selecionado brasileiro, que, quando do jogo de volta no Brasil, uma compacta multidão (176.000 torcedores), a maior desde o fatídico dia 16 de julho de 1950, lotou o Maracanã para incentivar o escrete nacional, saboreando a goleada de quatro a um sobre os paraguaios e tendo, a partir daí, a convicção de que a conquista do título mundial não era um sonho tão distante assim.


A imprensa como um todo exigia vitória a qualquer custo para compensar o fracasso de 50. Exigia-se que a seleção brasileira fosse para a copa como soldados para a guerra. Como símbolo dessa exigência, todos os jogadores tiveram de decorar o Hino Nacional, a Bandeira Nacional seria desfraldada em todos os jogos e os discursos eivados de patriotismo eram inflamados.

Em 1.º de abril desse ano, os vinte e cinco jogadores definitivamente convocados se apresentam para dar início à etapa de treinamentos. Novos talentos, aliados a alguns sobrevivente do fracasso da copa anterior (como Bauer, Baltazar e Eli) são saudados pela imprensa especializada como capazes de, dessa vez, trazer para o país do futebol a mais do que cobiçada taça Jules Rimet. O Vasco da Gama (Alfredo, Eli, Paulinho e o recém-contratado e artilheiro da Portuguesa de Desportos, Pinga) e o Fluminense (Didi, Castilho, Veludo e Pinheiro)), ambos com quatro atletas convocados, são os times que mais jogadores cedem para a seleção, seguidos pelo Flamengo (Dequinha, Índio e Rubens), São Paulo (Bauer, Marinho e Mauro), Botafogo (Osvaldo Baliza, Nilton Santos e Gerson dos Santos), Portuguesa de Desportos (Brandãozinho, Djalma Santos e Julinho), Corínthians (Baltazar e Cabeção), Palmeiras (Humberto e Rodrigues), e Internacional de Porto Alegre, que cede um único player, o beque Salvador.


Pela segunda vez (a primeira foi em 1938), a cidade mineira de Caxambu é escolhida como local de preparação; Zezé Moreira, famoso pela disciplina que requeria de seus comandados (exigia, por exemplo, ser chamado de "seu" Zezé), impõe rígido calendário de treinamento, controlando horários e impedindo as fuzarcas e o entra-e-sai dentro do local de concentração, coisa comum nesse tempo de disputa de um título mundial. E dentro da fase de treinamento, a seleção enfrenta por duas vezes a fraca seleção da Colômbia, ganhando a primeira, no Pacaembu, por 4 x 0, e a segunda, no Maracanã, pelo placar de 2 x 0, após as quais a seleção se dirige para a cidade serrana de Friburgo, onde os treinamentos seriam complementados.


Aos 25 de maio de 1954, após as dispensas dos jogadores Osvaldo Baliza, Salvador e Gerson dos Santos, a seleção embarca para a Suiça, onde inicia a fase decisiva de treinamentos, jogando, ocasionalmente, com times locais amadores. Era o retorno da Copa do Mundo a um país europeu, após 16 anos, intervalo em que o certame fora realizado somente em 1950 devido aos ecos da segunda guerra mundial. Após o sorteio, o Brasil ficara no Grupo 1, ao lado das seleções do México, França e Iugoslávia e, como não era um grupo muito forte (México e Iugoslávia haviam sido derrotadas pelo Brasil em 1950), a classificação era tida como certa. A seleção base seria composta por Veludo, Paulinho e Brandãozinho. Alfredo, Mauro e Bauer. No ataque, Julinho Baltazar, Humberto, Maurinho e Pinga.
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A estréia do Brasil foi contra a seleção mexicana. Com novo uniforme, a cor branca sendo substituída pelo amarelo, recebendo do radialista Geraldo José de Almeida o desde então famoso apelido de "seleção canarinho", o Brasil entra em campo com Castilho substituindo o maravilhoso Veludo, titular absoluto do Brasil nas eliminatórias, Djalma Santos e Pinheiro; Brandãozinho, Bauer e Nilton Santos; Julinho, Didi, Baltazar, Pinga e Rodrigues. E para alegria dos torcedores brasileiros, a seleção canarinho mete uma goleada de cinco a zero, gols de Pinga (dois), Baltazar, Didi e Julinho. Melhor estréia, impossível.

Brasil 5  X 0 México.



Aí veio o segundo jogo (19.06.1954), agora contra a seleção da Iugoslávia (que ganhara seu primeiro jogo contra a França por um a zero), uma das seleções mais admiradas da Europa nesse momento. Ambos os times precisavam somente de um empate para passar para as quartas-de-final, só que, por incrível que pareça, ninguém da delegação brasileira sabia que novo regulamento tinha sido introduzido nessa copa pela FIFA, regulamento esse que permitia a passagem para a segunda etapa da seleção brasileira, em caso de uma vitória e um empate. Era a ignorância crassa dos cartolas tupiniquins, preocupados somente em posar para fotos e dar entrevistas para a imprensa em busca de futuros dividendos políticos.

O jogo foi dramático: terminado o primeiro tempo, o Brasil perdia por um a zero, além de praticar um futebol muito abaixo das expectativas do torcedor brasileiro, o goleiro Castilho se constituindo na melhor figura em campo. Após o intervalo, a seleção brasileira volta mais bem estruturada, jogando um futebol mais coeso e harmônico. Até que, aos 23 minutos do segundo tempo, o meia Didi empata, levando a peleja para a prorrogação. Não sabendo, então, que o empate era um resultado favorável, o que se via em campo era uma equipe desesperada, correndo como louca e desperdiçando energia. Em vão. O jogo terminou mesmo em 1 x 1, a seleção canarinho saindo cabisbaixa para o vestiário. Somente quando a delegação brasileira já se preparava para a melancólica volta para o Brasil é que, para alívio geral, ela foi informada de que estava classificada para a próxima etapa.

Brasil 1 X 0 Iugoslávia.



O próximo adversário do Brasil era a poderosa seleção húngara, campeã olímpica de 1952, jogando em estilo militarizado, invicta há mais de um ano, e com um sistema de jogo considerado então inédito e revolucionário, os jogadores entrando em campo sem posição fixa. Apesar de muitos repórteres e entendidos alertarem para o poderio da assim chamada " máquina húngara", uma das melhores seleções futebolísticas de todos os tempos, com jogadores do nível de Puskas, Kocsis e Boszik, e já assombrando todo o mundo, ninguém, na verdade, a levava muito a sério, principalmente porque, até então, ela nunca havia vencido o Brasil, fato que, em retrospectiva, não poderia ter sido levado em consideração, principalmente pelas estrondosas vitórias dessa seleção na primeira fase, derrotando a seleção da Coréia do Sul pelo placar de 9 x 0 e a poderosa seleção alemã pela esmagadora vitória de 8 x 3, numa impressionante demonstração de força e vigor.

O craque da seleção húngara Puskas.












Ou porque estava preocupado pela energia despendida pelo selecionado brasileiro no jogo anterior contra a Iugoslávia, ou mesmo porque confiava em seus reservas, Zezé Moreira, poupando diversos jogadores, muda quase todo seu ataque, somente mantendo  o ponta direita do Palmeiras, Julinho. Assim, o Brasil entra em campo com Castilho, Pinheiro e Nilton Santos. Djalma Santos, Brandãozinho e Bauer. Julinho, Didi, Índio, Humberto e Marinho. A seleção húngara não contaria com seu super craque e melhor jogador, Puskas, machucado no jogo anterior contra a Alemanha, o que animou sobremaneira os jogadores brasileiros, agora convictos de que a vitória era coisa certa. Pagariam caro por isso.


Enquanto isso, um acontecimento mais do que inusitado pegava os brasileiros de surpresa: quando o Brasil inteiro se preparava para acompanhar a irradiação do jogo, acontecia um defeito nas transmissões exatamente quando iniciava a partida. Após 10 minutos, quando do reinício da transmissão, uma nação assombrada é informada de que o Brasil já perdia por dois a zero, gols de Hidegkuti e Kocsis (este cognominado de "canhão húngaro", que faria 11 gols nessa copa), enquanto os locutores patrícios, a essa altura absolutamente histéricos, gritando e esbravejando pelos microfones, pareciam não entender direito o que estava acontecendo.


Assim, sofrendo dois gols em apenas sete minutos, a seleção brasileira, se já entrara em campo cansada e nervosa, mais nervosa fica com os inesperados gols já no início da peleja, ficando atordoada com a velocidade implementada pelos húngaros na partida, mostrando-se completamente desestruturada dentro das quatro linhas e demorando a encontrar seu melhor futebol, o que somente aconteceria já no final do primeiro tempo, quando, Djalma Santos, de pênalti, faz o primeiro gol do Brasil, animando a galera e deixando esperançosa a torcida brasileira.

O Brasil volta com tudo para o segundo tempo, imprimindo mais velocidade em seu jogo, passando de dominado para dominador. O pior é que, desesperados, os jogadores brasileiros queriam entrar com bola e tudo, no peito e na raça. E quando tudo levava a crer que o gol brasileiro não demoraria a sair, o juiz inglês, mister Arthur Ellis, que no primeiro tempo marcara um pênalti a favor do Brasil, apita uma toque do beque Pinheiro dentro da área brasileira, deixando os jogadores inconformados. Era outro pênalti, agora a favor dos húngaros, convertido em gol pelo jogador Lantos, parecendo colocar uma pá de cal na esperança do selecionado brasileiro.

Correndo agora contra o tempo, o time de Zezé Moreira parte em desespero para o ataque, até que Julinho, driblando todo o time adversário, marca o segundo gol do Brasil, reacendendo as esperanças dos jogadores e da imensa torcida brasileira, nesse momento com os ouvidos colados nos rádios à espera de um milagre. Porém, quando o Brasil precisava de todas as suas forças, Nilton Santos, fora de si, troca pontapés com o melhor jogador da Hungria, Boszik, ambos sendo expulsos aos 26 minutos, obviamente com maiores prejuízos para o Brasil. E aos 42 minutos, enterrando de vez as chances do Brasil, a Hungria faz outro gol, tornando o placar - 4 x 2 - impossível de ser alterado, principalmente depois da expulsão de outro jogador brasileiro, Humberto, por jogo violento, sem bola, contra o húngaro Lorant. Era a desclassificação.


Quartas de final: Hungria 4 X 2 Brasil.




Quando o juiz inglês deu por encerrada a partida, começa a confusão. Pinheiro, descontrolado, dá uma garrafada na cabeça do craque Puskas que estava no banco dos reservas, levando, em compensação, outra no supercílio direito. Aí, foi um festival de cusparadas, socos e pontapés, todo mundo brigando com todo mundo. A caminho do vestiário, o técnico Zezé Moreira acerta
 com uma chuteira o rosto do maior cartola dos adversários, o vice-ministro dos esportes, Gustavo Sebes, enquanto Mário Viana, o juiz brasileiro, aquele com dois enes, forte como um touro, também entra na confusão, chamando mister Ellis de ladrão, sendo por isso, mais tarde, desligado da FIFA.


Para a posteridade ficou a cena mais engraçada da copa: o jornalista Paulo Planet aplica em um guarda da Suiça um rabo de arraia daqueles, derrubando-o ao chão. Antes de ele cair, um fotógrafo de uma revista francesa dá o flagrante fotográfico, publicando a foto, com o guarda no ar, em página inteira.


Depois, houve as desculpas de sempre: Alguns dos integrantes da delegação brasileira, insatisfeitos, começaram a declarar que o juiz da partida, o inglês Ellis, favoreceu a seleção da Hungria, como parte de um “complô comunista”; outros disseram que mister Ellis teria prejudicado o Brasil para vingar-se da derrota da Inglaterra perante o Uruguai, nação sul-americana como o Brasil. Ninguém assumia que a seleção simplesmente se mostrara incompetente para um torneio de tal envergadura.


A poderosa Hungria daria ainda outra goleada de 4 x 2 no Uruguai quando das semifinais, entrando favorita para a final contra a Alemanha, a quem tinha batido por 8 x 3 na primeira fase. Debaixo de muita chuva, logo no início da partida, os húngaros já ganhavam de   dois a zero, tudo levando a crer que a história se repetiria contra os alemães.





Que nada. Sentindo a barra de tantos jogos e ocampo pesado, o time húngaro, após os dois tentos iniciais, recua em campo, permitindo a reação da seleção alemã, que, após empatar, vira espetacularmente o placar, marcando seu terceiro gol já quase no final da partida. A história se repetia. Como em 1950, a equipe favorita perdia o título mundial, deixando, porém, para a posteridade, a imagem de uma das mais impressionantes seleções de futebol que o mundo esportivo já conheceu.

jogo final da Copa de 1954: Alemanha 3 X 2 Hungria.


14.1.07

"DAQUI NÃO SAIO: O PROTESTO DILUÍDO

O carnaval de 1950, um dos melhores dos últimos anos, deixou uma plêiade de clássicos, alguns deles fazendo sucesso até hoje. Apesar de os cantores com mais nome dividirem seus repertórios carnavalescos entre sambas e marchas, estas últimas predominam em número de gravações, sendo as preferidas, principalmente, pelos cantores iniciantes e pelos diletantes.


Quatro sambas dominaram esse carnaval: Nega Maluca, Coroa do Rei , Se é Pecado Sambar e A Lapa. Poderíamos também incluir General da Banda, exaustivamente tocada e cantada, que, entretanto, fora lançada no carnaval de 1949. A grande surpresa deste carnaval foi a pouca repercussão do excelente samba Boca Rica, de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, gravado por Emilinha Borba, principalmente depois do sucesso alcançado pela cantora no carnaval do ano findo.
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Nega Maluca, um samba-batucada de Fernando Lobo e Evaldo Rui, fora composto, originalmente, como um baião, transformado em samba por sugestão de Francisco Alves. Terminou por ser gravada por Linda Batista e foi um triunfo na voz da cantora, que a interpretou com a garra de uma iniciante, talvez já pressentindo o início de seu declínio popular. Foi a mais cantada e a mais executada nos bailes carnavalescos e nas rádios, acabando por se tornar a grande sensação do carnaval de 50, vencendo o concurso oficial da Prefeitura do Distrito Federal:
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"Tava jogando sinuca
Uma nega maluca
Me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
Que o filho era meu
Não senhor!
Toma que o filho é seu!
Não senhor!
Guarde o que Deus lhe deu
Não senhor!"


Zé Renato e Roberta Sá interpretando Rebolar/Nega Maluca.


Coroa do Rei, uma sátira às "majestades" que pululavam por todo o Brasil (Rei da Voz, Rei do Rádio, Rei do Baião, Rainha do Rádio, Rainha do Chorinho, Rainha do Carnaval etc.), foi composta por Haroldo Lobo e David Nasser, uma dupla acostumada com êxitos, fosse no carnaval ou fora dele. David Nasser, polêmico jornalista de direita, e um razoável letrista de músicas, por exemplo, compunha todos os ritmos imagináveis, indo desde o fox-trot (Tudo em Vão), passando pelo tango (Hoje Quem paga Sou eu), partido-alto (Candeeiro), samba (Chorei Quando o Dia Clareou), bolero (Esmagando Rosas), samba-canção (Francisco Alves), marchinha (Confete) e vários outros. Seus parceiros mais constantes eram Alcir Pires Vermelho, Herivelto Martins e Benedito Lacerda..

O outro parceiro, Haroldo Lobo, carioca da gema (1910 - 1965), merece uma menção especial por ser um compositor muito especial, na realidade, um artista danado de bom, mormente no período carnavalesco. 

Francisco Alves interpretando Confete.














Já deu sorte quando nasceu em uma família onde se respirava música. Seu pai,Quirino Lobo, era um flautista de mão cheia e chegado num violão; e seu irmão, Osvaldo Lobo, compositor e baterista de primeira. Muito cedo, Haroldo começa sua carreira de compositor, ao compor, já aos 13 anos, sambas para o Bloco do Urso. Mas tinha que trabalhar. Vai ser guarda na polícia de vigilância, indo depois ser operário na tecelagem da América Fabril, onde fizera seus primeiros estudos, inclusive, de teoria musical e solfejo, o que não era pouca coisa. 



No início dos anos trinta, ganha de seus amigos músicos, que frequentavam a noite carioca, o estranho apelido de "Clarineta", pelo fato de cantar no exato tom desse instrumento musical. Assim, Haroldo ia levando a vida, até que, em 1934, consegue realizar sua primeira gravação, a música Metralhadoras, onde faz alusão à revolução constitucionalista. Seus parceiros nesta primeira música foram o lendário Donga (autor do primeiro samba gravado, Pelo Telefone) e Luís Meneses. Aí, ele não para mais. Nesse mesmo ano, Aurora Miranda lança, pela Odeon, De Madrugada, composta por ele em parceria com o Maestro Vicente Paiva, sucesso razoável, obscurecido pelos grandes êxitos alcançados pela cantora nesse ano, Se a Lua Contasse (Custódio Mesquita) e Cidade Maravilhosa (André Filho).


Martinho da Vila interpretando Pelo Telefone (Donga).







Aurora Miranda e André Filho interpretando Cidade Maravilhosa.





Até que Patrício Teixeira grava, em junho/37, para o carnaval de 1938, o samba Juro, dele e de seu principal parceiro, Milton de Oliveira, a quem conhecera no Café Nice, e já com mais de 100 músicas gravadas. É dele, por exemplo, o espetacular sucesso Não Tenho Lágrimas ("Quero chorar/ não tenho lágrimas/ que me rolem na face/ para me socorrer/ se eu chorasse/ talvez desabafasse/ o que eu sinto no peito/ eu não posso dizer"), com dezenas de gravações, inclusive uma do mito norte-americano, Nat "king" Cole. Apesar dessa gravação, os executivos da RCA Victor preferem lançá-la novamente com outro cantor, J. B. de Carvalho (gravada em agosto/37), obtendo grande sucesso. Nesse concurso, Juro concorreu com verdadeiras preciosidades da música popular brasileira: Camisa Listrada, do gigante Assis Valente; Yes, Nós Temos Bananas, de Braguinha e Alberto Ribeiro;
Não Tenho Lágrimas, de Milton de Oliveira e Max Bulhões; Pastorinhas, de Braguinha e Noel Rosa; Periquitinho Verde, de Nássara e Sá Roris; Abre a Janela, de Arlindo Marques e Roberto Roberti; Touradas em Madrid, de Braguinha e Alberto Ribeiro; Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e dezenas de outras. E para surpresa geral, a música terminou sendo premiada no concurso de carnaval promovido pela prefeitura do Distrito Federal, abocanhando o primeiro lugar na categoria samba (As Pastorinhas foi escolhida a melhor marcha).

Musical em animação com clássicos da música popular brasileira, dentre elas
Yes, Nós Temos Banana.



 

Aurora Miranda e Bando da Lua interpretando As Pastorinhas.




Carmen Miranda e Bando da Lua interpretando Touradas em Madrid.














Carmen Miranda interpretando Camisa Listrada/ (Assis Valente).














Francisco Alves interpretando Aquarela do Brasil (Ary Barroso).















Patrício Teixeira interpretando Não Tenho Lágrimas.














Aliás, nesse concurso, aconteceram coisas curiosas. Primeiramente, Camisa Listrada fora considerada a grande vencedora, seguida de Olá, Seu Nicolau, de Paulo Barbosa e Osvaldo Santiago, Juro, ficando em terceiro lugar, que, para Haroldo já era o máximo. No entanto, logo o concurso foi anulado, segundo a imprensa, porque o presidente da comissão julgadora não comparecera ao julgamento. Todos, obviamente, especularam que tudo era armação. O verdadeiro motivo seria que muitos perdedores de peso, com acesso à mídia, iniciaram uma campanha contra a vencedora no quesito marcha, a música Touradas em Madrid, de João de Barro e Alberto Ribeiro, que, segundo eles, seria um passo doble, ritmo espanhol, portanto, ferindo o tal regulamento.

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Realizado novo concurso, Pastorinhas, de Noel Rosa, ganha na categoria marcha, e, quando da escolha do melhor samba, Juro pula espetacularmente do terceiro para o primeiríssimo lugar, imediatamente colocando o nome de Haroldo Lobo ao lado dos bambas do pedaço. Para este, porém, só de concorrer com tantos pesos pesados, e ser premiado, já era o máximo, além de que Juro permite a Haroldo Lobo um reconhecimento popular imediato:

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"Juro
Nunca mais tive alegria
Desde aquele dia
Em que te abandonei
Eu te juro que chorei
Quando me vi sozinho
Sofri tanto
Sem o teu carinho
Chorei
Eu te juro que chorei
Ela sabia que eu ia sofrer
Tanto assim
Ela gostava de mim
Eu sabia e não liguei
Ela não quer mais me ver
Nem quer me perdoar
Eu me contento em chorar
Pois choro e nem sei."
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Roberto Silva interpretando Juro.
















Porém, seu primeiro grande sucesso mesmo foi Miau, Miau, música gravada por Aracy de Almeida, sua mais fiel intérprete nos primeiros anos de carreira, para o carnaval de 1939, inaugurando uma galeria de títulos musicais com animais como tema:

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"O gato e a gatinha
Sempre vão pro meu quintal
Fazer miau, miau, miau
E levam a noite toda
Nesse choro infernal
Miau, miau, miau
O gato até parece
Que conhece a nossa gíria
Começa logo com lero-lero
Oferece vestidos de seda à gatinha
E ela zangada responde:
Eu rasgo, não quero."

Aracy de Almeida interpretando Miau Miau.














Haroldo sabia muito bem, porém, que, para alcançar sucesso com música, teria que se aproximar das pessoas apropriadas. E logo, lá está ele frequentando o Café Nice, o Amarelinho, o Café Chave, o Teatro Carlos Gomes e outros locais onde os artistas eram encontrados. Logo, também, trava oportunos conhecimentos com Vicente Paiva, Luiz Meneses, Wilson Batista (claro!), J. Cascata, Benedito Lacerda, Paquito, Nássara e muitos outros.

Em 1940, ano de Malmequer (Newton Teixeira e Cristóvão de Alencar), Acertei no Milhar (
Wilson Batista e Geraldo Pereira), Curare (Bororó), O Samba da Minha Terra (Dorival Caymmi), Dama das Camélias (Braguinha e Alcir Pires Vermelho), Upa, Upa (Ary Barroso), Velho Realejo (Custódio Mesquita e Sadi Cabral), ele estoura com Passarinho do Relógio, também chamada Cuco, que Aracy de Almeida gravara maravilhosamente bem para o carnaval desse ano, propiciando-lhe uma das coisas das quais ele mais necessitava: prestígio. Também colaborara para o sucesso da música, além de suas evidentes qualidades musicais, um fato inusitado: o relógio cuco, então gozando de imensa popularidade, muitas vezes dava defeitos, com problemas nas engrenagens, fato que os fazia disparar exatamente como retratado pela música:
"Cuco! Cuco! Cuco!
O passarinho do relógio está maluco
Ainda não é hora do batente
E ele fica impertinente
Acordando toda gente
Fazendo Cuco, cuco, cuco.
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Eu pego às oito e quarenta e cinco
E levanto às sete
Pra tomar banho e café
Mas, quando são mais ou menos três e cinco
Ele começa: cuco, cuco, cuco
E só termina quando estou de pé."

Aracy de Almeida interpretando Cuco.
















Rosa Passos interpretando Curare.




Elsa Soares interpretando Samba da minha terra.














Sílvio Caldas interpretando Velho Realejo.




 










Homenagem a Greta Garbo com a música Dama das Camélias (Braguinha/Alcyr Pires Vermelho), interpretada por Caetano Veloso.






Mas, bom mesmo para o compositor foi o ano de 1941. Haroldo lança, nada mais, nada menos, do que 12 músicas para o carnaval desse ano. Dentre elas, destacam-se O Passo do Canguru, "(Todo mundo tem seu passo/ é gato, é rato, é urubu (...)", outra ótima gravação de Aracy de Almeida, gravada até nos Estados Unidos.


O Passo do Canguru, com Aracy de Almeida

E mais: O Bonde do Horário já Passou
(gravação de Patrício
Teixeira), Essa Vida Não é Sopa, também gravada por Patrício Teixeira, onde Haroldo compõe pela primeira vez com Wilson Batista; e o mega-sucesso, Alá-lá-ô, dele e de Nássara, arranjos de Pixinguinha e magnificamente cantada por Carlos Galhardo. Foi o maior sucesso carnavalesco de Haroldo Lobo de todos os tempos:

"Alá-lá--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Mas que calor-ô-ô-ô-ô-ô-ô
Atravessamos o deserto do Saara
O sol estava quente
E queimou a nossa cara
Alá-lá-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô.
Viemos do Egito
E muitas vezes
Nós tivemos que rezar:
Alá, Alá, Alá, meu bom Alá
Mande água pra Ioiô
Mande água pra Iaiá
Alá, meu bom Alá".
Carlos Galhardo interpretando Alá-lá-ô.
















Haroldo Lobo, depois deste esplendoroso sucesso, não para mais. Compõe praticamente todo tipo de música, carnavalescas, de meio de ano, músicas juninas etc. Além do mais, aprende com seu parceiro, Milton de Oliveira, a trabalhar suas músicas junto aos formadores de sucessos nas rádios. Milton, inclusive, era acusado de sabotar outras músicas em proveito próprio. Haroldo, que divulgava suas músicas na zona sul, usava os guardas municipais (ele era uma espécie de comissário, fiscal dos guardas) que prestavam serviços nos bailes de salão, para pedirem aos maestros que executassem tais e tais músicas, de preferência aquelas de autoria de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. Assim, os sucessos vêm de roldão: Emília (1942), Alô, Padeiro (1943), gravação de Déo, o "Ditador de Sucessos", ...E o 56 Não Veio e Rosalinda (1944), Hilda, O Alberto Bronqueou e Cabo Laurindo, ambas de 1945.



Cabo Laurindo, feita em parceria com Wilson Batista (assim como Alô, Padeiro e ...O 56 Não Veio), e gravada por Jorge Veiga com o conjunto de K-ximbinho, foi composta quando do retorno das tropas brasileiras que lutaram contra o nazi-fascismo na Europa, e é clássica pelas corajosas palavras que saem dos versos de Wilson Batista, um dos compositores mais engajados na questão da denúncia das nossas mazelas sociais, apesar de os historiadores de nossa música popular dizerem que ele era um compositor despolitizado. A questão do poder é claramente levantada na música, que conta a história de um favelado, provavelmente negro, que brilhara na Itália lutando na guerra e agora, com poder, promovido a cabo, que, no morro, significa autoridade, pode por em prática tudo aquilo que sempre defendera, entre elas, a "igualdade" e, tanto, que logo em seguida Wilson, em tom previdente, comenta que "(...) dizem que lá no Morro/ vai haver transformação (...)." Obviamente, porque, se Laurindo defendia a igualdade, agora que pode, ele vai tentar implantá-la. Apesar do narrador da letra, oferecer seu apoio, dizendo-se "(...) à disposição", e chamá-lo de "camarada" (tratamento comum entre os comunistas), só não fica claro, de que meios Laurindo lançaria mão, se realmente ele pretendesse implantar essa igualdade. Apesar de sua idealização, Cabo Laurindo é uma música eterna, e só ela bastaria para consagrar qualquer compositor:

"Laurindo voltou
Coberto de glória
Trazendo garboso no peito
A Cruz da Vitória
Ôi, Mangueira, Salgueiro,
Estácio, Matriz, estão agindo
Para homenagear
O bravo cabo Laurindo.

As duas divisas que ele ganhou, mereceu
Conheço os princípios que Laurindo
Sempre defendeu
Amigo de verdade
Defensor da igualdade
Dizem que lá no morro
Vai haver transformação
Camarada Laurindo
Estamos à sua disposição."
Jorge Veiga interpretando Cabo Laurindo.

















Ao longo dos anos quarenta, Haroldo continua sua saga de sucessos: Saem de sua fornalha centenas de músicas, a maioria se tornando grandes sucessos, sendo impossível elencá-las pela quantidade exagerada de títulos. Contando as centenas de músicas feitas por ele, não seria exagerado dizer que, seguramente, ele está entre os compositores com mais músicas em sua bagagem. Em 1946, além de ganhar novamente o concurso oficial do carnaval patrocinado pela prefeitura do Distrito Federal com a marchinha Espanhola, lançamento de Nelson Gonçalves, parceria com Benedito Lacerda, lança também com bastante sucesso Vou Sambar em Madureira, feito em parceria com Milton de Oliveira. Em 1947, entra em uma polêmica com a censura, por causa de sua música Eu Quero É Rosetar, ganhadora do carnaval, mas tendo os discos recolhidos em nome da moral e dos bons costumes. Passo da Girafa, de 1949, gravação de Aracy de Almeida, foi outro de seus grandes sucessos.
 


Nelson Gonçalves interpretando Espanhola.








Então, voltando ao carnaval desse ano, Coroa do Rei, (David Nasser e Haroldo Lobo), interpretada por Dircinha Batista, aliás, uma das "majestades" criticadas, conquanto a cantora já ostentara o título de Rainha do Rádio, acabou por se tornar também grande sucesso popular, tirando o segundo lugar no concurso oficial:



"A coroa do rei
Não é de ouro nem de prata
Eu também já usei
E sei que ela é de lata.
.
Não é de ouro nem nunca foi
A coroa que o rei usou
É de lata barata
E olhe lá…borocochô.
Na cabeça do rei andou
E na minha andou também
É por isso que eu digo
Que não vale um vintém."
 
Dircinha Batista interpretando Coroa do Rei.




Se Marlene precisasse de um sucesso para reafirmar sua condição de Rainha do Rádio, o samba de Manoel Sant’Ana Se é Pecado Sambar caiu-lhe de para-quedas. Talvez tenha sido o samba mais bonito do carnaval de 1950, ficando em terceiro lugar no concurso oficial. À bela melodia, uniu-se uma letra inteligente e maliciosa, que logo conquista os foliões do Brasil inteiro:



"Se é pecado sambar
A Deus eu peço perdão
Eu não posso evitar
A tentação
De um samba dolente
Que mexe com a gente
Fazendo endoidecer
É um tal de me pega
Me solta e me deixa
Sambar até morrer."

 

Marlene interpretando Se é Pecado Sambar.






 










 

Francisco Alves, o Rei da Voz, foi o intérprete do sucesso em que se transformou A Lapa, de Benedito Lacerda e Herivelto Martins. Letra e melodia se casam de maneira harmônica e coesa, neste samba que se tornou um hino em louvor do velho reduto da boêmia carioca. Por ironia do destino, e ao contrário do que diz a letra, a Lapa nunca mais foi a mesma, começando, à essa época, sua decadência definitiva:

"A Lapa
Está voltando a ser a Lapa
A Lapa
Confirmando a tradição
A Lapa
É o ponto maior do mapa
Do Distrito Federal
Salve a Lapa!
.

O bairro das quatro letras
Até um rei conheceu
Onde tanto malandro viveu
Onde tanto valente morreu.
.
Enquanto a cidade dorme
A Lapa fica acordada
Acalentando quem vive
De madrugada."

 Francisco Alves interpretando A Lapa. 
















Para esse carnaval, Emilinha escolhe as marchas Escocesa (Dunga e Vicente de Abreu), e Casca de Arroz (Arlindo Marques e Roberto Roberti) e os sambas Eu Já Vi Tudo (Peterpan e Amadeu Veloso), em que a cantora canta em dueto com a rival Marlene, claramente um golpe publicitário da indústria cultural, e Boca Rica de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos.


Geraldo Pereira, mineiro de Juiz de Fora, a essa altura, já com 34 anos, é um compositor respeitado e com muito chão rodado. Nem bem tinha 12 anos, vai, a chamado do irmão, Manuel Araújo, para o Rio de Janeiro, indo direto para Mangueira, onde o irmão morava com a mãe de ambos e uma filha. Iria cuidar delas, enquanto o irmão trabalhava.


Tão logo completa o curso primário, Geraldo se casa, tentando seu sustento com biscates e trabalhando como atendente de botequim. Tinha ele, porém, um problema: o vício. Era chegado numa branquinha, coisa comum na família, conquanto a mãe, quando bebia, aprontava todas no meio da rua; a boemia o atraía de forma irresistível, começando a chifrar a mulher abertamente.


Só que, repentinamente, ele some de mapa. Ninguém sabe, ninguém viu. 
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O que tinha acontecido mesmo, segundo as lendas musicais, é que, como era disputado pela cabrochas do morro, devido a seu belo porte, 18 anos de idade, e maneira de mineiro come quieto, Geraldo aprontara uma das suas com mulher de casa posta. O dono da china, com fama de bravo no morro, dera-lhe 24 horas para desaparecer, sendo prontamente obedecido por Geraldo, que foi se estabelecer - onde? -, na Lapa, é claro.


Em 1939, tendo como profissão dirigir um caminhão de lixo, através de um obscuro compositor, Nelson Teixeira, conhece Roberto Paiva, que, cantando na Mayrink Veiga e gravando na Odeon, atravessava fase de alta popularidade, Os dois lhe mostram um samba, Se Você Sair Chorando, que termina sendo gravado por ele, participando do famoso concurso do carnaval de 1940 promovido pela Prefeitura Federal, cuja ganhadora foi Ó Seu Oscar!, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, o maioral, o bamba do pedaço. A música de Geraldo e de seu parceiro não faz feio e fica entre as vinte classificadas além de alcançar certa notoriedade.

Roberto Silva interpretando Ó Seu Oscar!.



Pouco depois, Geraldo é surpreendido pelo convite de Wilson Batista para comporem juntos. O resultado: a maravilhosa Acertei no Milhar, de 1940, gravada por Moreira da Silva e um de seus primeiros grandes sucessos (segundo alguns, isto não seria verdade, a música sendo somente de Wilson). Morengueira, também, gravaria, para o carnaval de 1941, outra música de Geraldo, Olhe a Cara Dela.

Coral UNIFESP interpretando Acertei no Milhar.


Ainda em 1941, conhece Ciro Monteiro, que seria seu intérprete mais importante, além de se constituir em amigo e protetor, percebendo, de imediato, malandro que era, a ingenuidade daquele menino ainda, a despeito de sua vida bastante conturbada. Logo grava Acabou a Sopa, a primeira de uma série de músicas de Geraldo gravadas pelo afamado sambista.

Com a fama, Geraldo começa a ser gravado por grandes nomes da música popular brasileira, Aracy de Almeida, Isaurinha Garcia, Roberto Paiva, Moreira da Silva, Ciro Monteiro, Odete Amaral, Anjos do Inferno, Quatro Ases e Um Coringa e vários outros, sendo parceiro de diversos compositores, destacando-se Augusto Garcez (Lembra-te Daquela Zinha), Marino Pinto (Falta de Sorte), J. Portela (Quando ela Samba), Moreira da Silva (A Voz do Morro), Ary Monteiro (Ai, Que Saudade Dela), Djalma Mafra (Jamais Acontecerá) etc.

Em 1944, os Anjos do Inferno gravam Sem Compromisso, samba de sua autoria e de Nelson Trigueiro (que ganharia notoriedade quando gravado por Chico Buarque em 1974, participando do aclamado LP Sinal Fechado), ao mesmo tempo em que Geraldo alcança seu maior sucesso, Falsa Baiana, composição que teria sido baseada em um fato curioso: ao se deparar com a mulher de Roberto Martins vestida de baiana, mesmo ela não sabendo sambar, quer dizer uma falsa baiana, Geraldo logo bola a música, que, gravada por Ciro Monteiro, se constituiu em um dos maiores êxitos do grande sambista e de Geraldo Pereira. A música, muito avançada em termos melódicos, é considerada um marco da música popular brasileira:

"Baiana que entra na roda
Só fica parada
Não canta, não samba
Não bole nem nada
Não sabe deixar a mocidade louca.


Baiana é aquela
Que entra no samba
De qualquer maneira
Que se mexe, remexe
Dá nó nas cadeiras
E deixa a moçada com
Água na boca.


A falsa baiana
Quando cai no samba
Ninguém se incomoda
Ninguém bate palma
Ninguém abre a roda
Ninguém grita "oba,
Salve a Bahia, Sinhô!"


Mas a gente gosta
Quando uma baiana
Quebra direitinho
De cima em baixo
Revira os olhinhos
E diz: "Eu sou filha
De São Salvador"."


Ciro Costa interpretando Falsa Baiana.
















Geraldo alcança outro expressivo êxito em 1945, quando os Anjos do Inferno gravam, na RCA Victor, o samba Bolinha de Papel, que, como Falsa Baiana, se tornaria um clássico da bossa nova ao ser regravada por João Gilberto:


"Só tenho medo da falseta
Mas adoro a Julieta
 
Como adoro Papai do céu.
Quero seu amor, minha santinha
Mas, só não quero que me faça
De bolinha de papel.

Tiro você do emprego
Dou-lhe amor e sossego
Vou ao banco

Tiro tudo pra você gastar
Posso, ó Julieta
Lhe mostrar a caderneta

Se você duvidar."

 

Anjos do Inferno interpretando Bolinha de Papel (Geraldo Pereira).




 










Após 1948, Geraldo se depara com grandes dificuldades, tanto na vida pessoal quanto em sua carreira. Primeiramente, por causa de Chegou a Bonitona
música que deveria ser gravada na RCA Victor pelo grande amigo Ciro Monteiro. Alegando falta de matéria prima, a gravadora, entretanto, havia suspendido todas as gravações por determinado período. Geraldo, ao invés de esperar que os problemas da gravadora fossem sanados, e, além do mais, precisando de dinheiro, entrega a música a Blecaute para ser gravada na Continental. Aborrecido, Ciro para de falar com Geraldo por bastante tempo.


Para complicar ainda mais as coisas, o samba e os sambistas passam, nesse momento, por um período de grandes turbulências, devido à concorrência da música norte-americana, que começava a invadir o Brasil com força avassaladora, e de suas similares brasileiras, aqui representadas por Dick Farney, Os Cariocas, Lenita Bruno, Lúcio Alves etc., além de ter que enfrentar o baião e o bolero, que, pouco tempo antes, começaram a dominar, irresistivelmente, o gosto musical do brasileiro.
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Com isso, Geraldo passa por um período de declínio, não obstante conseguir gravar, de 1948 a 1950, diversas músicas, Que Samba Bom, Mexe, Mulher e Perdi Meu Lar, compostas com Arnaldo Passos, Chegou a Bonitona e Brigaram para Valer, as duas em parceria com J. Batista, e Sem Destino feita com Oldemar Magalhães.


Black Out interpretando Chegou a Bonitona (Geraldo Pereira/J. Batista).















Nesse último ano, Emilinha escolhe um samba de sua autoria - Boca Rica - para fazer parte de seu repertório carnavalesco.


Emilinha depositava grandes esperanças em Boca Rica. Geraldo e Arnaldo Passos fizeram um samba sincopado, com bela melodia e uma letra bastante interessante, mas que, no entanto, não agradou ao grande público, terminando por ser praticamente esquecida pelos divulgadores dos sucessos carnavalescos:






"Pessoal, vamos beber
Pra dona da casa não se aborrecer
Vamos agradar a dona Chica

Pra gente não perder
e
ssa boca
rica.



Comida a noite inteira
Bebida a toda hora
Mulheres de baiana

Com barriguinhas de fora

O samba só acaba
Depois que rompe a aurora

A gente tem dinheiro

E condução pra ir embora."
.Mas, tudo seria uma questão de tempo. Geraldo Pereira era grande demais para desaparecer de seu meio. E logo ele demonstraria que isso era verdade.


***


Com relação às marchas carnavalescas do carnaval de 50, várias se tornaram patrimônio da música popular brasileira, destacando-se Daqui Não Saio (Paquito e Romeu Gentil), cantada pelos Vocalistas Tropicais, repetindo o sucesso do carnaval anterior (Jacarepaguá); Meu Brotinho (Luiz Gonzaga/Humbero Teixeira), com Francisco Carlos; Balzaqueana (Nássara e Wilson Batista), cantada por Jorge Goulart; Serpentina (Fernando Lobo e David Nasser), interpretada por Nelson Gonçalves; e a Marcha do Gago, dos "hit-makers" Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, com o famoso cômico das chanchadas, Oscarito.


A grande vencedora do carnaval no concurso oficial e a mais cantada por todo o Brasil, foi, sem sombra de dúvidas, Daqui Não Saio; como sempre acontecia no carnaval, sua letra era de crítica social, agora abordando tema ainda hoje candente: a falta de moradias para o povão e as vãs promessas de se solucionar o problema:


"Daqui não saio
Daqui ninguém me tira
Onde é que eu vou morar
O senhor tem paciência de esperar
Ainda mais com quatro filhos
Onde é que eu vou parar.


Sei que o senhor tem razão
Pra querer a casa para morar
Mas onde eu vou ficar
No mundo ninguém perde por esperar.
Mas, já dizem por aí
Que a vida vai melhorar."

Ouça Daqui Não Saio, com os Vocalistas Tropicais.






















Francisco Carlos, o "El Broto", emplacou um dos maiores sucessos desse ano - Meu Brotinho -, a marchinha histórica mais pelos seus compositores, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, acostumados com outro ritmo, o baião, o que não os impediu de compor uma das mais deliciosas marchinhas do carnaval de 1950:

“Ai, ai, brotinho…
Não cresça meu brotinho,
Nem murche como a flor…
Ai, ai, brotinho…
Eu sou um galho velho,
Mas quero o seu amor…

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Meu brotinho, por favor não cresça…
Por favor não cresça,
Já é grande o cipoal…
Veja só que galharia seca,
Tá pegando fogo
Neste carnaval…”




Francisco Carlos interpretando Brotinho.















Balzaqueana (um termo cunhado a partir do famoso romance A Mulher de Trinta Anos, de Balzac), fica em segundo lugar no concurso da prefeitura do Distrito Federal, disputando com Daqui Não Saio as preferências populares. Foi a música que impulsionou a carreira de um cantor razoavelmente novo, Jorge Goulart, tornando-o, aos 24 anos, um astro de primeira grandeza no cenário musical brasileiro:



"Não quero broto
Não quero, não quero não
Não sou garoto
Pra viver na ilusão
Sete dias na semana
Eu preciso ver
Minha balzaqueana.

O francês sabe escolher
Por isso ele não quer
Qualquer mulher
Papai Balzac já dizia
Paris inteira repetia
Balzac tirou na pinta
Mulher, só depois dos trinta."

Ouça Balzaqueana, com Jorge Goulart


 





Sucesso espetacular também alcançou o cômico Oscarito com a Marcha do Gago, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti (que desbancou todo mundo nesse carnaval), que, apesar da fraca letra, ou mesmo, por causa disso, caiu no gosto popular, impulsionada pelo fato de ser cantada no filme de Watson Macedo Carnaval no Fogo, sucesso espetacular de público:


"Tá, tá, tá, tá na hora
Vá, vá, vale tudo agora
Eu sou mo, mole pra falar
Mas sou um Pintacuda pra beijar.


Eu fico ga, ga, ga, gago
Dentro do salão
E até pa, pa, pa, pago
Pra não ver canhão
Mas se, se, se, se a dona é boa
A minha língua se destrava à toa."
 Oscarito interpretando A Marcha do Gago.





 Os versos mais bem elaborados de todas as músicas do carnaval de 1950, porém, pertenceram à marchinha Serpentina. Fugindo de um estilo tradicional reinante no carnaval, "malícia versus crítica social", sua melodia resgatava para o carnaval uma variação da marcha um pouco desaparecida e que faria muito sucesso nos carnavais posteriores, algumas se tornando (como As Pastorinhas, de Noel Rosa e Braguinha, de carnavais passados) verdadeiras jóias do cancioneiro popular: a marcha-rancho. Na voz de Nelson Gonçalves,terminou por tirar o terceiro lugar no concurso oficial:

"Guardo ainda bem guardada a serpentina
 Que ela jogou 
 Ela era um linda colombina
 E eu um pobre pierrô
Guardei a serpentina que ela me atirou
Brinquei com a colombina até as sete da manhã
Chorei quando ela disse: vou-me embora
Até amanhã,
Pierrô, até amanhã."


Ouça Serpentina, com Nelson Gonçalves.




O carnaval, a se levar em conta o sucesso de 1950, parecia mostrar que ainda tinha muita força e fôlego. O correr da década é que confirmaria se isso era verdade ou não.