30.8.06

“APOCALÍPTICOS E INTEGRADOS”

Nora Ney, já conhecida e famosa nacionalmente, tentaria, nesse ano de 1955, uma cartada certeira para entrar definitivamente na história do rádio e da música popular brasileiros: eleger-se Rainha do Rádio, juntando-se à nata das cantoras nacionais, Linda Batista, Dircinha Batista, Dalva de Oliveira, Marlene, Emilinha Borba e Ângela Maria. Não era pouca coisa; ganhar o concurso era a consagração definitiva para qualquer artista e a oportunidade de pertencer à elite das intérpretes do rádio. Sua pretensão não era nada absurda: Em 1953, com apenas dois anos de carreira, fora consagrada como a Rainha do Disco do ano e, em 1954, ficara com a terceira colocação entre as cantoras que mais receberam cartas dos fãs – 7.827 –, ficando apenas atrás da campeoníssima Emilinha Borba, com impressionantes para a época 24.046 cartas, e Marlene (20.465 cartas). Além disso, não havia concorrentes à sua altura, porquanto todas as cantoras mais famosas já haviam sido eleitas, restando apenas Dóris Monteiro, que seria candidata apenas no ano seguinte.



Aqui, um parêntese: Ao longo dos anos, após a decadência do rádio e da queda de popularidade de suas cantoras, a imagem e o repertório de Nora Ney foram sendo mitificados por uma crítica mais elitizada, inimiga da indústria cultural, “apocalíptica”, atingindo o apogeu com a publicação do livro da socióloga e historiadora Miriam Goldfeder Por Trás das Ondas da Rádio Nacional, publicado em 1981, hoje um “hot paper”, fonte primária de consulta que origina ou subsidia vasta literatura sobre a Rádio Nacional e a Música Popular Brasileira.

A autora, já na apresentação do livro, reconhece que ele fora concebido como “fruto de uma época e de posições que eu reveria atualmente”, considerando-o “um reflexo dos anos pré-abertura”. Efetivamente, baseado em tese defendida em 1977 (anos Geisel), o livro objetiva analisar, ideologicamente, a produção radiofônica da Rádio Nacional na década de 50, “buscando seu significado político-ideológico mais amplo a partir da função ocupada por ela no conjunto das práticas sociais do período”. Para isso, ela parte de alguns pressupostos, dentre os quais se destacam, primeiro, o de que os mecanismos culturais controlavam, ideologicamente, a produção radiofônica da Rádio Nacional e, segundo,
“o controle exercido por estes mecanismos culturais esteve longe de exercer-se de forma hegemônica, abrindo brechas para a penetração de elementos ideológicos que extrapolaram (...) o estreito domínio imposto pela ideologia dominante”.
No campo musical, precisando de uma imagem-símbolo para ser o exemplo da “propagação da excelência dos padrões éticos dominantes”, Miriam resolveu eleger Emilinha Borba para tal mister; a cantora serve como uma luva, não por ser mais conservadora – todas as cantoras eram, de uma forma ou de outra, conservadoras, em uma época também violentamente conservadora –, mas por ser a mais famosa, para sintetizar, no plano individual, a propagação desses ideais conservadores, a fim de permitir o controle dos corações e das mentes da “baixa classe média e do proletariado (...) já desiludidos com as perspectivas que a sociedade parecia lhes oferecer”. Na visão de Miriam, então,


“a cantora vai constituir, na década de 50, a imagem tipificadora, a nível individual, do quadro de valores morais conservadores e reprodutores das relações sociais dominantes”,
sendo considerada pela autora o “projeto paradigma” desse esquema de dominação.
Obviamente, pode-se perceber o ranço ideológico e o horror que a cantora, com ampla penetração nas camadas mais populares da população, provoca na socióloga, horror que, ao longo de seu texto, se aproxima do desdém.


Só que Emilinha Borba – pesquisando-se os jornais e as revistas especializadas da época – nem com muita boa vontade, poderia ser um “projeto paradigma” desse esquema de dominação supostamente articulado pelas forças capitalistas dominantes, já que, como dissemos, atitudes e opiniões tidas por Miriam como conservadoras não eram privilégio dela, mas do conjunto das forças atuantes dentro da Nacional, inclusive de suas chamadas forças progressistas – Paulo Gracindo, de esquerda, por exemplo, comandava um programa de auditório, onde a estrela absoluta era exatamente Emilinha Borba; Mário Lago, membro do Partido Comunista, nesse mesmo ano de 1955 ganhou o prêmio de melhor novelista do ano pela autoria de Professora Mariana, uma novela radiofônica que, dentro dos critérios da historiadora, seria absolutamente perniciosa para as massas, novela essa que idealizava um romance com final feliz entre o galã, um médico, um elemento da elite, e uma professorinha das classes baixas com, imaginem, as duas pernas amputadas –, que obedeciam aos ditames de um regime ainda autoritário, mesmo após a redemocratização, de uma censura castradora e atuante (vide o episódio Rio Quarenta Graus) e de uma sociedade sabidamente moralista e violentamente conservadora. Quem viveu aquela época sabe do que se está falando, principalmente as mulheres, as que mais sofriam.

Miriam conceitua moralismo como

“(...) a prática dos valores morais atados aos padrões éticos vigentes e válidos para o grupo social emissor das mensagens, ligados basicamente às instituições burguesas como família, igreja, casamento etc”.
Para este tipo de entendimento, então, a novela de Mário Lago, acima citada, é o exemplo máximo de conservadorismo, enganosa para as massas, já que “o moralismo difuso e conservador”, nela se faz presente de maneira muito mais perversa do que em qualquer música ou comportamento de Emilinha Borba, pela imensa penetração das novelas da Rádio Nacional junto à população brasileira, similarmente ao que acontece hoje com as telenovelas da Rede Globo.


Em outra parte de seu trabalho, Miriam, “procura localizar as manifestações que, de uma forma ou de outra, romperam os padrões dominantes de atendimento simbólico”. Para isso, utiliza-se da imagem de Nora Ney (e de Dalva de Oliveira), que, segundo ela, representava(m) “uma transgressão em termos de imagem e repertório ao sistema de valores conservadores que permeava a maior parte das produções ligadas ao meio radiofônico”; Miriam dizia ainda que as referidas cantoras


“canalizaram num sentido não mais narcotizador ou idealizado, mas próximo de uma perspectiva crítica, um outro plano das representações sociais”, sendo, portanto, “capazes de superar os quadros mais reduntantes da produção cultural de massa”.
As contradições entre a imagem idealizada e a verdadeira de Nora Ney são flagrantes no livro, principalmente quando Miriam coloca que a cantora,

“pelas características de seu estilo, desenvolveu uma imagem sofisticada que, em primeira instância, não seria diretamente assimilável pelo consumo popular.”
.Nora chegou a dizer à autora que nunca tinha sido cantora de massas, do povão; entretanto, logo após, na mesma entrevista, diz que seus maiores fãs eram “os presos e as prostitutas”, ou seja, como se dizia antigamente, a ralé da sociedade, um público nada sofisticado, advindo, logicamente, das massas lumpenzinadas. A contradição é patente, mas Miriam tem uma explicação para tal: o repertório e o estilo de Nora Ney eram realmente para um público especial, os ricos, naturalmente, as classes média e média alta, sendo, entretanto
“capazes de atender às expectativas de camadas que, por sua condição existencial se destacavam do conjunto de indivíduo de seu setor social”.
Ou seja, um indivíduo preso por estupro ou assassinato, por exemplo, e uma grãfina de Ipanema tinham o mesmo gosto musical, identificando-se, imediatamente, com a imagem e o repertório da cantora.


A partir daí, Miriam constrói sua imagem de Nora Ney para seus propósitos: ela seria “uma Emilinha às avessas”, que quebrava

os padrões éticos referendados pela moral dominante (...) e derrubava os mitos sobre os quais (Emilinha) se assentava: a felicidade conjugal, a preservação da moral, a indissolubilidade do casamento, opondo a eles valores como liberação e luta pelos direitos fundamentais da mulher.”
Nora também projetaria “um lado não idealizado, desmistificado e crítico a um universo de valores padronizados e conservadores”. E, finalmente, Miriam afirma que Nora “relutava em participar dos mecanismos de divulgação e promoção ligados ao meio radiofônico”, opondo-se “aos mecanismos que tencionavam transformá-la em ídolo popular”.

Será tudo isto verdade? Analisemos alguns fatos:

Como já visto ao longo deste texto, Nora alcança relativo êxito já com seu primeiro disco – Menino Grande –, de Antônio Maria, gravado em 1952, atingindo, espetacularmente, os primeiros lugares das paradas de sucessos, ainda nesse mesmo ano, com a música Ninguém me Ama, desse mesmo compositor, em parceria com Fernando Lobo.

Antônio Maria era um cara poderoso e isso ajuda a compreender o sucesso precoce de Nora Ney. Ruy Castro, em seu livro sobre a Bossa Nova – Chega de Saudade –, diz textualmente:

“Como também dominava os jornais, Antônio Maria podia ditar o gosto da época à vontade. Naturalmente, à vontade do seu gosto. E este era por aquele ritmo que surgia quando o samba e a canção foram apanhados na cama: o samba-canção – embora houvesse suspeitas de que o pai da criança fosse o bolero num momento em que o samba estava distraído”.

Pouco antes de seu estouro com Ninguém me Ama, acontece, como já visto, sua tentativa de suicídio, fato que deixou a mídia em polvorosa, porquanto Nora era, sem dúvida, parte integrante da indústria cultural, segundo ela, instada pelo marido que a acusava de adultério com Jorge Goulart, cantor que também então atingia altos níveis de popularidade. Com efeito, pouco tempo depois, a dupla oficializou o romance que perdurou até a morte da cantora em outubro de 2003, ou seja, uma ligação de 50 anos que, certamente, coloca em cheque a afirmação de Miriam, segundo a qual Nora Ney “derrubava o mito da felicidade conjugal”.

Já no seu primeiro número, a revista Radiolândia, lançada por Roberto Marinho para concorrer com a Revista do Rádio, Nora Ney é contemplada com uma coluna onde narrava o seu dia a dia, dava conselhos, fazia considerações morais e avisava aos fãs o seu itinerário musical, suas excursões. Enfim, agia exatamente como Emilinha, que, paralelamente, tinha uma coluna – o “Diário de Emilinha” – na Revista do Rádio. As reportagens sobre o seu cotidiano familiar e respeitável nas duas revistas acima citadas eram constantes. Na Radiolândia de número cinco, por exemplo, ela diz que
“alguém perguntou por que eu não uso roupa decotada e biquini. Só posso responder que essas coisas são para quem gosta. Eu não gosto.”

Em seu livro, Miriam critica acidamente Emilinha por ela não usar maiô, vendo nisso uma prova de seu conservadorismo.

No mesmo quinto número da citada revista, Nora pede à diretoria da CANORA (Clube dos Amigos de Nora) que a procurasse, “porque nós precisamos lançar uma candidatura para o concursoA Maior das Fans’”.
Por que será que Nora Ney queria uma candidata para participar de tal concurso, uma vez que “ela relutava em participar dos mecanismos de promoção e divulgação dos produtos ligados à produção radiofônica”?


Também, na Radiolândia de junho de 1954, falando sobre seu aniversário, Nora disse que

“um grupo de fans ofereceu-me um colar de pérolas cultivadas de muito valor, um anel-relógio todo de ouro – nunca mais pretendo tirá-lo do dedo, um disco de ouro com a inscrição: para Nora Ney a ‘Rainha do Disco' de 1953 (...), sabonetes e perfumes que dariam para abrir uma perfumaria, rádio de cabeceira, telefone da cor do rádio (...)”.


Outra crítica azeda de Miriam a Emilinha se devia à sua imagem “consumista”, traduzida nas ocasiões festivas, época em que os fãs da cantora a presenteavam, na maioria das vezes, simbolicamente. Miriam, piedosamente, chega a lamentar o sacrifício que os fãs faziam, já que, eram “na sua grande maioria mulheres que ocupavam funções de empregadas domésticas, balconistas, com salário reduzido”. Então fica a pergunta: quem, afinal de contas, presenteava Nora Ney com "sabonetes e perfumes que dariam para abrir uma perfumaria"?

De outra vez, Na Radiolândia de número 81, justificando por que votaria nas eleições presidenciais de 1955 em Adhemar de Barros, líder populista da direita paulista, e em Milton Campos, da UDN golpista:

“Tenho convicção que farão um bom governo para o Brasil (...) conhecedores profundos dos problemas que atingem nosso povo, dinâmicos e eficiente (...)”
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Miriam Goldfeder, apesar disso, vê Nora Ney “comprometida com movimentos ligados à propagação da cultura popular, conscientizadora (...)”. Qual seria, afinal, a Nora Ney verdadeira, a que vota na direita ou a comprometida com a esquerda?

Chegamos então ao episódio aludido no início do texto – a eleição para Rainha do Rádio de 1955, que sintetiza todos os fatos e eventos acima citados e que desmente que Nora Ney “Relutava em participar dos mecanismos de divulgação e promoção ligados ao meio radiofônico” e, além do mais, confirma a integração da cantora ao sistema de valores predominantes na década de 50.

Embora favorita, com o passar dos dias e com o avanço das apurações, Nora foi perdendo terreno para uma cantora menos famosa da Rádio Nacional – Vera Lúcia –, protegida de animador de auditórios, Manoel Barcelos (segundo se disse, o principal responsável por sua eleição), cujo repertório perpassava vários ritmos, samba (Não Vou Chorar, de Humberto Teixeira e Felícia Godoy), marcha (Rita Sapeca, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti), baião (Baião de Alagoas, de Humberto Teixeira), samba-canção (Eu Sei Que Você Não Presta, de Mário Lago e Chocolate), xote (Suspiro Vai, de Graça Batista e Álvaro Carrilho), mas que se fixou nos sambas-canções, lançando diversos pequenos sucessos, inclusive de um jovem compositor então iniciante, Antônio Carlos Jobim, como Por Causa de Você (em parceria com Dolores Duran) e outras.

Dolores Duran interpretando Por Causa de Você.
















Quando Vera Lúcia, para espanto de todos, foi anunciada a vencedora, com 565.636 votos, a reação de Nora Ney foi violenta; em uma irada entrevista à Radiolândia (17.02.1955), Acusa Armando Louzada (que tinha ajudado a eleger Ângela Maria no ano anterior, com cerca de um milhão e meio de votos) de tê-la traído, ao prometer-lhe a quantia de CR$ 420.000, 00 que viria da Companhia Antarctica Paulista. Além do mais, Paulinho de Carvalho, o todo poderoso da TV Record, lhe presenteara com dois programas em sua emissora para serem vendidos a patrocinadores e que reverteriam em votos para o concurso. Armando Louzada teria ficado incumbido de realizar a venda desses programas aos patrocinadores, que poderia render mais CR$ 600.000,00, o que não deveria ser difícil em virtude da popularidade por que passava a cantora. É Nora quem diz:



"Faltando exatamente uma hora para encerrar a entrega dos votos, é que ele comunicou-me que ele não havia vendido os programas (...) fiquei desesperada (...) eu fora traída, e traída por uma pessoa em quem confiava plenamente, nas mãos de quem coloquei uma coisa tão séria, como seja, o título de ‘Rainha do Rádio’”.


Que “corrosão” ao sistema, assim demonstrado pôde Nora Ney representar? O fato é que, o que se retira desse episódio, e acompanhando a carreira da cantora desde sua estreia, sua inserção na mídia, ora apresentada como mãe extremosa, ora como “mulher fatal” (basicamente pelo seu repertório "down"), é que Nora Ney era uma cantora como todas as outras, com família (“salve o Dia das Mães, dia do mês mais lindo do ano, o mês das noivas, da flor de laranjeira, da pureza, o mês de maio (...)”, escreveu Nora Ney na Radiolândia de n.º 52, de abril de 1955), religiosa, usando roupas recatadas, com posições políticas vacilantes, participante dos mesmos concursos – Rainha do Rádio, Rainha dos Músicos (perdendo para Elisete Cardoso) – enfim, uma cantora completamente assimilada e integrada.

De qualquer forma, Nora Ney, com sua forte personalidade, não era mulher de chorar pelo leite derramado; logo esquece o concurso e investe pesadamente em sua carreira discográfica, lançando, nesse ano, só em 78 rpm, pela Continental e pela Todamérica, dezesseis músicas, a maioria composta de sambas-canções, além de gravar seu primeiro Long Playing – Canta Nora Ney –, com oito músicas, quatro de Antônio Maria (Menino Grande, Onde Anda Você, Quando a Noite me Entende, em parceria com Vinícius de Moraes, Se eu Morresse Amanhã, além de uma das primeiras músicas gravadas de Antônio Carlos Jobim, O Que Vai Ser de Mim. Completam o LP Não Sou Mais Criança, de Luiz Bonfá, Quanto Tempo Faz, de Fernando Lobo e Paulo Soledade e O Que Foi Que eu Fiz, de Luiz Peixoto e Augusto Vasseur.
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Simone interpretando Se eu Morresse Amanhã.



Nesse ano de 1955, Nora Ney entraria, definitivamente, para a história do disco no Brasil; dentre as músicas gravadas em 78 rpm, a cantora incluiu uma música em inglês, na verdade, o primeiro rock and roll gravado no país.
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A história corrente é que, antes de lançar aqui o filme Sementes da Violência (Blackboard Jungle no original, dirigido por Richard Brooks e interpretado por Glenn Ford, Anne Francis, Louis Calhern, Vic Morrow e por um estreante Sidney Poitier), um, na época, violento filme sobre delinqüência juvenil em um colégio norte-americano, a MGM mandara para a Rádio Nacional uma fita contendo a trilha sonora do filme para fins promocionais. Uma das músicas era, nada mais, nada menos do que Rock Around the Clock, interpretada por Bill Haley (que não aparece no filme), uma das primeiras músicas a conformatar o estilo que estava enlouquecendo a juventude por todo o mundo. O então diretor da Rádio Nacional, Victor Costa, após escutar a música, sugeriu que Nora a gravasse, porquanto ela era uma das poucas cantoras que cantava em inglês. Parece que não lhe soou estranho que uma cantora balzaquiana gravasse um ritmo identificado para sempre com a juventude e nem que a voz de Nora não era bem apropriada para tal.

Bill Halley interpretando Rock Around the Clock.

Um problema surgiu à última hora: a letra original, em inglês, não estava disponível e a maneira encontrada foi improvisar; foi preciso tirar a letra “de ouvido”, ou seja, o pessoal teve que copiar a sonoridade das palavras, algumas, por causa da novidade da letra, bastante difíceis de distinguir. De qualquer forma, a gravação foi feita em novembro de 1955, nos estúdios da Continental, Nora sendo acompanhada pelo Sexteto Continental, recebendo a música o título de Ronda das Horas – a palavra rock n’roll ainda não fazia parte do repertório nacional.

A música já ocupava o primeiro lugar na parada de sucessos da Revista do Rádio (n.º 324) ainda no mês de novembro de 1955, colocando, mais uma vez, Nora Ney na boca do povo. Tudo levava a crer que seu sucesso desse ano se repetiria, até com mais intensidade, em 1956.


Bill Halley interpretando Rock Around the Clock.



Bill Halley interpretrando Rock Around the Clock.


Krazy Dogs interpretando Rock Around The Clock.



Coronlaine interpretando Rock Around the Clock.

29.8.06

NEO-REALISMO À BRASILEIRA

Após sua ativa participação como assistente de direção do filme Agulha no Palheiro, em 1953, Nelson Pereira dos Santos ainda participaria, nesse mesmo ano, na mesma função, da chanchada Balança Mas Não Cai, produzida pela obscura Mauá Filmes, dirigida por Paulo Wanderley, com argumento de (quem?) Alinor Azevedo, baseado no famoso programa homônimo da Rádio Nacional; apesar de execrar as chanchadas cariocas, Nelson, por questão de sobrevivência, foi obrigado a trabalhar em uma péssima produção, com medíocre planejamento, que, como conseqüência, logo se viu sem dinheiro, todo o mundo brigando com todos – Nelson brigaria até com Alex Viany, então diretor de produção – e tudo levava a crer que a produção seria abandonada. Para o ter que voltar para São Paulo e ver seu sonho de dirigir seu primeiro filme desvanecer, Nelson, com a colaboração do fotógrafo Mário Pagés, teve que terminar o filme praticamente sozinho, na marra, o que ocasionou outra briga com Paulo Wanderley, que se recusava a aparecer como diretor nos créditos da película.

Balança Mas Não Cai na televisão (1983) - Costinha e Nick Nicola.



De qualquer forma, aos trancos e barrancos, Nelson, já com mulher e
filho, ia levando a vida, enquanto trabalhava no argumento e roteiro do filme que pretendia dirigir. Ideologicamente, Nelson, como bom comunista, tinha em mente aproveitar as lições advindas do neo-realismo italiano e realizar um filme com temática realmente popular, pela primeira vez colocando o povo brasileiro nas telas – principalmente os pobres e os negros favelados –, não como caricatura de si mesmo, mas como protagonista da história, com suas alegrias, tristezas, problemas cotidianos e meios dos quais lançava mão para sua sobrevivência, para bem ou para o mal.
Pois foi exatamente o Partido Comunista Brasileiro, em cujas fileiras Nelson militava, que se mostrou contra a produção da fita, alegando ser impossível àquela altura a realização de um filme de real temática popular, o que aconteceria, segundo somente após uma revolução no Brasil, argumento do qual o futuro diretor discordou totalmente, para o desagrado do Partidão.

O argumento do filme, que teria o nome de Rio Quarenta Graus,

teria uma leitura simples: numa linguagem realista, aproveitando a cidade do Rio de Janeiro como cenário, narraria basicamente diversos acontecimentos na vida de cinco pequenos favelados negros, vendedores de amendoim, em determinado domingo carioca. Nelson os distribui por diversos pontos turísticos da cidade – Pão de Açúcar, Quinta da Boa Vista, Maracanã, Corcovado e Copacabana –, todos em busca de melhores condições para a venda de seus produtos. O que une os diversos episódios é o insuportável calor que não dá tréguas a ninguém e que se espraia pela cidade.
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Argumento nas mãos, Nelson saiu a campo à busca de
quem bancasse a produção; porém, quem colocaria dinheiro em um filme de um novato, com um argumento um tanto quanto desconjuntado e em um momento de instabilidade política? Ninguém, e Nelson se viu sem patrocinador, o que terminou por lhe proporcionar uma ideia inovadora: realizar o filme de forma independente, criando uma espécie de cooperativa, com vendas de cotas de participação; se o filme desse lucro, os cotistas receberiam proporcionalmente ao seu investimento; os técnicos e o elenco – composto principalmente por atores iniciantes ou desconhecidos – na maioria, também, seriam pagos dessa maneira, o que viabilizaria a produção, que não teria custos elevados pela pouca utilização de estúdios e que se beneficiaria também de uma circunstância política à época, o fato de a equipe poder importar filmes virgens diretamente, sem intermediário, o que seria logo proibido pelo governo brasileiro, dando à Kodak o privilégio para tal.
Aos poucos, no início de 1954, Nelson começa a montar sua equipe que ficou assim constituída: produtores executivos e associados: Ciro F. Curi, Louis F. Guiton, Luiz Jardim, Mário Barros, Pedro Rosinski; assistentes de direção: Jacob Bonder e Roberto Santos (substituído posteriormente pelo ator iniciante Jece Valadão (1930 - 2006); gerente de produção: Duílio Mastroiani e Olavo Mendonça; fotografia: Hélio Silva (teve que desmontar uma câmara velha, sem uso, cedida por Humberto Mauro e recuperá-la, o que se mostrou fundamental para a realização do filme); Câmera: Ronaldo Ribeiro e Araken Campos: Sonografia: Sílvio Rabelo e Carlos Pereira; cenografia: Júlio Romiti e Adrian Samailoff; montagem: Rafael V. Justo e Victor Clark; Anotador: Guido Araújo; Continuidade: Carlos Olmedo; música: Cláudio Santoro; Regência: Radamés Gnatali; canções e autores: A Voz do Morro (Zé Ketti), Relíquias do Rio Antigo (samba-enredo da Unidos do Cabuçu de 1954, de autoria de Moacir Soares Pereira e Taú Silva), Poeta dos Negros (Taú Silva e José dos Santos), Leviana (Zé Ketti); participação especial da Escola de Samba da Portela e Unidos do Cabuçu.

Zélia Duncan/Zé Renato/Hamilton de Holanda interptetando Leviana.



Zé Ketti interpretando A Voz do Morro.



















Em relação aos atores, Nelson misturou alguns profissionais com
pessoas sem nenhuma experiência cinematográfica, seguindo o exemplo dos filmes neo-realistas italianos. Dessa forma, à Glauce Rocha, Jece Valadão, Roberto Batalin, Modesto Souza, Jackson de Souza, Renato Consorte, Riva Blanche, juntaram-se dezenas de atores colhidos da população, principalmente do Morro do Cabuçu, Ana Beatriz, Haroldo de Oliveira, Arlinda Serafim, Cléo Teresa, Sofia Alcalai, Zé Ketti, Alcebíades Ghiu, Aloísio Costa, Arnaldo Montel, Érica Santos, Antônio Novais, Carlos Moutinho e dezenas de outros.


As primeiras locações começaram no estádio do Maracanã (março/54), logo abandonadas em virtude de diversos problemas, os mais importantes a falta de dinheiro e de filmes virgens; Só em junho, a equipe – denominada “equipe Moacyr Fenelon”, homenagem ao grande homem do cinema nacional –, pôde voltar aos trabalhos, ao mesmo tempo em que a maioria passa a morar junto em um apartamento na Carlos de Carvalho, com todos os problemas que uma convivência forçada acarretava à turma, a maioria jovens iniciantes na lida cinematográfica. A penúria era total, às vezes faltando tudo, o macarrão se tornando a comida de todos os dias. Também as brigas pelos mais diversos motivos eram constantes, porquanto as filmagens somente podiam acontecer em dias de sol; se chovesse, às vezes ficavam dias enfurnados no apartamento. Os atrasos nas filmagens viraram uma constante.


Com tantos problemas e com tanta falta de dinheiro, as filmagens se arrastaram por todo o ano de 1954, muitos com a convicção de que seria mais um filme inacabado da história da cinematografia brasileira. Só que eles não contavam com a tenacidade e a disciplina (adquirida certamente na militância do PCB) de Nelson, que, para alívio da equipe, em março de 1955, exatamente um ano após as primeiras tomadas, rodou o último plano do filme, acontecido no gramado do estádio do Maracanã.


Ao som orquestrado dos sambas A Voz do Morro e Leviana, ambas de Zé Ketti, o filme inicia com uma tomada panorâmica do Rio de Janeiro até se focalizar em uma favela, o morro do Cabuçu; Já na primeira tomada, Zeca, um garoto negro mal vestido, é o primeiro personagem a ser apresentado. Sobe o morro carregando uma lata d`água na cabeça; ao entrar em um barracão, sua casa, o que vê é sua mãe, Ana, discutindo com o marido, Joaquim, e a filha, Alice.Fica-se então sabendo que Alice é disputada por dois homens, Waldomiro e Alberto, deixando claro que aquele será um dos ganchos do filme. Após Alice sair de casa para comprar feijão para a mãe, Zeca retorna, recusando-se a buscar mais água para a mãe. Também é apresentado novo foco da história, outro garoto – Jorge –, cuja mãe está doente, necessitando de remédios, tentando se virar à custa de chás caseiros. Em seguir, é mostrada Alice discutindo sobre os namorados com uma amiga, a qual prevê problemas para ela, devido ao gênio forte de Miro (Jece Valadão, em excelente desempenho). Repentinamente, Miro aparece e discute com Alice, que não lhe dá satisfação, se dizendo livre. Miro lhe diz que à noite, no ensaio da Escola de Samba do Cabuçu, se encontrarão para resolver a situação. Logo a seguir, o garoto e mais alguns amigos descem o morro para vender amendoim, distribuindo-se por diversos pontos turísticos da cidade.

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Desponta então a Quinta da Boa Vista.


Na Quinta, se encontram alguns meninos; um mais parrudo, exige dinheiro a Paulo, o menor da turma, que guarda uma lagartixa de estimação, Catarina, no bolso. Aproveitando-se do fato de ser mais forte, tenta tomar o dinheiro do menor, ao mesmo tempo em que, ao ver que pegara uma lagartixa no bolso do garoto, assusta-se e se afasta enojado, jogando-a fora. O bicho aproveita e foge, para desespero do garotinho, entrando no jardim zoológico e, posteriormente, em um viveiro de aves.


A sequência, muito bem elaborada, alterna momentos de alegria e pânico representados pelo medo do menino em sentir a possibilidade de ter seu animal comido pelas aves, ao mesmo tempo em que se deslumbra à vista de tantos animais. Fica feliz por, logo depois, recuperar a lagartixa, alegria fugaz, que termina quando um guarda do zoológico lhe toma o animal e o atira no viveiro das cobras, expulsando em tons agressivos o garoto do lugar. É um duro processo de aprendizado para Paulo: A Lei e a Ordem mostram a ele o seu lugar, obrigando-o a engolir sua dor pela perda de seu bicho de estimação. A passagem pele menino negro de um grupo de garotos brancos, organizados e bem vestidos, é um contraste com sua situação, maltrapilho e maltratado.

Enquanto alguns garotos jogam bola de gude, ao mesmo tempo, na mesma Quinta da Boa Vista, outra história é delineada: dois amigos fuzileiros navais conversam até a chegada da namorada de um deles: grávida, uma empregada doméstica (representada por uma das maiores atrizes brasileiras de todos os tempos, Glauce Rocha) discute a respeito de seu estado com o namorado (Roberto Batalin), pai da criança, relutante em assumir um relacionamento mais sério, terminando por romper com ela; magoada com a atitude do namorado, a garota sai andando ao longo do passeio, logo sendo assediada por alguém dentro de um carro; furioso com o que vê, o fuzileiro retorna, afugenta o paquerador e se reconcilia com a namorada, arrependido de tê-la abandonada, chamando-a de volta para junto de si.

A sequência seguinte tem Copacabana como cenário; andando pelas areias vendendo sua mercadoria, Jorge é atropelado por um jovem, que corre com uma garota, que lhe derruba a lata de amendoim, para sua desolação. Logo a seguir, os dois passam por um cara, obviamente gay, que está acompanhado por duas garotas, todos de aparência pequeno-burguesa, tomando sol e conversando amenidades e futilidades. A conversa então se dirige para comentários a respeito do casal que passou por eles. Pela conversa, fica-se sabendo que o rapaz visto com a garota, apesar de bonito, é um conquistador barato, que quer se aproveitar dela que tem posses, mas não conhece o verdadeiro caráter do acompanhante.


Logo em seguida, o casal, objeto dos comentários, se levanta e se dirige para fora da praia; Jorge aproveita para cobrar do rapaz os amendoins derrubados, que nega o fato e ameaça o garoto. Um senhor de aparência distinta, que passava pelo local, ao ser informado da questão, comenta com ar superior que só podem ser criminosos os pais que deixam os filhos abandonados daquele jeito. Nelson não deixa dúvidas: a luta de classes permeia a sociedade, os brancos indolentes e malvados, os negros, pobres e desprotegidos, impressão que é logo reforçada com a cena a seguir, que mostra a mãe doente sendo consolada e ajudada pela mãe de Jorge, que, solidária na pobreza, lhe traz um prato de sopa e ervas medicinais.
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Outro corte para vários moradores do morro jogando damas; além de mostrar diversas cenas do cotidiano do morro – a mãe de Zeca procurando o marido, o sírio explorador que não deixa atrasar os pagamentos a que tem direito etc. –, compreende-se pelos diálogos o verdadeiro caráter de Miro, que está preso: é corajoso, bom para os companheiros e valente, enfrentando até a polícia. Chega Alberto, negro, bem vestido e aparentando um ar de certa prosperidade. Pergunta sobre Alice, provocando olhares desconfiados do pessoal, todos receosos da reação de Miro quando soubesse. De qualquer maneira, ele chega à casa da namorada a tempo de ver nova briga da dona da casa com o marido, que chegara bêbado à sua casa, carregando um galo, que aproveita a situação para fugir pelo morro. É uma cena ao mesmo tempo engraçada e comovente, a cachaça já sendo mostrada como uma desgraça para os mais pobres e desassistidos.
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Miro sai da cadeia esperado por um amigo (Zé Ketti), que lhe conta as novidades do namoro de Alice. Quer logo tirar satisfações com a garota, mas é dissuadido pelo companheiro para irem ver o jogo do Pengo, o time mais querido da cidade, que decidiria o campeonato. Relutante, Miro concorda, prometendo esclarecer tudo à noite no ensaio da Escola.


Corte para a conversa de dois cartolas nas imediações do Maracanã sobre um problema do Pengo: um consagrado jogador, Daniel, veterano de várias jornadas, terá que ser substituído por uma promessa do time, o jovem Foguinho, querido da mídia e da torcida. Logo após, começa a corrida dos torcedores para as arquibancadas, todos discutindo as últimas notícias sobre a oportunidade as substituição do mais velho pelo mais novo. Alguns a defendem, outros a atacam. Em seguida, o jovem atleta, muito nervoso e ansioso, é pressionado pelos cartolas, que exigem uma vitória, após o qual, Daniel é mostrado fazendo massagem, comentando sobre seus dias gloriosos e suas diversas contusões. Ainda não sabe que será substituído, o que logo lhe é informado pelo médico: efetivamente não jogará.


Novo corte. Miro está com o amigo no Maracanã, que discute com outro torcedor sobre as modificações no time; quando o amigo é agredido, Miro parte em seu socorro, utilizando-se de seus conhecimentos de malandro, derrubando o oponente com um rabo-de-arraia. Por causa da briga, é expulso pela polícia do estádio junto com o amigo. Então encontram outro dos garotos, Paulo, que vende amendoim, e, sem dinheiro para comprarem novas entradas, resolvem pegar todo o dinheiro dele; como era muito pouco, começam a vender o amendoim para os torcedores. Obviamente, é revelado o caráter de Miro, que não se acanha em achacar um garoto que vende o amendoim por necessidade. É uma das contradições do filme, que, mais tarde, seria observada pelos críticos. Explicando melhor, a atitude de Miro para com Paulo reitera o seu caráter violento para com os meninos, conforme já fora demonstrada em uma das cenas iniciais com Zeca, irmão de Alice por quem é apaixonado. Em outra cena, mais tarde, com chegada da polícia, Miro sai correndo, gritando para Paulo para fugir também para outro lado.


Nova sequência tem o Pão de Açúcar como cenário; outro dos garotos da favela vende seu amendoim para os turistas, juntamente com outros meninos; quando conversam, ele fica sabendo que eles são explorados por um agenciador, dono do ponto, ao mesmo tempo em que lhes explica que não trabalha para ninguém, que trabalha por conta própria. Sua paz é perturbada pelo explorador da área, um velho caquético e de aparência desleixada, mas branco, que, lhe agarrando o braço, exige que ele abandone o local; ele foge, perseguido pelo velho, e se refugia junto a um pessoal aguardando a subida do morro. Quando o velho chega, o guia turístico protege o garoto, inclusive ameaçando o velhote. Perguntado por um dos turistas por que não chamava a polícia, o guia explica que a atividade era proibida, o menor era um infrator. De qualquer forma, o garoto é levado pelo guia para conhecer o Pão de Açúcar para seu deleite. Lá em cima, tira retratos para turistas e começa a vender seu amendoim. Repentinamente chega o dono do ponto à sua procura, ele corre, o velho correndo atrás dele pelas escadas. Acaba perdendo sua lata, tendo que se esconder nas estruturas do bondinho que descia o morro.


Corte para a chegada de um avião, trazendo uma espécie de autoridade. Logo se fica sabendo que a figura é um coronel do interior muito rico, suplente de deputado e com expectativas junto a um senador da República; é uma figura caricata e meio repugnante, com forte sotaque caipira. Algumas pessoas que aparentemente esperam pelo político conversam sobre corrupção e se jogam em sua direção tão logo ele aparece. Também lhe é informado de que o ministro não se encontrava na cidade, estava na Suiça. Vários repórteres cercam o coronel, perguntando-lhe sobre a reforma ministerial iminente. Ele responde que o ministério da Agricultura tinha que ser desmembrado para a criação dos ministérios da Lavoura e do Gado. Um casal e sua filha o aguardam com ansiedade. São correligionários que esperam ajuda financeira do político. Este lança olhos cobiçosos na garota. Diz para todos que quer conhecer o Rio, começando pelo Cristo Redentor.

Novo corte para Jorge, em Copacabana, que pede dinheiro aos pedestres para voltar para casa. Todos negam. A câmara focaliza em outro garoto de uns dez anos, franzino, com cara de esperto e um cigarro na boca. Ele se chega a Jorge com olhar maroto e lhe diz que ele não sabe pedir esmola. Jorge se ofende, dizendo que não está pedindo esmola, que pede dinheiro para voltar para casa. O garoto replica que vai ensiná-lo a conseguir dinheiro: se aproxima de um transeunte e, com um olhar pungente, pede ajuda para a mãe doente. Consegue na hora. Jorge aprende a lição e logo o vemos utilizar da mesma estratégia, justamente com o casal visto na Quinta da Boa Vista (Glauce Rocha e Roberto Batalin), que está chegando ao local onde o irmão da moça trabalha para lhe pedir a mão da namorada em casamento e lhe contar sobre o estado da moça.


Em outra sequência, mais tarde, os dois conversam e tudo fica acertado, o irmão só pedindo que a mãe não ficasse sabendo da vergonha de ter uma irmã desgraçada.


Nova sequência, de novo no Pão de Açúcar. Chega o coronel e comitiva, ocasião em que o garoto aproveita para dele se aproximar e lhe oferecer o amendoim; o coronel e suplente de deputado escorraça o garoto e lhe responde: “E eu lá sou homem de amendoim?”. Quando a comitiva ia iniciar a subida do morro, os pais da mocinha, dissimulados, inventam uma desculpa para deixá-la sozinha com o político, que, iniciando a subida, obviamente, entende tudo. Assim que se vêem sós, a mulher se vira para o marido, dizendo que confia na habilidade da filha para conquistar o coronel, que, nada bobo, assim que chegam ao alto do morro, afasta o assessor, e enfrenta a mocinha, perguntando-lhe, francamente, o que seu pai realmente queria. Ela o olha com olhares cúmplices. Logo em seguida, ele lhe afirma que vai resolver a situação do pai, ao mesmo tempo em que lhe propõe um emprego, já que ele precisa de uma secretária inteligente e bonita para trabalhar apenas três dias por semana. A garota fica radiante. Descem o morro e entram no carro, cujo rádio começa a irradiar o jogo do Pengo.


Corte para a arquibancada do Maracanã; rostos tensos e nervosos. A partida está em andamento e os torcedores ainda discutem sobre a substituição de Daniel por Foguinho. No gramado, o Pengo não consegue tomar conta da partida, o adversário conseguindo se articular dentro do campo. Foguinho, nervoso, está meio perdido e seu futebol acanhado. A torcida começa a se irritar com ele; alguns começando a gritar pelo nome de Daniel; E para desespero da grande torcida, o time adversário abre o placar, tornando-a mais histérica. Agora é todo o Maracanã que exige a substituição de Foguinho por Daniel, que, na verdade, nem no banco de reservas estava; câmera nos cartolas que estão desconsolados.


Miro e o amigo estão em um botequim bebendo todas e escutando a irradiação da partida; Miro já meio bêbado e sem dinheiro exige que o amigo retorne ao morro para pegar uma grana emprestada para pagar as despesas. Obedientemente ele sai do bar. Enquanto isso, Alberto conversa com o pai de Alice, comentando sobre suas intenções em relação à moça; o casal logo começa a descer o morro enquanto comentam sobre a situação de pobreza do pessoal do Cabaço e sobre o casório dos dois. Ela acha melhor esperar um pouco, já que é arrimo de família e anseia ter uma casa fora do morro, apesar de se conformar com sua atual situação; Alberto nega, diz que o povo nunca deve se conformar com a pobreza. Os dois chegam a uma baixada do morro, onde várias pessoas estão conversando; todos reparam nos dois com olhares desaprovadores; aproveitando o fato de Alice se encontrar apartada do namorado, um amigo a aconselha a não trazê-lo ao ensaio da escola à noite, temendo uma desgraça. Logo Alberto encontra um amigo e se vangloria de ainda estar trabalhando no mesmo local e ganhando até o salário mínimo. É de se esclarecer que o salário mínimo, em 1955, equivaleria atualmente a mais de Oitocentos Reais, motivo pelo qual o rapaz se julgava um felizardo e se mostrasse tão orgulhoso de sua situação.


Voltando do morro, o amigo de Miro o informa sobre o noivado de Alice. Ele fica com um olhar soturno e perigoso.


Corte para o Maracanã; no vestiário, no intervalo da partida, o clima é tenso. O cartola pressiona o técnico cobrando explicações sobre o desempenho medíocre de Foguinho. O treinador replica que somente escalou o ponta por pressão dos dirigentes do time, que achava que ele ainda estava muito verde. O cartola então lhe promete renovação do contrato se ele ganhasse a partida. Ele então se dirige ao time que está descansando em outro local do vestiário. Dirige-se aos jogadores dizendo que o time adversário não é lá essas coisas, insistindo, além do mais, que o time deveria concentrar as jogadas em Foguinho, apesar de seu fraco desempenho em campo. O rapaz demonstra uma fisionomia aterrorizada; fora chamado de “Salvador da Pátria” pela imprensa e estava enterrando o time. Pede ao técnico para ser substituído para não piorar as coisas, mas não é atendido; o cartola se chega a ele e lhe oferece um bicho extra caso resolva a partida; Vendo o estado de espírito do novato, Daniel se aproxima e lhe aconselha a simplesmente mostrar seu jogo, que era agora ou nunca, e que seu futuro era que estava em jogo. Comenta também que sabia que estava velho para o futebol, mas tinha a esperança que, no futuro, o jogador não seria tratado como mercadoria.
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Nelson Pereira dos Santos, mal sabia que, no futuro, mais do que tudo, o jogador seria apenas outra mercadoria em uma sociedade de mercado cada vez mais individualista e capitalista.
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Com o início do segundo tempo, o time do Pengo parece outro em campo, jogando uma partida espetacular; e para delírio da torcida, Foguinho empata espetacularmente a partida; agora seria apenas ter calma e ganhar a partida.

Ao mesmo tempo em que a partida segue quente, em Copacabana, Jorge é cercado por uma turma de garotos, que tenta tomar-lhe o dinheiro conseguido a duras penas; ele consegue escapar, mas continua a ser perseguido. As cenas do jogo no Maracanã se alteram com a perseguição dos garotos e a fuga de Jorge, que tenta alcançar o ônibus que está logo à frente. Não consegue e cai. Um carro vindo logo atrás o atropela e o mata. Ao mesmo tempo em que o garoto é atropelado, Foguinho, no final do jogo, desempata a partida; a torcida fica em polvorosa, todos se abraçando.
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Enquanto Foguinho e o técnico são entrevistados pela imprensa, o corpo de Jorge está estendido no chão de Copacabana, com uma vela acesa perto da cabeça.


À tardinha, os garotos começam a chegar ao morro; os primeiros dois logo começam a discutir sobre dinheiro, momento em que a mãe de Jorge chama um deles e pergunta sobre o filho. Ele diz que só sabia que ele estava em Copacabana, mais nada. Também chega Zeca, irmão de Alice com o dinheiro da venda do amendoim. O último é trazido para o morro por um guarda, que, quando fica sabendo que ele não tem nem pai nem mãe, ameaça levá-lo de volta para alguma instituição; a mãe de Zeca lhe explica que o garoto costumava ficar em sua casa e lhe implora para que ele ficasse com ela. Relutantemente, o guarda concorda e começa a descer o morro. O garoto alegremente corre para a casa de Dona Alzira.


Corte para Miro chegando bêbado ao morro ao som da música Poeta dos Negros (Taú Silva e José dos Santos); Alberto e Alice também saem para o ensaio na quadra da escola. Logo o locutor anuncia com orgulho a chegada da Escola de Samba Portela, cujos integrantes já vêm sambando e cantando. É outro momento lindo do filme, os passos dos sambistas de uma beleza ímpar.

Miro vem chegando à quadra. O ensaio corre solto. Anuncia-se o samba-enredo vencedor, Relíquias do Rio Antigo (Moacir Soares Pereira e Taú Silva), que começa a ser cantado pelo puxador oficial, enquanto os integrantes da escola, muitos com a letra do samba nas mãos, decoram o decoram.

A chegada de Alice como rainha da escola do Cabuçu, juntamente com algumas princesas, é anunciada com pombas e circunstâncias. Ela agradece a honra e homenageia o povo da comunidade. Miro vai se aproximando de Alberto. Clima tenso. Reconhece-o como amigo de antigas paragens. Pergunta-lhe o que fazia ali. Ele lhe responde que estava ali por causa de Alice, sua noiva. Começa um alvoroço. Alice se chega para perto do noivo. A briga é iminente. Então, Miro abre um sorriso, abraça-o e começa a elogiá-lo para a comunidade. Pouco depois, Alice canta o samba de Zé Ketti, A Voz do Morro, e o povo dança feliz
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Esta sequência de Rio Quarenta Graus seria bastante criticada. A cena do abraço de Miro em Alberto foi considerada muito fraca, dramaticamente fraca. Foi realmente um anticlímax, dentro do mais puro realismo socialista; Nelson quis demonstrar solidariedade e fraternidade entre indivíduos das classes menos favorecidas, mas em contradição do que foi mostrado, ao longo do filme, sobre o caráter de Miro, com um pé no lumpesinato.



O filme termina com a câmera saindo do ensaio e focalizando a mãe de Jorge na janela talvez ainda esperando o filho que nunca mais retornaria. Depois sobe, focaliza o morro, vai subindo até enquadrar a cidade do Rio de Janeiro, em tomada panorâmica.


Rio 40 Graus - filme completo.




Obviamente já pensando em novos projetos, e enquanto esperavam a liberação do filme pela censura, vários integrantes da equipe de Nelson, à falta de alternativa, decidiram continuar a morar juntos, agora em um casarão em Botafogo; a pobreza e a falta de dinheiro continuavam a mesma, todos tendo que se virar para a sobrevivência da turma.
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Jece Valadão comenta como foi produzido Rio 40 Graus.



A fita foi liberada em agosto de 1955, e, para alegria de todos, proibida apenas para menores de 10 anos; logo Nelson estava negociando com a Columbia Pictures a sua distribuição para o Brasil e para o exterior. Acontece que, quando tudo caminhava para um final feliz – pode-se até imaginar a ansiedade de todos, principalmente dos atores e técnicos iniciantes –, o chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, coronel Geraldo de Meneses Cortes, com a alegação de que o filme tinha fortes conotações políticas, subversivo mesmo, enfim, coisa de comunista, feito para achincalhar o povo brasileiro, proibiu o filme para exibição em todo o território nacional.



Sabendo que o coronel nem havia visto o filme, Nelson tentou uma jogada: convidou o censor para uma sessão privada nas dependências da Columbia Pictures, tentando demovê-lo de sua ação. É o próprio diretor quem conta o acontecido, em depoimento à sua biógrafa, Helena Salem:



“Nós caímos na armadilha, concordamos em mostrar o filme sem os nossos advogados presentes. O Cortes estava com a mulher e mais uns caras da polícia. Quando terminou, ele se levantou, gritando: ‘é pior do que eu imaginava!’. Ele dizia que o filme tinha uma técnica perfeita, igual à de dois filmes tchecos que ele tinha apreendido. Que eu tinha feito aquele filme porque era paulista, era um filme que não mostrava ninguém trabalhando. Eu expliquei que se passava num dia de domingo, e mesmo assim os meninos trabalhavam, os jogadores de futebol também.
Num certo momento ele vacilou, disse que talvez se eu colocasse um texto no início dizendo que era domingo, ele liberasse. Eu disse que tudo bem, colocava. A mulher dele se entusiasmou, falou ‘isso, Geraldo’. Daí ele ficou puto de novo e disse que não, que ia proibir mesmo o filme.
Ele era baixinho, mas berrava como um louco. O problema dele era a ‘técnica perfeita’ do filme. Ele nunca tinha visto filme brasileiro antes, pra ele aquilo só podia ser coisa de comunista tcheco, eu não podia ter feito sozinho. Mas eu estava lá com a relação de notas de todos os cotistas, provando como tinha feito o filme.”


Para a imprensa, Cortes diria os motivos pelos quais havia proibido o filme: “(...) Rio Quarenta Graus... tem como fim a desagregação do país”; que “o filme só apresenta os aspectos negativos da capital brasileira e foi feito com tal habilidade que serve aos interesses políticos do extinto PCB”; não tendo enredo, o filme seria “uma sucessão de flashes que mostram o Rio de Janeiro desorganizado e com as suas misérias...Os meninos que vendem amendoim pela cidade são vítimas de um rapaz que lhes extorque dinheiro”; também, “a figura de um ‘coronel’ do interior, inculto e boçal, e apresentado como Deputado Federal” seria, no seu entender, “um achincalhe imperdoável à Câmara dos Deputados”; alem do mais, “os diálogos são na pior gíria dos marginais, em substituição à língua vernácula”. Seu argumento mais criativo seria que, no seu entender, o clima do Rio de Janeiro nunca atingia quarenta graus, no máximo, 30,7. Esse era o seu argumento definitivo.


A proibição do filme e a posterior luta para sua liberação viraram uma “causa célebre”, assumindo, com o passar dos meses, proporções nacionais. O jornalista Pompeu de Sousa foi o primeiro algoz de Meneses Cortes ainda em sua entrevista coletiva quando a censura à fita foi divulgada. Como a Rádio Nacional – a rádio oficial do governo e mais poderosa e ouvida do país – apresentava, a seu pedido, na íntegra a entrevista, todo o Brasil tomou conhecimento do absurdo que acontecia, principalmente quando os argumentos de Cortes iam sendo derrubados, implacavelmente, pelo corajoso jornalista.


No mesmo dia da entrevista, uma sessão especial para artistas e intelectuais na Associação Brasileira de Imprensa foi proibida, sob a alegação de que houvera publicidade da sessão privada; vários dos presentes – aí incluídos Manuel Bandeira, Eliane Lage, Anselmo Duarte, Alex Viany, Ciro Cury e diversos deputados – assinaram um documento de interpelação ao ministro da Justiça, Prado Kelly, ao mesmo tempo em que era enviado um telegrama ao presidente da República, Café Filho, que substituíra Getúlio Vargas na presidência, solicitando sua interferência para a liberação do filme.


Esses primeiros atos de defesa da liberdade de expressão se configuraram como uma espécie de senha para que, com o passar dos dias e meses, fosse implementada uma imensa campanha através da imprensa para a liberação do filme (com ecos até no exterior), culminando com um abaixo-assinado com mais de trezentas assinaturas de políticos e intelectuais do Rio, São Paulo e até do exterior (Yves Montand, George Sadoul, Simone Signoret), o que se constituiu também em uma enorme propaganda para a fita, todos querendo assisti-la e saber o motivo de tanta polêmica.


Com a suposta doença de Café Filho e os posteriores acontecimentos já narrados, tudo muda de figura; exatamente no ultimo dia do dezembro de 1955, a Justiça Federal revoga a censura, deixando o caminho livre para o lançamento de Rio Quarenta Graus.

Mas isso somente aconteceria em março de 1956.