14.9.06

BOSSA NOVA: O TRIUNFO DA ZONA SUL CARIOCA

A maioria dos ouvintes dos rádios espalhados por todo o país não conseguia entender que tipo de música era aquela que estava sendo veiculada por vários “disc-jockeys”, quase sempre com comentários sobre a excelência dessa nova safra da música popular brasileira, que chegara para modificar para sempre o panorama musical do país. Quem comprava o disco, na maioria, não conseguia perceber como tal música podia ser chamada de samba-canção, conforme constava do rótulo do 78 rpm, se aquilo não era efetivamente samba-canção. O certo é que as massas - o povão - detestavam, ninguém compreendendo como um cantor como aquele, “que não sabia nem cantar direito”, com uma “vozinha” às vezes impossível até de se escutar de forma apropriada, pudesse fazer tanto sucesso em determinados setores da sociedade. A surpresa foi ficando cada vez maior quando os leitores da Revista do Rádio (n.º 488, de 24.01.1959) tomaram conhecimento de que aquela música tão “esquisita”, já era um êxito nacional, aparecendo em primeiro lugar na parada de sucessos da revista, deixando para trás vários pesos pesados do cancioneiro nacional e estrangeiro.

A referida composição era Chega de Saudade, de autoria de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, lançada no mercado em agosto de 1958 pelo cantor João Gilberto, compondo um 78 rpm que também trazia, no outro lado, a música Bim Bom, de autoria do próprio cantor, e que, graças aos segmentos urbanos das classes médias e altas da sociedade, beneficiados pela política desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, galgara, paulatinamente, as paradas de sucessos, até atingir seu mais alto posto.


João e Bebel Gilberto interpretando Chega de Saudade.

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E não ficou só nisso. Nem bem o público se acostumara com aquela estranha voz e com aquela batida de violão completamente diferente de tudo que até então havia, outra música mais estranha ainda chamada Desafinado, praticamente um manifesto desse novo estilo musical que espantava todo mundo, de autoria do mesmo Antônio Carlos Jobim, o Tom Jobim (1927 - 2004), dessa feita em parceria com Newton Mendonça (1927 - 1960), lançada pelo mesmo cantor, igualmente começa a ser muito executada, chegando também ao primeiro lugar da parada de sucessos da mesma Revista do Rádio (n.º 503, de 09.05.1959), numa clara demonstração 
de que algo de muito especial estava acontecendo dentro do atual panorama da música popular brasileira, muito poucos intuindo que, a partir dessas primeiras manifestações musicais, o cancioneiro popular brasileiro nunca mais seria o mesmo.

João Gilberto interpretando Desafinado.



Quarteto em Cy interpretando Desafinado:


















Ou seja, aquele novo estilo musical – que ganhara o nome de “bossa nova” – veio para agitar uma cena musical insossa, na opinião da maioria dos críticos da MPB, onde ainda imperavam as músicas norte-americanas (Nat “King” Cole, Frank Sinatra, Johnny Mathis ainda eram muito populares e, graças ao rock and roll, Elvis Presley, Neil Sedaka, Paul Anka e Brenda Lee eram os novos ídolos populares da juventude brasileira), os boleros e os sambas-canções de Nelson Gonçalves, Anísio Silva, Trio Los Panchos, Bienvenido Granda, Carlos Galhardo, Maysa e outros mais, além da mais recente onda que começava a empolgar todo o país, o rock brasileiro, cujo ídolo maior, Celly Campelo, era a cantora brasileira mais badalada e festejada do momento.
De onde, afinal, surgiu a bossa nova? Quem eram seus principais integrantes? Qual foi sua trajetória até cair no gosto de uma parcela da população ávida por consumir um produto brasileiro que fosse, ao mesmo tempo, moderno e diferente daqueles ritmos que até então imperavam, ou mesmo daquele novo ritmo que estava irreversivelmente se impondo no gosto da juventude brasileira, o rock and roll?

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É tudo muito controverso. Pode-se dizer que, oficialmente, a bossa nova começou naquele referido mês de agosto de 1958, quando chegou às lojas especializadas o 78 rpm (de número 14.360 do selo Odeon, com as músicas acima referidas – Chega de Saudade (registrada como "samba-canção" e Bim Bom. Mas sua gestação se deu aos poucos, em um processo de aprimoramento que durou anos. Conforme Ruy Castro, em seu brilhante Chega de Saudade: a História e as Histórias da Bossa Nova, o que se pode determinar é que esse novo ritmo nasceu, de certa forma, casualmente, como resultado de encontros de jovens pertencentes à classe média carioca, em apartamentos em Ipanema, Copacabana ou Leblon, onde eles se reuniam em festinhas regadas a cuba-libre e a uísque com guaraná. Tocava-se muita música, e o violão era o instrumento da moda. Dentre esses apartamentos, historicamente, o do pai da futura cantora Nara Leão, ainda quase uma garota, situado exatamente na Avenida Atlântica, se avultava, porquanto se tornara o “point” preferido dessa juventude dourada, onde presenças como a de Carlos Lyra, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo, João Gilberto, Luiz Carlos Vinhas, Ronaldo Bôscoli, Chico Feitosa, os irmãos Mário, Oscar, Iko e Léo Castro Neves e outros mais eram constantes. Todos adoravam a música norte-americana, principalmente o jazz. Todos tinham intimidade com a música e concordavam com uma coisa: odiavam o quadro atual da música popular brasileira, com seus cantores de vozes impostadas e tonitruantes. Desprezavam sobremaneira o samba-canção. Todos gostavam de demonstrar suas habilidades aos demais companheiros. Muitos já eram compositores, ávidos de reconhecimento popular.
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O maior ídolo da moçada até então era o cantor Dick Farney (1921 - 1987), que afrontara o gosto popular e gravara, em 1946, de maneira intimista e camerística (arranjos do maestro Radamés Gnatalli), Copacabana, um samba-canção de João de Barro e Alberto Ribeiro que muitos também consideram a canção verdadeiramente precursora da bossa nova. Havia também outros cantores e compositores que a turma adorava e reverenciava. O cantor Lúcio Alves (1927 – 1993) era um deles. Fundador e ex-integrante do grupo vocal Namorados da Lua, iniciou sua carreira solo em 1948, gravando de tudo, boleros, sambas, sambas-canções e até valsas. Nos últimos anos da década de 50, porém, seu repertório se sofistica, sendo um dos primeiros cantores a gravar Tom Jobim. Nesse ano de 1959, por exemplo, ele gravou o samba-canção Estrada do Sol, de Tom e Dolores Duran, além de lançar um LP intitulado Lúcio Alves, Sua Voz Íntima, Sua Bossa Nova, Interpretando Sambas em 3-D que se destacava pela qualidade de suas músicas, avultando Lá Vem a Baiana e Nem Eu, de Dorival Caymmi, Se Todos Fossem Iguais a Você, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Se Acaso Você Chegasse, de Felisberto Martins e Lupicínio Rodrigues (música que, dentro de muito pouco tempo, se transformaria em um enorme sucesso popular, lançando uma cantora até então desconhecida, que se chamava Elza Soares), Menino de Braçanã, de Arnaldo Passos e Luiz Vieira, Agora é Cinza, da dupla da pesada Bide e Marçal, e até Conceição, de Dunga e Jair Amorim, que tornara o cantor Cauby Peixoto, pouco tempo antes, um fenômeno de popularidade.

Dick Farney interpretando Copacabana.


Fernanda Takai interpretando Estrada do Sol.




Gal Costa interpretando Lá Vem a Baiana.



Guto Cucci interpretando Nem Eu.


Maysa interpretando Se Todos Fossem Iguais a Você.


















Cláudia Montelage interpretando Se Acaso Você Chegasse.



Ivon Curi interpretando Menino de Braçanã.


Trio Irakitan interpretando Agora é Cinza.


MPB4 e Cauby Peixoto interpretando Conceição.



Dos apartamentos para os pequenos shows em universidades foi um pulo. Começam a aparecer novos nomes, os novos queridinhos das classes médias urbanas: Alaíde Costa (que gravara nesse ano de 1959 o LP Gosto de Você, onde canta um das canções paradigmáticas da bossa nova, Lobo Bobo, da dupla Carlos Lyra/Ronaldo Bôscoli), Durval Ferreira e, mais tarde, Sérgio Mendes, Luís Carlos Vinhas, J.T. Meirelles, o Tamba Trio (Luís Eça, Bebeto, Hélcio Milito), o Bossa 3 (Vinhas, Tião Netto, Edison Machado), Zimbo Trio, Paulo Moura, Tenório Júnior, Dom Um Romão, Milton Banana, Edson Maciel, Raul de Souza, Claudete Soares (uma cantora versátil que, de “Princesinha do Baião”, se tornou um dos ícones da bossa nova), Eumir Deodato e muitos outros mais.

Wilson Simonal interpretando Lobo Bobo.



Existem outras versões, claro, sobre as origens e desenvolvimento da bossa nova; alguns historiadores identificaram o uso do termo ainda em 1957, quando um grupo de novos valores da MPB,
que se tornariam figuras carimbadas e proeminentes do novo estilo musical, Carlos Lira, Sylvia Telles (1935 - 1966), Roberto Menescal, Luizinho Eça e Ronaldo Bôscoli (1928 - 1994), fizeram um show no Hebraica do Rio de Janeiro, denominando-se como “(...) grupo bossa nova apresentando sambas modernos”. O termo, na realidade, no início de sua lenda, referia-se a uma maneira toda peculiar de cantar e tocar, até se tornar sinônimo do próprio gênero.


O fato é que aquela maneira diferente de tocar e cantar o samba, já no começo do movimento, começou a sofrer pesados ataques de parte da crítica especializada: aqueles mais nacionalistas atacavam a forte influência do jazz, traduzida nos acordes dissonantes comuns ao ritmo norte-americano, considerando a bossa nova uma coisa híbrida que não poderia ser chamada de samba. Outros não conseguiam ver “arte” naquela maneira de cantar, sussurrada, acostumados que estavam com as interpretações, como dissemos, tonitruantes de parte apreciável dos cantores nacionais. Mas, a bossa nova, não importavam as opiniões divergentes, veio para exterminar uma era musical, fazendo com que a musica popular brasileira atingisse novos patamares rumo à modernidade. O movimento, ao lado de outras manifestações culturais que começavam a se impor naquele momento histórico (a televisão, o rock and roll entre outros) pode ser considerado o túmulo dos velhos cantores, a maioria não conseguindo ultrapassar a década de 50. Novos ídolos se revelavam, novos nomes se firmavam como os novos ícones populares.
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O mais interessante de tudo é que, de todas as manifestações oriundas da música popular brasileira, e para desespero dessa nova safra de cantores e compositores “modernos”, a bossa nova bebeu de muitas fontes, mas, quem mais contribuiu com o seu fortalecimento foi aquele identificado com um ritmo odiado sobremaneira por essa juventude dourada, o samba-canção. Com efeito, praticamente todos os cantores e compositores que aderiram a esse novo ritmo vieram do samba-canção, ou foram firmemente apoiados pelos cronistas musicais antes identificados com aquele ritmo “noturno”, “piegas”, “dramático”, enfim, um ritmo mais apropriado para ambientes enfumaçados e boêmios (cujo nome mais evidente era Antônio Maria). Em outras palavras, para se chegar àquela batida “diferente”, muita água correu na história da bossa nova, muita gente contribuiu para seu avanço e sua aceitação pelo “establishment”, avultando nomes como Antônio Maria ("um verme", nas palavras de Paulo Francis), Mário Reis, Dorival Caymmi, Geraldo Pereira, João de Barro, Dóris Monteiro, Dolores Duran, Tito Madi, Lúcio Alves, Garoto, Os Cariocas, Johnny Alf (autor e intérprete de Rapaz de Bem, considerada também pré-bossa nova), Lana Bittencourt, Nora Ney, Elisete Cardoso, Agostinho dos Santos, Billy Blanco e diversos outros .

Johnny Alf interpretando Rapaz de Bem.


















Entretanto, o nome mais importante do movimento seria mesmo o de João Gilberto, acompanhado de mais dois compositores, cujos nomes seriam fundamentais para a consolidação do novo ritmo, Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes.

João Gilberto (10.06.1931), reconhecido por todos como o ator principal desse novo estilo, tinha história e já procurava seu lugar ao sol havia bastante tempo; na realidade sua carreira, nesse ano de 1959, estava completando 10 anos, carreira essa iniciada quando ainda morava na Bahia, aos 18 anos de idade.
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Nascido em Juazeiro, Bahia, o cantor ainda garoto teve seu primeiro contato com a música ao ganhar do pai um violão, começando então a ter contato mais íntimo com a musica, principalmente as norte-americanas, logo montando seu primeiro conjunto vocal, o Enamorados do Ritmo. Juazeiro, entretanto, logo se mostrou pequena e acanhada para o jovem músico e compositor; seu destino foi a capital baiana, Salvador, onde, após decidir abandonar seus estudos, resolveu dedicar-se somente à música, sem demora conseguindo ser contratado para integrar o elenco da Rádio Sociedade da Bahia, onde começou a atuar como crooner. Era o ano de 1949.

Só que Salvador, na visão daquele inquieto jovem músico, também não preenchia suas mais altas expectativas. Suas ambições musicais eram imensas, ao ponto de abandonar, em pouco tempo, a capital baiana e rumar para a cidade do Rio de Janeiro, a capital do país, onde toda a cena musical acontecia de verdade, chegando à cidade em 1950. Não demorou muito e estava integrado como crooner” ao conjunto vocal Garotos da Lua (um dos muitos clones de grupos vocais norte-americanos), um grupo à procura de um estilo, que gravava desde rumbas até sambas, marchinhas e versões. Como integrante desse grupo, João gravaria dois discos em 78 rpm pela gravadora Todamérica: um contendo o bolero Quando Você Recordar, de Valter Souza e Milton Silva, de um lado, e, do outro, o samba Amar é Bom, de autoria de Zé Ketti e Jorge Abdala. O outro disco trazia, de um lado, Anjo Cruel, samba de mestre Wilson Batista e Alberto Rego e, do outro, Sem Ela, de Raul Marques e Alberto Ribeiro.
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Sua carreira nesse grupo, entretanto, teve curta durão; impressionados com a falta de profissionalismo de seu "crooner", que se atrasava para os ensaios e às vezes nem comparecia aos compromissos agendados, o grupo o demitiu com menos de um ano de atuação. No entanto, graças aos seus contatos desenvolvidos naquele período, João continuou sua carreira de crooner na noite carioca, conseguindo gravar pelo selo Copacabana, logo em 1952, seu primeiro disco solo, o 78 rpm contendo, do lado A, Quando ela Sai, de Alberto Jesus e Roberto Penteado, e, do outro, Meia Luz, de Hianto de Almeida e João Luiz. Esse lançamento passou em brancas nuvens, solenemente ignorado pelo grande público.


A outra porção de João Gilberto era a de compositor. Em 1953, teve sua composição Você Esteve Com Meu Bem, parceria com Russo do Pa ndeiro, gravada por Marisa, a futura Marisa Gata Mansa (que se transformaria em um dos ícones da bossa nova), mesmo ano em que se integrou ao conjunto vocal Quitandinha Serenaders, com o qual participou de diversos shows na noite carioca, até ser convidado a se apresentar como solista na boate Casablanca em um show denominado Esta Vida É Um Carnaval. Só que nada aconteceu e, no ano seguinte, 1954, João entra para outro conjunto, os Anjos do Inferno, um dos grupos vocais mais apreciados e admirados do Brasil, lançadores de grandes sucessos da música popular brasileira como Brasil Pandeiro, de Assis Valente, Você Já Foi à Bahia?, de Dorival Caymmi, Nós os Carecas, de Roberto Roberti e Arlindo Marques Jr, Bolinha de Papel, de Geraldo Pereira e muitos outros. Todavia, mais uma vez, sua permanência no conjunto foi efêmera, entrando ele em um período complicado de sua vida, fazendo com que se distanciasse da vida artística por alguns anos, morando em Porto Alegre e no interior de Minas Gerais. Sobre esse período, ele diria à Revista do Rádio (n.º 540, de 23.01.1960):

“As saudades da minha família eram grandes. Procurei minha irmã, que se casara e residia numa cidade mineira. E daí fui rever os meus pais, de quem eu estava afastado havia seis anos. (...) Meus planos eram recuperar-me dos insucessos. Quando vim novamente para o Rio, estava apto para lutar em situação de igualdade com muita gente. O sofrimento havia-me dado a necessária experiência”.


Até que, em 1957, volta para o Rio de Janeiro e reinicia sua carreira artística. Sem local fixo para se apresentar, freqüenta a noite carioca, principalmente a boate Plaza, ponto de encontro de vários pesos pesados da música popular brasileira, muitos deles influenciados pelo jazz norte-americano, o que lhe permitia contatos interessantes no meio musical.

Em 1958, acontece sua histórica participação no famoso LP de Elizeth Cardoso Canção do Amor Demais, considerado por todo o mundo como o verdadeiro marco inicial daquele ritmo que ainda ganharia o mundo, a bossa nova. Lançado pelo selo Festa, o LP foi composto somente com músicas de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, tendo João Gilberto participado ao violão de duas das gravações, Chega de Saudade e Outra Vez. Sua famosa batida ao violão, sincopada, chamou a atenção da crítica especializada, seu nome começando a se tornar conhecido entre os músicos que faziam o circuito das boates cariocas. Daí para lançar um disco só seu no mercado – contendo Chega de Saudade, de um lado, e, do outro, Bim Bom – foi um pulo. A sorte estava lançada. A bossa nova era uma realidade.

Elisete Cardoso e João Gilberto interpretando Chega de Saudade










                                           


                                   
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O carioca Antônio Carlos Jobim (1927 – 1994), ainda no início da década de 50, já era um nome conhecido nos ambientes noturnos das boates cariocas, ao atuar, como pianista, em casas como a Drink, a Monte Carlo, a Night and Day (casa noturna do lendário Carlos machado), Arpège,Sacha’s, Alcazar e outras mais. Como o samba-canção estava em seu auge, e como a maioria de seus amigos estava, de uma forma ou de outra, ligada a esse ritmo , Tom o abraça com entusiasmo; suas primeiras composições comprovam tal fato, uma vez que os sambas-canções dominam sua produção nesse período. 



Como a maioria dos compositores brasileiros não sabia música, Tom foi contratado pela gravadora Continental para fazer sua transcrição para registro, colocando a melodia no papel. É nesse tempo que faz arranjos (influenciado por Radamés Gnattali) para diversos cantores de renome, pontuando Dóris Monteiro, Dalva de Oliveira, Orlando Silva e Nora Ney. Data também desse período as primeiras gravações de músicas de sua autoria, tendo ocorrido em 1953 o primeiro registro fonográfico de uma composição sua (parceria com Newton Mendonça) – um samba-canção obviamente –, a música Incerteza, lançada por Mauricy Moura pelo selo Sinter. Seria lançado também pelo cantor Ernani Filho, nesse mesmo ano, pelo mesmo selo, outro 78 rpm com duas músicas de sua autoria, novamente com sambas-canções: Pensando em Você, do lado A e, do lado B, Faz Uma Semana, essa composta em parceria com Juca Stockler.





Fátima Guedes interpretando Incerteza.





O ano de 1954 colocou o nome de Antônio Carlos Jobim em evidência em um círculo fechado, mais sofisticado e com poder aquisitivo mais elevado. Nesse ano, Dick Farney e Lúcio Alves lançam pela Continental seu primeiro sucesso popular, o samba-canção Tereza da Praia, feito em parceria com Billy Blanco. Também é de 1954 o lançamento, também pelo selo Continental, do lendário LP Sinfonia do Rio de Janeiro, só com canções de sua autoria em parceria com Billy Blanco, com as participações do maior elenco da gravadora, Emilinha Borba (A Montanha), Jorge Goulart (Descendo o Morro), Nora Ney (O Morro), Lúcio Alves e Os Cariocas (Coisas do Dia), Gilberto Milfont (Matei-me no Trabalho), Elisete Cardoso (Zona Sul), Dick Farney (Arpoador), Dóris Monteiro e Os Cariocas (Noites do Rio), Lúcio Alves (Copacabana) e novamente Dick Farney (Samba de Amanhã). Logo depois, em 1955, coloca melodia na primeira letra composta por Dolores Duran – Se é Por Falta de Adeus -, gravada por Dóris Monteiro, a primeira de uma parceria que muito iria enriquecer a música popular brasileira.

Caetando Veloso e Roberto Carlos interpretando Tereza da Praia.

















João Gilberto interpretando Se é Por Falta de Adeus.





Com seu prestígio em alta devido à alta qualidade de suas composições, em 1956, Tom, após conhecer Vinícius de Moraes, foi convidado por este para musicar sua peça Orfeu da Conceição (cuja estréia se dera no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em dezembro/56), de onde saiu um dos maiores sucessos da dupla, a inesquecível Se Todos Fossem Iguais a Você, sempre lembrada quando se elaboram as listas com as melhores músicas brasileiras de todos os tempos.

Caetano Veloso e Roberto Carlos interpretando Se Todos Fossem Iguais a Você.





A carreira de Tom ganha grande repercussão crítica em 1958: a “Enluarada” Elisete Cardoso lança, nesse ano, pelo selo Festa, o antológico álbum Canção do Amor Demais, contendo somente 
músicas dele e de seu parceiro Vinícius de Moraes. Esse long playing ficaria definitivamente na história da música popular brasileira por ser considerado pela crítica esp ecializada como o marco zero da bossa nova. São desse disco várias canções que, ao longo dos anos, se tornariam clássicos do cancioneiro nacional, dentre elas Serenata do Adeus (Vinícius de Moraes), As Praias Desertas (Tom Jobim), Caminho de Pedra (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Eu Não Existo Sem Você (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Estrada Branca (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Modinha (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) e a canção que se tornaria símbolo do movimento: Chega de Saudade, parceria de Tom e Vinícius de Moraes:


Clara Nunes interpretando Serenata do Adeus.


















Caetano Veloso e Roberto Carlos interpretando Caminho de Pedra.





José Miguel Wisnik interpretando Eu Não Existo Sem Você.



Gal Costa e Rafael Rabelo interpretando Estrada Branca.



















Ney Matogrosso interpretando Modinha.



Para esse LP, Tom também assinaria os arranjos e a dire ção musical. No entanto, apesar da presença de João Gilberto, tocando violão em duas canções do disco, Chega de Saudade e Outra Vez, os arranjos ainda sofrem de uma forte influência do que vinha sendo feito até então na MPB, a famosa batida de João que caracterizaria a bossa nova perdida no meio dos arranjos um tanto quanto grandiloqüentes. Também, nesse ano, Tom comporia, pela primeira vez, para o cinema, ao fazer a trilha sonora para o filme de Haroldo Costa Pista de Grama, que versava sobre o mundo do turfe e trazia no elenco Paulo Goulart, Yoná Magalhães, Laura Suarez, Rodolfo A rena e outros mais. Nesse filme, Tom tem pequena participação, tocando piano ao lado de João Gilberto (ao violão) e Elisete Cardoso, que interpreta Eu Não Existo Sem Você, destaque
de Canção de Amor Demais.



Tom estava mesmo com a corda toda. Nesse ano de 1959, Sylvia Telles (1935 – 1966), uma das primeiras estrelas da bossa nova e cantora de alto prestígio junto à maioria da crítica especializada, grava o LP Amor de Gente Moça, contendo nove composições inéditas de sua autoria, com destaque para Dindi (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira), A Felicidade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Fotografia (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Esquecendo Você (Tom Jobim) e Discussão (Tom Jobim/Newton Mendonça).


Sylvia Telles interpretando Dindi.
















Sylvia Telles interpretando A Felicidade.

















Gal Costa interpretando Fotografia.
















Claudete Soares interpretando Esquecendo Você.








Também Lenita Bruno (1926 – 1987), ótima cantora, mas, por demais elitizada e sofisticada, por isso, com mínima penetração popular, ainda nesse ano de 1959, a convite de Tom, lança outro LP só com músicas dele e de seu parceiro Vinícius de Moraes. Intitulado Por Toda a Minha Vida, o disco, com orquestração do marido da cantora, o maestro Léo Peracchi, traz inúmeros sucessos eternos da dupla, tais como Serenata do Adeus (Vinícius de Moraes), Estrada Branca (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), Valsa de Orfeu (Tom Jobim/Vinícius de Moraes), As Praias Desertas (Tom Jobim), Eu Sei Que Vou te Amar (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) e Modinha (Tom Jobim/Vinícius de Morais.


Lenita Bruno Por Toda Minha Vida.






















Por tudo isso, com o sucesso popular de Chega de Saudade e a consolidação de seu prestígio, Tom, já com 32 anos,  estava preparado para conquistar o Brasil e o mundo. Sua carreira de ícone da música popular brasileira estava somente começando. 


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O também carioca Vinícius de Moraes (1913 – 1980), o terceiro vértice do trio central da bossa nova, poeta, compositor, teatrólogo, jornalista e diplomata, já em 1932, teve duas composições de sua autoria gravadas pelos Irmãos Tapajós (em sua primeira gravação) em 78 rpm: o foxtrote Loura ou Morena (“Se por acaso o amor me agarrar/Quero uma loira pra namorar/Corpo bem feito, magro e perfeito/E o azul do céu no olhar/Quero também que saiba dançar/Que seja clara como o luar/Se isso se der/Posso dizer que amo uma mulher”) e Doce Ilusão, ambas em parceria com Haroldo Tapajós, um dos irmãos Tapajós. Em 1933, a mesma dupla gravaria, pela RCA Victor, mais um 78 rpm com músicas de sua autoria: Um sorriso... Uma lágrima (Haroldo Tapajós/Vinícius de Moraes) e Canção para Alguém (Vinícius de Moraes). Foi o início de sua carreira de compositor que ainda renderia, ao longo da década de 30, outras músicas gravadas, dentre elas Dor de uma Saudade (de 1933, parceria com Joaquim Medina, gravação de João Petra de Barros), O Beijo Que Não Quis Dar (também de 1933, nova parceria com Haroldo Tapajós, gravação da dupla Irmãos Tapajós), e Canção da Noite (de 1933, parceria com Paulo Tapajós, gravada também pela mesma dupla).


Ainda em 1933, ele publicaria seu primeiro livro de poesias, O Caminho Para a Distância, lançando também, ao longo dos anos, Forma e Exegese (1935), o poema Ariana, a Mulher (1936), Cinco Elegias (19 43), Poemas, Sonetos e Baladas (1946) e Pátria Minha (1949).


Após ingressar na carreira diplomática, em 1946 ele vai para Los Angeles como vice-cônsul, ali permanecendo até 1951, quando volta para o Brasil, exercendo funções burocráticas na sede do Ministério das Relações Exteriores, ao mesmo tempo em que colabora com ojornal Última Hora como cronista diário e crítico de cinema. Logo está novamente enturmado com o pessoal da boemia carioca, voltando a compor. Em 1953, seu samba-canção Quando tu Passas Por Mim, feito em parceria com Antônio Maria, foi gravado por Araci de Almeida, que, logo no ano seguinte, também gravaria outra música sua, novamente composta em parceria com Antônio Maria, o Dobrado de Amor a São Paulo, em homenagem ao IV centenário de São Paulo.


Em 1956, sua peça Orfeu da Conceição, com elenco encab eçado por Haroldo Costa (Orfeu), Léa Garcia (Mira) e Dirce Paiva (Eurídice), cenário de Oscar Niemeyer e música de um jovem pianista que lhe fora apresentado por Lúcio Rangel, Antônio Carlos Jobim (que atuava como pianista na montagem), estréia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Nessa montagem, um fato curioso foi a presença no elenco do campeão mundial de salto triplo, Adhemar Ferreira da Silva, em pequeno papel, com pouca ou nenhuma fala. A trilha sonora da peça, com várias preciosidades da música popular brasileira – Lamento no Morro, Se Todos Fossem Iguais a Você, Um Nome de Mulher, Mulher Sempre Mulher e Eu e Você –, foi lançada em disco por Roberto Paiva, Luiz Bonfá e Orquestra . Nesse mesmo ano, Joel de Almeida lança Loura ou Morena, regravação de seu fox-trot, composto com Paulo Tapajós.


Lamento no Morro.


Irmãos Tapajós interpretando Loura ou morena.
















Sua carreira de compositor popular, mas sofisticado, entra então em uma nova fase; entre 1957 e 1958, foram gravadas várias músicas de sua autoria, como Bom Dia Tristeza, uma inusitada parceria com Adoniran Barbosa, por Aracy de Almeida; Se Todos Fossem Iguais a Você, por Tito Madi; Eu Não Existo Sem Você, por Bill Farr. O novato cantor Agnaldo Rayol, em 1958, também gravaria diversas músicas de Vinícius, dentre elas Modinha e Luciana, as duas últimas compostas em parceira com Tom Jobim.

Zeca Baleiro interpretando Bom Dia, Tristeza.



Turma da Bossa interpretando Eu Não Existo Sem Você.



Olívia Byington intrepretando Modinha.



Aí então aconteceu o histórico encontro de três pesos pesados da música popular brasileira. O ano era 1958. Os personagens, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Elisete Cardoso.


Vinícius tinha a intenção de gravar um long playing só com músicas suas em parceria com Tom cantadas por Elisete Cardoso. O disco seria lançado pela etiqueta Festa, especializada na gravação de poesias nas vozes de seus próprios autores (dentre eles Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade). O maior problema era que a cantora tinha contrato de exclusividade com o selo Copacabana, pertencentes aos famosos irmãos Vitale, não sendo comum o empréstimo de cantores para selos concorrentes.



Só que Vinícius, usando o argumento de que o disco seria lançado por uma pequena gravadora especializada em poesias, com um público mais do que exclusivo, cujas vendas praticamente não a tingiam mil exemplares, conseguiu que Elisete fosse liberada pelos Vitale para gravar os poemas de Vinícius musicados por Tom Jobim.

Elisete, a princípio, se mostrou preocupada por causa da sofisticação das canções, considerando-as “quase eruditas”. Não que o universo da dupla de compositores fosse desconhecido por ela, já que gravara, no ano anterior, uma das mais inspiradas canções dos dois, Se Todos Fossem Iguais a Você, lançada pela Copacabana no LP Noturno, recheado de preciosidades tais como Na Baixa do Sapateiro (Ary Barroso), Risque (Ary Barroso), Chove lá Fora (outra canção pré-bossa nova, de Tit o Madi), Feitiço da Vila (Noel Rosa e Vadico), Chão de Estrelas (Sílvio Caldas e Orestes Barbosa), e Olhos Verdes (Vicente Paiva e Evaldo Ruy).

Elisete Cardoso interpretando Se Todos Fossem Iguais a Você.



Elis Regina interpretando Na Baixa do Sapateiro.


Cláudia Moreno interpretando Chove lá Fora.



Mart'nália interpretando Feitiço da Vila.



Maysa Matarazzo interpretando Chão de Estrelas.


















Gal Costa interpretando Olhos Verdes.

















A sofisticação, na realidade, e o requinte do repertório deixariam qualquer cantor temeroso, principalmente se fosse levado em conta que Tom Jobim elaborara arranjos absolutamente inovadores para suas melodias, tornando-as difíceis de serem interpretadas. Mas Elisete era Elisete, e o Long Playing foi gravado conforme o previsto.

Sobre o disco, o crítico e biógrafo da cantora, Sérgio Cabral, assim escreveu:


“(...)



Na verdade, a faixa Chega de Saudade, com Elisete, serviu como uma espécie de ensaio para o arranjo que tom Jobim escreveria, logo depois, para a gravação de João Gilberto, esta, sim, a definitiva. A começar da introdução, com o excelente trombone de Ed Maciel, que deu um peso desnecessário à música, Chega de Saudade é a única faixa do famoso LP que o tempo não perdoou, datando-o e engessando-o na segunda metade da década de 50. Para agravar as deficiências, Elisete errou a letra. Em vez de cantar ‘para acabar com esse negócio de você viver sem mim’, cantou ‘pra acabar com esse negócio de jamais viver sem mim' - que não sei como os autores deixaram passar.

(...)

Mas é uma alegria ouvi-lo agora como será daqui a cem anos. O violão de João Gilberto também aparece, como destaque, em Outra Vez, esta, sim,
uma excelente faixa. Os arranjos de Tom Jobim são de uma criatividade e de uma delicadeza exemplares. Na faixa Estrada Branca, em que apenas o piano de Tom acompanha Elisete, a vontade do ouvinte é aplaudir de tão bonita. E nas canções mais lentas, como Serenata do Adeus, Modinha e Canção de Amor Demais, Elisete absorveu com extrema competência e extrordinário talento o clima camerístico das próprias músicas e dos arranjos. Foi por causa de sua atuação nessas músicas que, seis anos depois, o maestro Diogo Pacheco a convidaria para interpretar as Bachianas número 5, de Vila-Lobos, no Teatro Municipal de São Paulo e do Rio de Janeiro.”


João Gilberto só lançaria sua versão de Chega de Saudade quatro meses depois da gravação de Elisete Cardoso.
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Obviamente, o LP não vendeu quase nada, o que era de se esperar devido à sua requintada concepção. Mas seu prestígio só aumentou com o passar do tempo, sendo, hoje, considerado um dos melhores discos brasileiros do século vinte.


Após a gravação desse vinil histórico, Vinícius e seu parceiro Tom ocupam, definitivamente, o posto de melhor dupla de compositores do Brasil, sendo gravados por todo tipo de cantor, dos mais solenes e antiquados como Agnaldo Rayol) aos mais sofisticados da época, cujo maior exemplo é Sylvia Telles, a mais moderna cantora brasileira de então. Nesse ano de 1959, Lueli Figueiró (por onde andará esta boa cantora?) gravou O Nosso Amor e A Felicidade (ambas da trilha sonora do filme Orfeu Negro, do cineasta francês Marcel Camus, baseado na peça de Vinícius Orfeu da Conceição, filme ganhador da Palma de Ouro do festival de Cannes, além do Oscar e do Golden Globe como o melhor filme estrangeiro do ano de 1959), essa última, nesse mesmo ano, também gravada por Agostinho dos Santos (1932 - 1973), João Gilberto, Severino Araújo e Sua Orquestra e por Chiquinho do Acordeom, que ficou entre os dez maiores sucessos do ano. Também Lenita Bruno, cantora conhecida somente por parcelas da elite e dos intelectuais, nesse mesmo ano, lança o long playing Por Toda a Minha Vida só com músicas da dupla. Até Vicente Celestino, cuja voz soa ridícula aos ouvintes de hoje, mas que era então um grande vendedor de discos no país, entrou na galeria dos cantores que gravaram a dupla, ao lançar, em 1959, uma, digamos, risível versão de Se Todos Fossem Iguais a Você. 

Vicente Celestino interpretando Se Todos Fossem iguais a você.

















Como no caso de seu parceiro, Tom Jobim, a carreira de compositor (e, posteriormente, cantor) estava apenas começando. Os anos posteriores lhe dariam glória e reconhecimento, suas músicas desse período entrando sempre nas antologias das melhores músicas brasileiras de todos os tempos. Merecidamente.




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Exatamente nesse ano de 1959 em que a bossa nova se consolidava definitivamente como a mais dramática renovação da música popular brasileira de todos os tempos, morria a cantora e compositora Dolores Duran, uma de suas precursoras, também considerada das melhores compositoras brasileiras de todos os tempos, e cantora de múltiplas facetas, que cantava todos os ritmos possíveis e em diversos idiomas. Uma das mais completas cantoras do Brasil. “Viva intensamente. Morra jovem”, deveria ser o lema a acompanhar sua trajetória de vida.


Nascida no Rio de Janeiro (07.06.1930), a Jovem Adiléia Silva da Rocha iniciou-se na vida artística quando garota, chegando a participar do programa de calouros de Ary Barroso na Rádio Tupi, onde ganhou o primeiro lugar (dividido com o conjunto vocal Nativos da Lua), cantando o bolero de sucesso mundial Vereda Tropical, emissora essa em que também atuava no Teatro da Tia Chiquinha, um programa de temática infantil. Participaria também de outro programa – Escada de Jacó –, comandado pelo Professor Bacurau, cantando, aos domingos, em cinemas, teatros e circos da periferia do Rio de Janeiro. Também, por intermédio de um dos diretores da emissora, Olavo de Barros, Dolores iniciou uma modesta carreira teatral, participando de diversas peças infantis, geralmente textos adaptados – Mãe-d’Água, O Príncipe do Limo Verde, O Gaúcho e Aladim e a Lâmpada Maravilhosa – no Teatro Carlos Gomes.


Ainda mocinha, percebeu sua facilidade em decorar as letras de músicas internacionais com a pronúncia exata, passando a decorá-las e cantá-las ao violão. Essa facilidade a fez participar de um concurso da Rádio Nacional lançado por Renato Murce chamado de À Procura de uma Cantora de Boleros. Perdeu para Rosita Gonzalez (1929 – 1997), que se tornaria uma cantora especializada nesse ritmo.


De qualquer forma, os bastidores da famosa emissora passaram a ser freqüentados por ela em busca de alguma oportunidade. Chegou a participar, por cachê, de alguns programas, até ser descoberta por um olheiro que lhe conseguiu um teste na famosa Boate Vogue. Seu teste foi uma demonstração de suas habilidades em cantar em diversos idiomas, o que lhe proporcionou seu real primeiro contrato no mundo do show business. Nessa época tinha somente dezesseis anos, época também em que adotou o nome artístico de Dolores Duran, retrato de uma época de internacionalização do mercado musical, começando a ser dominado pelos ritmos estrangeiros, nesse momento (final da década de quarenta) o bolero, que iniciava um avassalador domínio do mercado brasileiro que se estenderia até a década de sessenta.


O animador César de Alencar, ouvindo-a em uma de suas apresentações na boate, a contratou para participar de seu famosíssimo programa de auditório da Rádio Nacional, ao mesmo tempo em que seu nome começava a ficar conhecido entre os frequentadores da noite carioca, uma vez que ela já se apresentava nas melhores casas noturnas da cidade, além da Vogue, a Beguine, o Little Club, o Baccarat, a Boate Casablanca, a Acapulco e diversas outras. Cantava em diversas línguas, dando, entretanto, prioridades para músicas francesas e norte-americanas.Por incrível que pareça, seu primeiro 78 rpm, gravado no final de 1951 na gravadora Star, era composto por dois sambas para o carnaval de 1952, Que Bom Será (Alice Chaves/Salvador Miceli/Paulo Marques) e Já Não Interessa, de Domício Costa e Roberto Faissal. Logo em seguida, ainda pelo mesmo selo, voltaria a gravar outro 78 rpm com músicas brasileiras, interpretando Outono, um samba de um futuro parceiro, Billy Blanco, e Um Amor Assim, samba-canção da cantora e compositora Dora Lopes.


Ambos os discos foram solenemente ignorados pelo grande público, o que não impediu que a cantora fosse contratada, em 1954, pela gravadora Copacabana, logo lançando o 78 rpm com as músicas Tradição, um samba-canção de Ismael Silva e o samba Bom é Querer Bem, de Fernando Lobo. Nesse mesmo ano, alcançaria seu primeiro sucesso popular com a música Canção da Volta (“Nunca mais vou fazer/O que o meu coração pedir/Nunca mais vou ouvir/O que o meu coração mandar...”), de autoria de Antônio Maria e Ismael Neto, ao mesmo tempo em que continuava suas apresentações na noite carioca.


Dolores Duran interpretando Canção da Volta.


















Em 1955, um importante ano para a consolidação de sua carreira, lançaria outro sucesso popular, o samba Praça Mauá, de Billy Blanco, que compunha o 78 rpm que também trazia o chorinho Carioca 1954, de autoria de Antônio Maria e Ismael Neto. Gravaria também, nesse ano, um clássico do samba-canção Manias (Celso Cavalcanti/Flávio Cavalcanti) e Pra Que Falar de Mim, outro samba-canção de Antônio Maria e Macedo Neto, com quem se casaria nesse mesmo ano.

Jane Duboc interpretando Manias.



Esse mesmo ano ficaria também na história da música popular brasileira por ter sido o ano em que Dolores compôs sua primeira música em
parceria com Tom Jobim, Se é Por Falta de Adeus (“Se é por falta de adeus/Vá se embora desde já/ Se é por falta de adeus/ Não precisa mais ficar...”), lançada com razoável sucesso pela cantora do momento, a queridinha da mídia Dóris Monteiro. Nesse mesmo ano, Dolores gravaria, ainda
pela Copacabana, seu primeiro Long Playing, Dolores Duran Viaja, em que interpreta diversas composições de sucesso internacional em diversas línguas, em espanhol – Sinceridad (Gaston Perez), Ojos Verdes (Quiroga/Valverde/León), em inglês - No Other Love (Rodgers/Hammerstein II), francês – Ma Cabane au Canada (M.Brocey - C.Conn - L.Gastá) e até em alemão, no caso a canção Kaiser Waltzer, de Franz Strauss. Somente uma música brasileira fazia parte do LP, exatamente o grande sucesso Canção da Volta.



João Gilberto interpretando Se é Por Falta de Adeus.



Sinceridad no Festival de Guitarras da Nicarágua.


Plácido Domingo interpretando Ojos Verdes.


Jay and the Americans interpretando No Other Love.


André Rieu interpretando Kaiser Walzer.










Logo Dolores estava se aventurando no mundo das canções nordestinas, gravando, em 1956, um de seus grandes sucessos o baião A Fia de Chico Brito (“Sou filha de Chico Brito, pai de oito filho maior/Nascida em Baturité, criada a carne de sol/Sete home e eu mulher, oito filho pra criar/Sete home pra mexer e a mulher pra...”), de Chico Anísio, e o xote Na Asa do Vento, de Luiz Vieira e João do Vale. Ainda no mesmo ano, gravaria Zefa Cangaceira, também de Chico Anysio, compondo o 78 rpm com o samba Pano Legal, de Billy Blanco. Nesse ano, também faria uma excursão à Argentina e ao Uruguai, em companhia do famoso violonista Bola Sete (1923 – 1987) e seu conjunto, apresentando-se Rádio Carve e na Boate Club de Paris, ambas de Montevidéu.


Elis Regina interpretando A Fia de Chico Brito.



Tetê Espíndola interpretando Na Asa do Vento.



Outro ano deveras importante na carreira de Dolores Duran foi 1957; além de ter gravado os sambas Tá Pra Acontecer, de José Batista,
Ivan Campos e Monsueto Menezes, Minha Agonia, de Mirabeau, Valdir Rocha e Paulo Gracindo e Tião, de autoria do mestre Wilson Batista e Jorge de Castro, reza a lenda que, no início desse ano, Tom Jobim mostrou-lhe uma recente canção, composta em parceria com Vinícius de Moraes. Dolores teria ficado tão emocionada com a melodia que, logo em seguida, escreveu outra letra para a canção. Quando Tom a tocou ao piano, acompanhado pela voz da cantora, viu-se que aquela seria a versão definitiva. Dolores teria imediatamente escrito um bilhete para Vinícius, em que dizia que seria covardia se ele não concordasse com a letra escrita por ela. Vinícius teria rasgado sua própria letra, concordando que a de Dolores era mais bem elaborada do que a dele. Estava composta Por Causa de Você, um clássico imediato:

“Ah, você está vendo só
Do jeito que eu fiquei
E que tudo ficou
Uma tristeza tão grande nas coisas mais simples
Que você tocou
A nossa casa querido já estava acostumada
Aguardando você
As flores na janela sorriam, cantavam
Por causa de você
Olhe, meu bem, nunca mais nos deixe por favor
Somos a vida e o sonho, nós somos o amor
Entre meu bem, por favor
Não deixe o mundo mau te levar outra vez
Me abrace simplesmente
Não fale, não lembre
Não chore meu bem.”
Roberta Sá interpretando Por Causa de Você.



Essa canção seria o lado A do 78 rpm lançado por Dolores em 1958, que trazia, no lado B, outra famosa música interpretada por ela, Estatuto de Boate, de Billy Blanco. Ainda em 1958, Dolores voltaria a compor com Tom Jobim, colocando letra em uma das melhores canções do compositor de todos os tempos, Estrada do Sol (“É de manhã, vem o sol/Mas os pingos da chuva que ontem caiu/Ainda estão a brilhar/Ainda estão a dançar/Ao vento alegre que me traz esta canção ...”), gravada pelos mais importantes intérpretes da música brasileira, pela própria Dolores, Elis Regina, Gal Costa, Nara Leão, Agostinho dos Santos e muitos mais. Essa canção é considerada pelos historiadores uma das mais importantes contribuições à modernização da música popular brasileira, verdadeiramente precursora da bossa nova.


Elis Regina e Gal Costa
Estrada do Sol.

Além de lançar outro LP nesse mesmo ano - Dolores Duran Canta Para Você Dançar -, composto, mais uma vez, de músicas internacionais de sucesso, caso de Only You (B. Ram), Mi Ultimo Fracasso (A. Gil), Viens (Gilbert Becaud/Charles Aznavour), além de composições brasileiras – Conceição (Dunga/Jair Amorin), Por Causa de Você (Dolores Duran/Tom Jobim), Feiura Não é Nada e Se Papai Fosse Eleito, ambas de Billy Blanco, entre outras, Dolores também articiparia de uma caravana à União Soviética comunista junto com outros artistas (Jorge Goulart, Nora Ney, Conjunto Farroupilha) que deu muito que falar.

Dolores Duran interpretando Only You.





















Dolores Duran interpretando Mi Ultimo Fracasso



















Dolores Duran interpretando Por Causa de Você.

















O ano de 1958, realmente especial para a consolidação da carreira de Dolores, assistiria ao nascimento de uma das melhores músicas da compositora, tornada clássica com o passar dos anos: o samba-canção Castigo, que fez sucesso na voz da cantora Marisa Gata Mansa:

“A gente briga,
Diz tanta coisa que não quer dizer
Briga pensando que não vai sofrer
Que não faz mal se tudo terminar.

Um belo dia a gente entende que ficou sozinha
Vem a vontade de chorar baixinho
Vem o desejo triste de voltar.

Você se lembra, foi isso mesmo que se deu comigo

Eu tive orgulho e tenho por castigo
A vida inteira pra me arrepender.

Se eu soubesse
Naquele dia o que sei agora

Eu não seria esse ser que chora
Eu não teria perdido você



Dolores Duran interpretando Castigo.








Exatamente nesse ano de sua morte, 1959, Dolores iria entrar definitivamente no rol dos grandes compositores brasileiros, ao gravar, com enorme êxito, seu samba-canção Fim de Caso e compor um dos maiores clássicos da música popular brasileira de todos os tempos e seu maior sucesso, A Noite do Meu Bem, música gravada por ela antes de falecer e, posteriormente, por dezenas de cantores, dentre eles Elza Laranjeiras, Milton Nascimento, Fagner, Fábio Júnior, Nelson Gonçalves, Alcione, Nana Caymmi, Ângela Maria e muita gente mais. A música, além do mais, entrou imediatamente na lista das mais vendidas e executadas de 1960, ficando meses nas paradas de sucessos de todas as rádios e revistas especializadas brasileiras:



“Hoje eu quero a rosa mais linda que houver
E a primeira estrela que vierPara enfeitar a noite do meu bem.Hoje eu quero a paz de criança dormindo
E o abandono de flores se abrindo
Para enfeitar a noite do meu bem.Quero a alegria de um barco voltando
Quero a ternura de mãos se encontrando
Para enfeitar a noite do meu bem.

Ah! eu quero o amor o amor mais profundo
Eu quero toda beleza do mundo
Para enfeitar a noite do meu bem.


Ah! como este bem demorou a chegar
Eu já nem sei se terei no olhar
Toda ternura que eu quero lhe dar.”


Dolores Duran interpretando A Noite do Meu Bem.


















Zezé Motta interpretando Fim de Caso.








Cantar na noite e levar uma vida de boemia, porém, estavam cobrando seu preço. Dolores já fora avisada de que sua saúde estava em desordem, de que seu coração estava reagindo mal ao tipo de vida que estava levando. Não obstante as recomendações médicas para levar uma vida mais saudável, evitar as bebidas e os excessos próprios de quem atua na noite, ela sabia que nunca poderia abandonar sua vida noturna, realmente sua razão de viver. A maioria de seus amigos atuava na noite, principalmente Antônio Maria, o cronista do cotidiano noturno. Assim foi que, na manhã de 24 de outubro de 1959, após se apresentar na boate da moda Little Club e uma esticada na noite, Dolores Duran chega a sua casa nas primeiras horas do dia, pede à empregada que não a acordasse e, segundo alguns historiadores, dizendo-lhe que iria “dormir até morrer”, e entra em seu quarto.
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À noite, foi encontrada morta, vítima de um colapso cardíaco. Assim morria a, possivelmente, maior compositora brasileira de todos os tempos.



Um comentário:

Anônimo disse...

Sylvinh nasceu dia 27 de agosto de 1935, e não 34.
Beijos